"Confiança", por Hernan Diaz

quarta-feira, agosto 07, 2024 Sidney Puterman



O romance tem uma estrutura inventiva. Você não sabe o que leu até passar da metade do livro, quando o autor lhe dá a chave para você contextualizar o que já tinha lido. É quando você conclui, enfim, porque não tinha entendido nada.

Peguei pesado, né? Mas não quero que você se precipite. Não descarte o livro por conta deste meu preâmbulo sincero. Diaz escreve bem. Bem até demais. O sujeito é do ramo. Mas ele não achou suficiente ter apenas o dom da escrita, ser proprietário de um talento incomum. Quis ir além.

Então ele constrói um romance inusual. Todo fracionado. E com pegadinhas.

Conta a história de uma família rica, cujo filho rico possuía uma vocação de rei Midas para ficar cada vez mais rico. Então ele enriquece cada vez mais, e casa com um mulher inteligentíssima, que vivia para a música e para a filantropia. Não tiveram filhos e ela adoece ainda jovem. O bilionário faz tudo para salvá-la.

Meu resumo é simplista como os personagens. Já a estrutura do livro é complexa. Uma charada.

Como podemos constatar no índice, são muitos livros dentro de um só. Isso já seria uma pista. Mas quem dá atenção a índices antes de começar a ler um livro? Então a gente só descobre que o truque já estava pré-avisado quando passamos da metade do texto.

Vou tentar dar uma clareada.

O primeiro livro dentro de "Confiança" se chama "Ligações", escrito por um tal Harold Vanner, sobre um tal Benjamin Rask. O segundo se chama "Minha vida", escrito pela ghost-writer de um tal Andrew Bevel, sobre ele próprio. O terceiro se chama "Memórias, relembradas", escrito por uma tal Ida Partenza, a ghost-writer, sobre a biografia que escreveu em nome de Andrew Bevel.

Pausa para respirar.

Dentro do terceiro livro há duas narrativas que se intercalam: a da srta. Partenza, que conta como escreveu "Minha vida", aquele que viria a ser assinado por Andrew Bevel; e a outra da também sra. Partenza, a mesma Ida. Ela, cinquenta anos depois, visita a casa de Andrew Bevel, transformada agora em uma fundação, e comenta sobre o que ela mesma tinha escrito no passado. 

Há um quarto livro, "Futuro", assinado por Mildred Bevel, née Howland, esposa de Andrew, e que tinha sido Helen Rask, née Brevoort, em "Ligações". Ela, que escreve o quarto, é a razão de ser do segundo e do terceiro livro. E é a grande personagem misteriosa no primeiro; sendo que, no quarto, ela revela algo que ninguém jamais desconfiaria.

Entendeu?

Se não, sem problema. Nem era minha pretensão. Eu, que li o livro, ralei pra entender, imagine você, que (ainda) não leu. Mas paro por aqui. Iria me estender desnecessariamente. É provável que o entusiasmado testemunho de leitores mais inteligentes, e por isso mesmo com um lugar privilegiado na contracapa da edição, possam lhe prestar um serviço melhor que o meu. Vamos a eles.

"Complexo, misterioso e surpreendente do início ao fim. Diaz tem na ponta dos dedos o poder dos grandes nomes da literatura." - The New York Times

"Uma história fascinante sobre classe, capitalismo e ganância cujo resultado é uma alquimia hipnotizante de metaficção." - Esquire

"Um épico americano, Confiança é páreo duro para O grande Gatsby. Um romance glorioso sobre impérios e apagamentos, maridos e mulheres, impressionantes fortunas e indescritível miséria." - Oprah Daily

Epa lá. Aí não. Tudo bem, sou burro, não entendi patavinas do vai-e-vem da estória até metade do livro. Mas qualquer brasileiro sabe o que é miséria. E posso garantir que não há "miséria" no livro. Nem um pouquinho. A mais pobrinha era a ghost-writer, que morava com o pai em um apartamento de um bairro proletário. Mas nada de miséria.

Daonde surgiu isso? Fiquei encafifado com essa tal de miséria. A não ser que - ah, não, não é possível - que o gente boa do marketing, que pegou o material original da edição publicada em inglês, já com os testemunhais a reboque, tenha metido um miséria como tradução de misery.

Não pode ser, né? Aí seria tripudiar. Mas fiquei com a pulga atrás da orelha. Se não há absolutamente NADA de miséria nas quatrocentas e dezesseis páginas do romance, a presença da palavra na contracapa só poderia vir de uma tradução, vá lá, desatenta.

