"Decaído", por Sérgio Ramalho

sábado, setembro 14, 2024 Sidney Puterman


O jornalista tem o propalado "lugar de fala" para escrever a biografia de Adriano da Nóbrega. Por anos ele cobriu o bicho e a milícia para os principais jornais do Rio. Foi descoberto um plano dos criminosos para matá-lo. Ramalho passou a receber proteção da polícia.

O conhecimento acumulado e a qualidade das suas fontes lhe conferiu uma visão privilegiada da trajetória dos principais personagens do crime no Rio de Janeiro. Faz um relato preciso das circunstâncias que levaram à execução de Maninho, o eleito do clã Paes Garcia. Esclarece todo o contencioso existente entre os Nóbrega e os Garcia, com a intermediação de Rogério Mesquita.

Apresenta a formação do Escritório do Crime e todas as suas ramificações. Disseca como a relação entre as polícias do Rio e os ex-policiais que se bandearam para o crime contaminou toda a estrutura.

Pena que a forma como Ramalho costura as informações nem sempre é a melhor. Há um certo embaralhamento na composição da narrativa. O ziguezague cronológico não contribui para o entendimento do leitor. A inegável capacidade do autor em investigar e escrever reportagens contundentes não foi transposta, com os pré-requisitos necessários, para o produto livro.

Talvez seja preciosismo meu. É inegável que o conteúdo é legítimo e substancioso. Ainda assim, me pareceu não ter havido o necessário zelo. Personagens que morreram estão vivos nas páginas seguintes, problemas que na página anterior geraram execuções ainda estão por surgir no próximo parágrafo, ex-amigos que se juraram de morte estão ainda fortalecendo a amizade à medida em que avançamos no texto, os traidores da página anterior ainda são aliados fiéis no novo capítulo.

Ramalho entrega ao leitor a responsabilidade da organização mental do conteúdo. Você, que lê, deve entender à medida em que avança no texto que os diálogos reproduzidos, agora, foram ditos antes dos diálogos que você já leu. Os que já foram condenados e presos estão soltos no novo trecho porque está se falando de um momento anterior.

O leitor tem que ficar ligado o tempo todo, dando cambalhotas para não perder o fio da meada.

Com a legitimidade que possui e o material valioso que reuniu, fica a impressão que o melhor para o autor teria sido reescrever o texto. Isso dito, é essencial enfatizar que mais vale um bom conteúdo - ainda que mal distribuído - do que uma encheção de linguiça sumamente bem organizada.

As informações estão no livro. A trajetória de Adriano da Nóbrega está esmiuçada, do início ao fim. Seus comparsas e concorrentes - muitas vezes ambos são o mesmo sujeito, que apenas mudou de status no seu relacionamento com o matador - são apresentados em detalhes.

Acima de tudo, o convívio espúrio entre Estado e crime é escancarado pelo jornalista. Os matadores que compuseram o Escritório do Crime foram quase todos formados dentro da estrutura do Estado, financiados pelo dinheiro público - como vimos semana passada, em "Milicianos". A movimentação criminosa dos matadores inclui o acesso às dependências do Estado.

"Adriano tinha trânsito livre em vários batalhões e delegacias policiais", deixa claro Ramalho. "Sua influência chegava a setores estratégicos dentro da Delegacia de Homicídios. Não era raro encontrar o ex-capitão circulando pelos corredores da unidade especializada em investigar assassinatos". 

Ou seja, o CEO (como o jornalista se refere a ele) da maior estrutura de mortes por encomenda do país batia perna, colhia informações e assediava funcionários dentro do setor de inteligência governamental responsável por investigar as mortes. O acordo funcionava bem.

"Em troca, os policiais envolvidos no esquema retardavam o andamento de inquéritos, vazavam informações contraditórias à imprensa, criando narrativas falsas para desviar o rumo das investigações", esclarece o autor. O investimento não era baixo. Ramalho menciona "um pagamento de R$ 2 milhões a policiais da delegacia especializada".

O assunto permanece momentoso. Ronnie Lessa, um dos personagens do livro, sócio e parceiro do biografado em alguns empreendimentos (mortes por encomenda, proteção de bicheiros e exploração de comunidades), vem ocupando a primeira página de grandes jornais. Sua delação reitera o que Ramalho expôs em detalhes: magistrados vendem habeas corpus para criminosos e policiais compartilham informações com bandidos.

E você nem precisa gastar seu tempo se escandalizando, adianto eu, porque  em breve tudo vai cair no esquecimento.

A mecânica do Brasil é essa, goste você ou não. Pense bem: nossa amnésia, ou indiferença, é tal, que as dezenas de evidências ligando o presidente da República ao chefe de um grupo de extermínio desceram pelo ralo na memória coletiva. São solenemente ignoradas pelos torcedores do ídolo e, se muito, vez por outra resgatadas pelos torcedores do ídolo adversário. Você sabe quem.

Foram parças por um longo tempo. Há um vasto rol de situações em que Jair Bolsonaro e Flávio Bolsonaro estiveram muito próximos de Adriano da Nóbrega, como descreve Sérgio Ramalho. O autor resgata o primeiro contato, quando Flávio foi assaltado e, ainda por cima, esculachado.

