"O sol na cabeça", por Geovani Martins

segunda-feira, setembro 30, 2019 Sidney Puterman

Olhando daqui, parece perto, mas é uma proximidade mentirosa. São biomas distantes. Nas zonas de contato da convivência urbana, o termômetro registra a mesma quantidade de graus Celsius, mas, fora delas, não há equivalência: ferve debaixo do zinco do telhado e congela na aragem do arzinho split. Assim, queimando (ninguém quer ficar de cara), "O sol na cabeça" arde o lombo numa viagem curta, mas transcontinental, na garupa dum moto-táxi até a divisa do Vidigal com o Leblon. Quase ali, no fim da praia. O condutor dessa epopeia é Geovani Martins, jovem autor crescido na Rocinha e morador da face norte dos Dois Irmãos. Com seu talento, aproveitou a janela oferecida pelo mercado literário, hoje mais alargada e democrática, e armou seu tabuleiro. O funil já não é tão estreito para quem ocupa o lugar de fala das minorias - e o faro mercadológico das editoras anda aguçado. Antes assim. Este é daqueles raros (e bem-vindos) casos em que a literatura salvou alguém. Salvou talvez de limpar vidro de carro no sinal ou vender pele a um real. Ou ainda, fugindo da pista, encarar um subemprego. Geovani escapou dessas, virou camelô das próprias aventuras. Seus badulaques são contos do cotidiano carioca. Eu comprei. Gosto da literatura da cidade. De João do Rio a Geovani do Morro passou-se um século, mas não se engane, são ambos cronistas da mesma alma da urbe, transposta no tempo (ainda que se tratando de ângulos distintos). Martins revela a juventude da cidade semi-oculta e investe no seu dialeto, expondo o palavreado do morro para quem é do asfalto. Acho até que vai bem além disso: porque a linguagem da molecada e dos traficantes me parece ser, mais do que um recurso, a grande protagonista desta magra primeira coletânea do autor. Porque os temas que ele aborda, ainda que com seu fascínio, são de certa maneira previsíveis, girando ao redor da rotina da favela e dos favelados (nem vem de patrulha!), rotina encharcada de preconceito e violência. Esta última, se contundente, não é demasiada, porque Geovani, mesmo quando revoltado, é risonho, da paz, conta os fatos d'além divisa com a leveza da adolescência. E é a sua delicadeza que evidencia que seu mundo distante é contíguo ao nosso. Irrevogavelmente separados, como na "cidade partida" do Zuenir, mas juntos e misturados. Ainda que às vezes a mistura desande. Em um dos seus contos ele fala dos milicianos, assunto hoje mais em voga do que quando do lançamento do livro, há dois anos: "De repente, aconteceu o pior: morreu o carro. Beto olhou em volta e logo percebeu onde tava, era área de milícia. 'Agora fodeu tudo de uma vez', pensou. Tava ligado que sem dinheiro o desenrolo com esses caras é bala. Pior raça que tem pra tu se meter nesse mundo é milícia, porque, além de ser ruim que nem o cão, ainda tem proteção da polícia." A passagem está em "Travessia", o último dos textos, que diverte também pela reclamação trabalhista do bandido ("Mais de um ano fechando a boca e nunca comprei porra nenhuma pra mim, muito mal aquela televisão e meu Playstation. Bandido duro é foda. Foi o tempo que essa merda dava dinheiro, papo reto. Quando eu era menó, via os cara tudo de moto, comprando carro importado que nego roubava na pista. Agora é plantão de doze horas todo dia e, quando tu vai ver, tá duro, pegando quentinha fiado. Tomar no cu!") Como eu já frisava acima e você pôde constatar, a linguagem do livro de contos de Geovani é o livro. É vero que alguns textos invocam tanto esta língua paralela que a insistência na gíria acaba over. Mas é raro que dê ruim, na maioria das vezes o desenrolo flui e segura o enredo. O pano de fundo das estórias são variações sobre um mesmo tema, e a narrativa é quase sempre auto-referencial. Uns três ou quatro contos vão mais para o lado infanto-juvenil, o que dá um tom mais ingênuo e piegas, mas não compromete o resultado final, que é bom. Se impõe mesmo é a sensação de uma excursão às cavernas sociais da cidade dividida. Sobre este aspecto, impossível não lembrar de alguns outros livros relevantes. O seminal "Cidade de Deus", de Paulo Lins, ficou ofuscado pelo gigantesco sucesso do filme, mas eu o li muito antes do Fernando Meirelles resolver filmar a história e achei o texto do Lins uma mudança de paradigma, pela crueza com que