"Desatenta" é pegar bem leve. Mesmo eu, que estudei inglês por décadas e não consegui aprender, sei que "misery" não é "miséria" no sentido de pobreza. Não posso crer que o estagiário do marketing da editora tenha usado o Google Translator, numa tradução tabajara. Seria o fim da picada. Mas, pelo sim, pelo não, resolvi não deixar passar batido.

Saí pra fuçar. Qualquer um que me conheça sabe que sou tinhoso. E nem foi difícil achar a resenha. Está lá para quem quiser ler, no endereço eletrônico que reproduzo abaixo.

https://www.oprahdaily.com/entertainment/books/a39864513/trust-hernan-diaz-review/

Sim, a palavrinha tá lá na resenha gringa. A "misery" em questão. Segue a passagem, ipsis litteris.

"Trust is a glorious novel about empires and erasures, husbands and wives, staggering fortunes and unspeakable misery".

Putz. O cara fez isso. Duro de acreditar. Ok, vão culpar a faxineira. Filho feio não tem pai. Mas antes fosse só isso. Descobri que a lambança foi muito além. Não se restringiu a uma palavrinha ou duas na contracapa do livro (o "apagamentos" também foi f...). O inaceitável está na capa em si.

Na verdade, na única palavra estampada na capa da edição brasileira. "Confiança".

A palavra escolhida para título é um equívoco na tradução. Neguinho não pegou o espírito da coisa.

O título original, "Trust", se apoia na ambiguidade. Trust é uma referência, óbvia, aos trusts (conglomerados empresariais, de um dos quais o protagonista é o chairman) e remete, em segundo plano, ao significado primário da palavra, "confiança". O duplo sentido é quem inspira o título.

Eu já não tinha compreendido bem o porquê do título desde o início. Avancei na leitura e continuei sem conseguir juntar lé com cré. Mas depois do miséria da contracapa, vendo as trapalhadas desse lost in translation, foi a primeira coisa que me passou pela cabeça. Corri para checar as resenhas em inglês - e confirmei o que tinha pensado logo de cara. O duplo sentido é, aqui, a alma do negócio. Nas duas páginas na internet que abri, ao acaso, encontrei a mesma interpretação. 

O site "From first page to last" se detém em esclarecer o título da obra. "The title refers not just to trusts in the meaning of monetary assets but also the trust that the characters place in others".

O próprio artigo do Oprah Daily faz referência à ambiguidade do título, chamando-o de wordplay, um "trocadilho" e, coincidência ou não, se valendo de palavras semelhantes ao site:  "The title refers not only to financial trusts but also the trust we place in each other, the contract between reader and author".

Curiosamente, ambos fazem uso da mesma expressão ("not only... but also"), utilizada para enfatizar quando o fato referido tem dois pesos que se equivalem entre si.

O simples enunciado da expressão reforça esta percepção: "Not only... but also' is a complex conjunction that joins two clauses or phrases, emphasizing that the second element is equally important as the first one. It is often used to add an additional piece of information that complements the first element".

Para não dizer que desci o malho e depois tirei o meu da reta, só para não me comprometer, digo que bastava meter um "infortúnio", lá na contracapa: "(...) impressionantes fortunas e indescritível infortúnio". Com a vantagem adicional que o carinha ainda poderia se gabar que, trocadilho por trocadilho, o dele em português funcionava ainda melhor que o original.

Mesmo para a capa serviria, mas eu optaria por manter o título em inglês. "Trust". E pau no burro.

Já deu. Isso aqui não é aulinha de inglês, até porque sou semi-analfabeto no idioma. Mas o leitor comum espera que a editora tenha um mínimo de apreço no tratamento dado ao próprio produto.

Gastar nos direitos do livro e depois economizar na tradução dá nessa barbeiragem aí.

Intrínseca,  416 páginas  |  1a edição  |  Copyright 2022  |  Tradução (da obra) Marcello Lino

Título original: "Trust"

P.S.: Tudo que vi nos sites em inglês é uma ladainha sem fim de elogios à obra. O livro ganhou o prêmio Pullitzer na categoria ficção em 2023. De boa, não me incluí nesse time não. O texto em português revela estrutura confusa, desenlace frustrante e personagens monocromáticos. Envolvente? Sim. Mas artificial.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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