"Queda livre", por Isabela Palmeira e Chico Otávio
Apesar do apelido pomposo do protagonista - Faraó dos Bitcoins -, o livro não traz nada do antigo Egito, nem do atual mercado financeiro. Fala de uma mega fraude e de uma pirâmide de pessoas enganadas. Se cada uma das pirâmides de Gizé era formada por 27.000 blocos de calcário, os clientes lesados pela empresa que já se apresentaram à Justiça passam de 122.000.
Um lado, o de Glaidson e seus parceiros, chamava este público de "investidores"; o outro lado, o do oponente, batizava este público como "fiéis". Seja lá qual for o mais adequado, estão se referindo a um mesmo público: o crente, o "dizimista", aquele que deposita semanalmente o seu suado dinheirinho nas contas da IURD - a Igreja Universal do Reino de Deus.
Não é segredo para ninguém que a IURD persuade seus fiéis a entregarem à igreja todo o seu ganho, como na tal Fogueira Santa, sob as mais variadas promessas de recompensa divina. Deu ruim porque a GAS estava chegando antes e secando a fonte. E ainda estava seduzindo os seus vendedores.
"O grupo estava em guerra com a Igreja Universal, em razão da debandada de pastores da instituição para trabalhar como consultores da GAS", revelam os autores, de acordo com o apurado em um grampo telefônico da Operação Kryptos (o grampeado era Michael de Oliveira Magno, ex-corretor de imóveis, um dos apóstolos de Glaidson Acácio dos Santos, ex-pastor da Universal, o cara das iniciais da GAS).
Chamar de "apóstolos" os executivos de uma empresa de bitcoins não deixa dúvida de quão estreitos eram os vínculos entre o modus operandi da IURD e os da GAS.
A Região dos Lagos mostrou a Glaidson que seu negócio era uma verdadeira máquina de imprimir dinheiro - e não fazia sentido a GAS se limitar unicamente à região. A empresa passou a prospectar seus clientes Brasil afora. Não havia restrição de fé ou geográfica. A única fezinha necessária era ter dez contos para investir. O sujeito aplicava em "cripto" (com um depósito na conta do apóstolo, que respondia aí pela alcunha de "trader") e passava a ganhar 10% como rendimento mensal.
Cada dez mil aplicados geravam R$ 1.000,00 mensais de "rendimento". A GAS pagava em dia. Mas a maioria deixava os 10% na própria conta, para render mais. O investidor não é bobo. Ou é?
Fiz um mero exercício matemático aqui. Um cidadão que depositasse R$ 10.000,00 em janeiro de 2018 em um dos dezenas de CNPJs da GAS - e não sacasse nunca nem o valor principal nem o rendimento de dez por cento - teria acumulado, em julho de 2024, R$ 18.621.820,13.
Bom, né? Você aplica dez milzinho. Seis anos depois, tem dezoito milhões. Vamos supor que você (o investidor) ganhe dez mil por mês e aplique o salário do mês - de julho, vá lá - inteiro e nunca mais mexa nessa grana. Em seis anos, você tem na sua conta o equivalente a 150 anos de salários. Um século e meio. Seria como se você trabalhasse apenas um mês na vida, aplicasse e depois de seis anos recebesse de uma vez só os salários que você teria direito até o ano 2168. Ô vidão.
Era o pote de ouro no fim do arco-íris. Mil e oitocentos salários filhos de um único salário.
Para não restar dúvida, vou recapitular o bagulho aqui. Sempre de acordo com o livro, que é quem traz toda essa estória. O cara da GAS - o Glaidson Acácio dos Santos - era um sujeito humilde, de família simples, incluindo alguns condenados. Entrou para a Universal e virou pastor. Foi mandado para a Venezuela. Lá conheceu uma fiel venezuelana, a Mirelis Diaz, procurada por golpes financeiros envolvendo bitcoins. Ele foi demitido da empresa do bispo, ela precisava fugir do país do Maduro.
Já casados, vieram pra Cabo Frio, no Brasil, e abriram uma empresa de bitcoins. Ele, bom de lábia, começou a vender a aplicação para os fiéis da IURD. Deu tão certo que os pastores se bandearam da igreja e foram trabalhar para o rolo do casal.
Era irresistível. O ex-pastor, ex-garçon, ex-guardador de carros Glaidson tinha tanto jeito para a coisa que o negócio não parava de crescer. O sistema era tosco, mas mesmo assim funcionava: bastava a vítima, ops, o investidor, fazer um depósito na conta do vendedor (que abria um CNPJ e depois uma conta em banco, com esse CNPJ como titular, para ir recebendo a grana dos investidores).
O investidor, por sua vez, recebia religiosamente os prometidos dez por cento mensais.
Como não investir? O núcleo da GAS, como vimos, era oriundo de Cabo Frio, mas o sucesso local resultou em expansão nacional. Iniciando pelas capitais do Nordeste, logo estenderam tentáculos gulosos na capital do país. Foram extremamente bem-sucedidos no Distrito Federal.
"A fórmula para crescer na capital foi igual à que consolidou a GAS do Faraó no Rio de Janeiro", revelam os autores. "Uma forte pregação nos templos, reforçada pela conversão de pastores locais em consultores". Como explicam Chico e Isabela, "o impacto destas investidas e das adesões ao mercado de bitcoins gerou uma crise na Igreja Universal em Brasília".
