"Rio de Janeiro, cidade mestiça", por Jean-Baptiste Debret

segunda-feira, março 23, 2015 Sidney Puterman

Em 1808 o Rio de Janeiro mudou de patamar. Havia chegado a corte imperial. A quente e poeirenta cidade se tornara sede do único reino europeu fora da Europa. O dinheiro veio, os negócios (e os ingleses) surgiram, a economia cresceu e os artistas (franceses) afluíram. Em 1816 desembarcou na cidade um dos mais longevos entre eles, e que nela permaneceria por 15 anos, legando registros que se tornariam clássicos sobre o Rio. Era Jean-Baptiste Debret. Ele aqui dedicou-se a um minucioso trabalho, que, reunido, culminou na "Viagem pitoresca e histórica ao Brasil", lançado na França oito anos após seu retorno, em 1839. Para meu deleite, acabei de ler uma compilação do livro original, reeditado na França em 2001. Com organização de Patrick Straumann, a obra traz no posfácio articulistas das três pátrias (ou continentes) envolvidas, que analisam o contexto, a pintura e o período retratado. Acima de tudo, é um livro importante na iconografia da cidade e do país. Poucas coleções retratam com tamanho critério e disciplina o Rio de então - ainda que não se furte às distorções de estilo e às exigências de mercado. Debret aportou no cais da Praça XV já um artista maduro, de 47 anos, o que refletiu na sua produção e contribuiu para que ela se tornasse fundamental fonte de informação sobre o Rio d'antanho. É um Rio negro. Nas suas ilustrações, as ruas da cidade estão coalhadas de escravos; e, quando há brancos, há todo um séquito de africanos a servi-los (Luiz Felipe de Alencastro, em texto ao fim do livro, se estende sobre a onipresença negra: à época, um terço da população carioca havia nascido na Àfrica, e, ao todo, 41% dos habitantes da cidade eram escravos). As gravuras eram feitas para comercialização na Europa, para uma burguesia cada vez mais àvida por conhecer imagens da exótica América do Sul. É fato que nem sempre eram fidedignas e não raro descambavam para o estereótipo - assim atendendo melhor às expectativas do consumidor europeu. O próprio Debret, que havia passado uma temporada na Índia, trai a impressão que o período lhe causou, ao retratar o interior das casas brasileiras com fisionomias e costumes típicamente orientais (hábitos os quais, a serem verdadeiros, não deixaram herança). Mas, decerto, foram também influência de uma caracterização que já detinha seu próprio mercado nas capitais européias. As gravuras são acompanhadas por descrições do próprio pintor, enriquecendo o livro. Após a seleção das ilustrações, três articulistas da Guiné, do Brasil e da França abordam temas correlatos à obra. Tierno Monénembo vê no Brasil de hoje os sintomas de um passado comprometido com a escravidão, cuja atual eqüidade racial julga mais aparente que real; Luiz Felipe de Alencastro analisa estatísticas demográficas e do trabalho escravo, tema recorrente de Debret; Serge Gruzinski aborda o estilo e as razões para o afluxo de pintores ao continente, acompanhando a evolução da pintura de vários artistas e sua crescente capacidade de reprodução da realidade observada. "Cidade mestiça" é uma obra que qualquer devoto da história do Rio deve ter na estante. Eu, que me listo entre eles e recomendo o livro, fui surpreendido há pouco pela notícia de uma exposição das obras originais de Debret da Coleção Castro Maia, no Centro Cultural dos Correios, na Primeiro de Março. Corri até lá numa sexta-feira desse mesmo mês. Era uma noite quente e chuvosa. Cheguei aos Correios saltando em meio aos buracos, poças e tapumes que são bem a cara da nossa cidade maravilhosa. Porém, para minha decepção, deparei com uma exposição banal. Resumida à repetição do formato padrão das exposições, não empolga. Entedia. Por isso, sugiro aos interessados que optem pelo livro. Qualquer um que o tenha em mãos vê mais acuradamente o trabalho de Debret do que a mostra permite. No livro há erros, como o das páginas 168 e 169, cuja legenda trata por Baía de Guanabara o que é uma panorâmica da Lagoa Rodrigo de Freitas, mas não há percalços. Porém, se ainda assim alguém se aventurar pelas salas vazias da exposição, que suba a escada e evite o elevador centenário. A relíquia parou no tempo e também no meio do caminho. A ascensorista, irritada, gritava com o segurança, que, segundo ela, tinha que ir não sei onde e apertar lá um tal botão. Enquanto isso, ficamos trancafiados na gaiola suspensa. Melhor não.

Companhia das Letras, 200 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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