revelava o mundo da comunidade. Outro que me vem à mente é "Como nascem os monstros", do Rodrigo Nogueira, uma obra fundamental - uma campeã de acessos aqui no blog, com mais de 6.000 pageviews. Sem falar nos mais recentes e similares, como os textos mais cáusticos e humorísticos do Anderson França. Todos eles escritos por brasileiros nascidos e criados na periferia. O livro do Nogueira é focado na PM carioca. Em um dos contos, Geovani diz "Bagulho ficou doido, os polícia sufocando, invadindo casa, esculachando morador por qualquer bagulho. Tu tá ligado como eles é. Ainda mais com jornal tudo fechando com eles, tinha que ver. Os maluco achava uma pistola entocada, meia dúzia de radinho, pronto, já era primeira página, e vagabundo acreditando que eles ia acabar com o movimento. Tem que ser muito otário (...)" Ou quando descreve o PM dando um esculacho no playboy: "Depois toma um tiro e não adianta reclamar porque tava dando dinheiro pros cara comprar as arma. Esses polícia é mó piada mermo, falando assim até parece que não é eles que vende a porra das arma no morro." Aqui Geovani Martins escancara o que Rodrigo Nogueira já havia denunciado muitos anos atrás. Porém, para meu estupor, a cada vez que surge uma denúncia sobre algum comando da PM ter um arrego com a bandidagem, os jornais noticiam como se fosse uma grande surpresa. Ora, é assim que funciona, como já amplamente detalhado por autores que vivem nas áreas de atuação da PM (como Geovani) ou fazem parte da própria PM (como Nogueira). Curioso é que a mídia aborda a norma como se fosse uma excrecência. E, se a lei não sobe o morro, e quando sobe é pro arrego, nem por isso faltam lei e ordem na favela: "Na época estava proibido fumar crack na Vintém. As coisas tinham fugido do controle: muito roubo, briga, perturbação. Crack é foda. O que traz de dinheiro, traz de problema pra quem trabalha na boca. (...) Uma coisa era certa: parar de vender, os traficantes não iam, já estavam acostumados demais com os lucros da pedra. A saída que encontraram foi criar essa lei proibindo o consumo dentro da comunidade." Bandidagem, droga e linguagem: o domínio do autor na vasta terminologia da maconha é um capítulo à parte. Adepto contumaz de um baseado (que ele não acende, mas incensa nas suas colunas em O Globo, fumando a erva de Nova York a Amsterdam), ele menciona o sedanapo (o papel para enrolar o fumo, chamado também de seda, mas muitas vezes feito com guardanapo de papel obtido nas lanchonetes, daí o seda+napo), o beck (o próprio cigarro de maconha) e o chá de burro (maconha vagabunda), entre outros mais. Vale incluir aqui o refrão de venda do pó, cantado pelo vapor na porta da boca: "Pó de dez, cheirou, pancou, pó de dez, vem nariz!" Ri sozinho, só esta última já valeu o livro. Sem contar os adágios de crente ("Macumba é igual maconha: coisa do diabo! Se fosse bom não começava com ma") ou dos pais de filho homem já taludo ("Quem tem filho com cu cabeludo é macaco"). Mas, se a linguagem é a estrela, a coleção de contos não se resume a ela. Entre outras, "Sextou", que suspeito seja a mais auto-biográfica das crônicas, é digna de uma atenção maior. No conto, o personagem, um moleque da comunidade, ex-entregador de folhetos que vibra com a chance de ser catador de bolinhas em um clube de tênis, perde o emprego por ter, na sua raiva da garotada mimada, desacatado um playboyzinho. Suas reflexões e considerações são uma aula de sociologia que deveriam orientar as tais políticas públicas - nome da moda para uma coisa que, aqui, é sempre feita nas coxas e com interesses escusos e eleitoreiros. Vendido para diversos países antes mesmo de ter sua edição publicada em português, "O sol na cabeça" é um promissor livro de estreia. Não consigo imaginar como será a riqueza da obra após vertida para o alemão, inglês e mandarim. Um enorme (e insuperável?) desafio para os tradutores. Fico na torcida. Restou a impressão de que eu e o autor temos em comum a ojeriza a essa lua de mais de 40 graus torrando geral - mas quem mora no Rio não tem como escapar. Eu escapei subindo a serra. Geovani, porém, não tem porque fugir da chapa fervendo. O Rio, o sol do Rio, é sua matéria-prima e salvo-conduto para um outro patamar.

Companhia das Letras, 118 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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