Epa, problema. Até então estava tudo certo. Um grupo de pilantras vinha convencendo dezenas de milhares de pessoas a colocarem suas economias em um esquema fictício de criptomoedas. E o bom (para os traders) é que nenhuma agência do governo estava em cima. Normal. Braasil. Mas aí você mexe num vespeiro. O cerne do negócio não tinha Estado para fiscalizar, mas tinha dono para cobrar.
E o dono daquele povo que vinha dando a grana para a GAS era a Universal.
A cúpula da IURD, se sentindo traída, não ficou na desconfiança. Partiu para dentro. Influente, com um pelotão de deputados, a igreja foi acusada pelos pastores de ter quebrado ilegalmente os sigilos bancários deles, para tentar comprovar movimentações e aplicações em bitcoins.
Opa, quebra de sigilo? Isso não é ferramenta exclusiva do Estado? Pois é...
Temos aí um antigo grupo trilionário, a IURD (Igreja Universal do Reino de Deus), e um recente grupo bilionário, o GAS, competindo pelos mesmos agentes e pelo mesmo insumo (o dinheiro "disponível" na conta-corrente dos trabalhadores).
A corda roeu do lado mais fraco. Vai ver foi coincidência. Assim, do nada, a GAS foi denunciada. Antes, sob o comando forte de Glaidson, a GAS tinha dado seu jeito para neutralizar a concorrência miúda da vizinhança. Com os traders locais mais atrevidos, Glaidson resolveu de forma mais direta. O Faraó mandou matar alguns concorrentes mais saidinhos. Aleijou outros. Mas, na grande disputa pelo mercado, foi implodido por um rival bem superior.
Não dá para sair matando os graudões. Provavelmente nem tentaram. Melhor assim.
Os autores contam em minúcias o processo de investigação. Puxam o fio da meada desde o início. Trazem os valores, os comparsas, os novos players, as prisões.
É coisa grande. Segundo a investigação, o negócio da GAS movimentou, de maneira ilícita, "pelo menos 38 bilhões de reais, por meio de pessoas físicas e jurídicas no Brasil e no exterior".
Como um ex-pastor pouco instruído, de origem humilde e aparência idem (apesar do seu volume roliço de ricaço), pôde aliciar tantos parceiros e convencer milhares de pessoas a transferirem para ele todas as suas economias, conta muito sobre o Brasil e os brasileiros.
Quando a casa caiu, eu, por coincidência, estava em Cabo Frio, com a família, tostando na praia. Fiquei pasmo com a carreata em frente ao tradicional hotel Malibu. Um buzinaço de mais de um quilômetro de extensão, em protesto contra a prisão do Faraó.
O populacho (formado todo ele por investidores em pânico) clamava pela liberdade de Glaidson. A procissão de carros importados trazia gente na capota, cartazes e coros ensaiados ("Soltem o papai"). Eu tinha visto a matéria sobre o Faraó na tevê, na semana anterior, e me parecia que prender o cara era a coisa razoável a ser feita.
Pelo visto, a população local discordava com veemência da minha opinião.
Os autores trazem o relato de quem via a prisão do dono do esquema como um ataque "a um homem negro, de origem pobre, que desafiou o sistema bancário e incomodou muita gente".
"A empresa cumpriu com o tratado com os clientes. Havia contrato, tudo direitinho. Eles pagavam no prazo. Muita gente se levantou com o negócio. Só que incomodou alguns órgãos e bancos por ele estar tendo muito lucro. Foi um complô contra a GAS", argumentou Felipe Henriques Velloso, de 35 anos, vendedor do comércio no centro de Rio das Ostras, que investiu 10 mil reais e recebeu apenas duas parcelas mensais.
Mas nem todos os clientes viram as coisas do mesmo modo. Se a maioria, a princípio, defendeu a a soltura de Glaidson como a fórmula para reaver o dinheiro aplicado, com o tempo as pessoas concluíram que a GAS não parecia imbuída em honrar os contratos.
O advogado Jeferson Brandão, investidor (aplicou 392 mil reais na empresa, assim como a esposa e o escritório, cada um com contratos de 115 mil), chegou a ser uma das "lideranças do movimento pró-Glaidson, e esteve presente em quase todas as manifestações, ajudando a organizá-las".
Apesar do seu esforço, com a passagem do tempo entendeu "que a empresa não estava de fato interessada em devolver o dinheiro aos clientes e reconsiderou a posição pró-GAS". Sua atividade constante para reaver o dinheiro perdido fez até com que mudasse de ramo: de especialista em ações contra bancos, mudou seu foco para os golpes financeiros.
Enquanto o processo segue em curso, a quase totalidade dos envolvidos na execução do golpe responde em liberdade. O faraó não teve este benefício por conta dos assassinatos atribuídos a ele. A esposa, Mirelis, fugiu para os Estados Unidos e lá se tornou instagramer e influenciadora, divulgando a alimentação natural e voltando a operar com investimentos, empréstimos e bitcoins.
Venezuelana, morando fora do Brasil, se sentia bastante segura. Em alguns posts, chegou a zombar dos clientes lesados. Mas, depois que foi denunciada pela Polícia Federal brasileira, parece que o governo americano identificou algum problema com o seu visto de entrada no país. Desde então, Mirelis está presa, privando o público das suas indicações diárias sobre finanças.
Lá não é possível postar da cadeia.
Editora Intrínseca (selo História Real), 207 páginas | 1a edição, 2024
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