O futuro senador milionário, então ainda vereador, foi reconhecido durante o roubo de seu carro e posto de joelhos no meio da rua, para morrer, com um revólver apontado para a cabeça. Mudaram de ideia. Após alguns tapas e pontapés, os assaltantes mandaram Flávio correr, sem olhar para trás. 

Ser assaltado no meio da rua não era novidade na família. O pai, Jair, também já tinha sido assaltado sete anos antes. Na ocasião, os meliantes levaram sua moto de 350 cilindradas e sua arma, uma pistola Glock 380. Trancou, pianinho. Não reagiu. Mas, já deputado, com o ex-DOI-CODI Nilton Cerqueira à frente da Secretaria de Segurança Pública, Bolsonaro não ficou na mão.

Diferentemente de 99,9% dos cariocas que são roubados, em 48 horas a moto e a arma já estavam reintegradas ao seu patrimônio, recuperadas na favela de Acari. O chefe do tráfico de drogas na favela foi capturado oito meses depois. Jogado na cela às onze da noite, deprimido, enforcou-se.

A mãe e a sogra não acreditaram na versão do suicídio motivado por forte depressão dada pelos policiais. Ainda que descrentes, não tiveram tempo para sustentar a discordância, pois foram assassinadas a tiros no dia seguinte, em São João do Meriti. O bagulho ficou por isso mesmo.

É assim que a banda toca por aqui.

Desculpe a digressão. Volto ao assalto do Flávio. Acompanhado do sargento Fabrício Queiroz (que em 2018 viria a se tornar famoso como operador das rachadinhas dos Bolsonaro), Flávio foi dar queixa na delegacia, aonde foi apresentado ao então tenente Adriano da Nóbrega. 

Começou aí o relacionamento entre estes dois grandes brasileiros, o futuro CEO do Escritório da Morte, o Patrãozão, Adriano da Nóbrega, e o futuro senador da República pelo Estado do Rio de Janeiro, e também dono de uma franquia de bombons de chocolate, Flávio Bolsonaro.

Foi juntar a fome com a vontade de comer.

À medida em que ia subindo na hierarquia do crime, Nóbrega também encurtava seus laços com o inseguro primogênito (que, anos depois, disputando um debate televisivo pela prefeitura do Rio, teve um ataque de pânico e desmaiou, sendo atendido no ar pela candidata Jandira Feghali - o que enfureceu o pai, pelo ridículo da cena). Adriano se tornou o chefe da segurança de Flávio Bolsonaro e o escoltava em todos os seus deslocamentos.

Tendo doravante um amigo influente, o ex-capitão do Bope ia dando polimento na sua ascensão.

Ramalho pontua a trajetória rumo ao topo de Adriano. Mostra o quão habilidoso ele foi na ocupação de espaços. Como se tornou um matador respeitado e um miliciano empreendedor, dono de centenas de imóveis em Rio das Pedras, que mensalmente lhe rendiam milhões.

Relata como sua maior ambição era se tornar bicheiro e ocupar uma posição de prestígio na máfia do jogo. Conta seu avanço progressivo no universo do crime. Como deixou de matar no varejo e ter uma equipe, sob seu comando, para executar os assassinatos (serviço prime que vendia a peso de ouro). Sua ramificação imobiliária e na prestação de serviços, passando pelo fornecimento de gás, energia e tv a cabo. Um tycoon do crime.

O assassinato de Mariele Franco, porém, no qual ele - ironicamente - não estava envolvido, foi o turning point que provocou o desmoronamento da estrutura na qual ele investira tanto tempo e energia. Levou ao escancaramento do Escritório do Crime e à sua identificação. Depois de tantos anos fora do radar da polícia, a Polícia Federal foi acionada e ele se tornou oficialmente procurado.

Resolveu fugir e assumir uma identidade falsa. Vivia Brasil afora como se fosse um fazendeiro milionário em férias. Mas sempre sob risco de ser desmascarado e denunciado (anonimamente, lógico, que ninguém teria peito para dedurar o homem e viver para contar).

Mas era um roteiro pré-escrito. Adriano sabia demais, envolveu-se demais, matou gente demais. Com sua existência sob os holofotes, já não convinha a ninguém. Sua propalada amizade com os Bolsonaro, a essa altura, mais o atrapalhava do que ajudava. Jair era agora o presidente do Brasil.

Enquanto xingava os repórteres no cercadinho, como se estivesse em um botequim cercado por seguranças, Jair se recusava a responder sobre o antigo aliado, a quem homenageara e defendera diversas vezes enquanto deputado. 

Após um ano de fuga e esconderijos, Adriano da Nóbrega, o Gordo, como seu pai o chamava (e ninguém mais), foi cercado em um sítio no interior baiano e executado. Como isso aconteceu, é descrito em pormenores pelo jornalista. Ramalho traz os detalhes eletrizantes da perseguição final.

Um livro virulento, uma cidade perigosa e um Estado omisso. É o que temos por ora.

Editora Matrix, 232 páginas  |  1a edição, 2024

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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