"Eu, Christiane F., a vida apesar de tudo", por Christiane Felscherinow
"Eu, Christiane F., drogada, prostituída..." foi lançado em 1978. Seu impacto foi tal que mesmo hoje permanece na prateleira das livrarias, quatro décadas depois. Deve estar na centésima edição. E a um preço convidativo: está neste domingo por R$ 26,14 nas Casas Bahia. Você já deve ter lido ou, ao menos, ouvido falar nele (se não, vale a pena comprá-lo, custa pouco mais que um
big mac e dá muito mais onda). Eu li, eletrizado, na virada da década de 70. Um pouco mais velho, mas bem menos
rodado, do que a depoente
do título, uma menina classe média de 13 anos que se prostituía nas ruas de Berlim para sustentar o vício. O livro era mesmo uma pancada. Nos anos pós-movimento hippie, de culto às drogas e ao amor livre, em meio a uma atmosfera ainda psicodélica, ela personificava o papel de uma
junkie que ia às últimas consequências contra o sistema. Em um planeta que ainda experimentava os limites da liberdade, o livro achou seu nicho e bateu recordes de venda. Se tornou um clássico da juventude sem meias-medidas. Esta exposição da vida perdida rende até hoje: Christiane F. tem 58 anos e sobrevive há 42 anos dos direitos editoriais da obra, vendida em mais de 30 países e traduzida em 15 idiomas. Ela permanece
junkie, mas agora encarna uma mulher de meia-idade dependente do sistema contra o qual colidiu. Despida do glamour rebelde que fez do seu nome um carimbo de desprezo pelas convenções, sua estória parecia ter tido um ponto final muito tempo atrás. Para surpresa de muitos, porém, há sete anos Christiane abduziu seu pseudo-anonimato e lançou um novo livro, descrevendo como administrou a vida pós-hecatombe do sucesso mundial. Assim que foi publicado aqui, me interessou, na minha
qualidade de leitor moleque do primeiro livro. Sempre instiga ver como alguém lidou com esta mudança de perspectiva. Imagine: você até ontem era uma guria drogada que vivia como pedinte em um parque público e, da noite para o dia, se torna uma popstar. Christiane, após a divulgação internacional do livro, foi capa de revista e cruzou o Atlântico na primeira classe da Lufthansa. Era aguardada em Nova York e em Hollywood, onde deu entrevistas sobre o filme inspirado em sua vida. Temporariamente uma estrela, passou a conviver com outros nomes badalados. Não é pouca coisa. Indo a um show, diz ela que "embarquei no jato emprestado dos Rolling Stones com David Bowie e toda a equipe. Não havia propriamente poltronas, o espaço era ocupado por enormes camas redondas com lençóis de cetim. Tínhamos um banheiro de mármore em pleno céu. Após aterrissarmos, assisti ao show nos bastidores, com Bowie perguntando se eu estava realmente gostando!" A situação tinha potencial para deslocar o eixo da pessoa mais centrada do planeta. Christiane F., a então ex-drogada, não. De pronto ela percebeu que aquele mundo não era muito a cara dela. "Entre Bowie e eu a coisa nunca passou de papo furado. Preciso reconhecer que nossos encontros eram tão superficiais quanto nossas conversas." Christiane F. não desperdiçou muito tempo nesta nova etapa de celebridade. E, diante da questão que propus há pouco, até onde a nova circunstância mudou sua vida, Christiane mata essa minha curiosidade de bate-pronto: "Vida de merda" é o título do primeiro capítulo deste seu "A vida apesar de tudo". Eu, que li seus únicos dois livros, posso dizer que é um puta poder de síntese. E faço coro com sua opinião sem traço de moralismo, porque me droguei o suficiente na juventude para saber o pântano pegajoso em que um drogado se mete - e sei que dali não é fácil sair. Christiane, que nunca saiu, que o diga. "Na verdade, nunca parei com a heroína. Quer dizer, no inicio, sim. Nos primeiros três meses em Zurich." Após algumas tentativas fracassadas de aproveitar a fama, com uma carreira frustrada de atriz e cantora de rock, ela resolveu mudar de ares. Com o frisson em torno do seu nome já esvanecido, passou um tempo na capital suiça, como agregada de um casal de editores de livros de arte. Era dublê de babá dos filhos do casal e assistente de eventos literários. Christiane poderia aí ter dado um novo rumo à sua vida - o que faria com que jamais houvesse um segundo livro
junkie. Mas Zurich foi "meu bem, meu mal" para Christiane. "Zurich era uma cidade pequena e nela circulava muita droga. E um junkie percebe isso de imediato. Então, é claro, precisei ver isso de perto. Em qualquer cidade, é na estação que se encontram os viciados. Não foi dificil achar o parque Platzspitz, perto da estação. Um lugar inacreditável. Nunca tinha visto coisa assim. No Platzspitz tudo se passava às claras. (...) As pessoas se serviam em público, como se fosse um estande de salsichas. Picavam-se ali mesmo, com centenas de pessoas rolando no chão. Muitas tinham o corpo coberto de feridas, outras pareciam mortas. Eram milhões de seringas jogadas fora de qualquer jeito. Parecia um lixão." Christiane parece narrar um laboratório de figuração para o clipe "Thriller", de Michael Jackson. "Centenas de drogados -
Drögeler, como diziam os moradores de Zurich - se juntavam nesse parque, que certos dias chegava a reunir três mil deles. (...) Alguns arrancavam as roupas, procurando uma veia intacta no corpo infestado de feridas purulentas. Mesmo no inverno. Picavam-se na virilha ou no pescoço, com as outras veias já inflamadas. Corpos semidespidos ficavam jogados no gramado - azuis de frio, alguns já mortos." Para você ver que esse
zoombie park do Primeiro Mundo não ficava nada a dever às nossas cracolândias. Tendo ultrapassado incontáveis síndromes de abstinência ao longo da sua movimentada biografia, neste novo livro Christiane continua perdida e valente. E sempre derrotada pela heroína. A narrativa tem seus altos e baixos, mas cumpre seu propósito. E mesmo quem não leu seu primeiro livro não terá dificuldade em se situar. Ela abre revisitando a infância e os principais momentos publicados na edição dos anos 70. Em seguida narra o ambiente de estrelato em que se meteu após a repercussão estrondosa do livro em todo o planeta. Com apenas 15 anos tinha no banco uma conta milionária, mas não podia tocar no dinheiro. Envolvida com jovens tão sem rumo quanto ela, se manteve dedicada a uma sucessão de oportunidades perdidas, alternando com mergulhos na
esgotosfera - incluindo dez meses encarcerada em uma penitenciária berlinense e incontáveis tentativas de se manter afastada da droga. Maior de idade, a montanha de dinheiro à mercê dela no banco não a salvou de uma rotina banal de viciada. Mesmo
rica, permaneceu vivendo a vida de antes, e você pode colocar nessa conta momentos de miséria e retorno eventual à prostituição. Há um apelo hippie na sua temporada na Grécia, onde viveu uma
love story pra lá de tumultuada com o grego Panagiatis. Seu novo amor virou um relacionamento abusivo e destrambelhado, com viagens de ácido pela Índia e assaltos à banco na Europa. Com o grego fez um dos seus muitos abortos, até que resolveu virar a chave e se tornar mãe. O pai era um rapaz desajustado quinze anos mais jovem. Na nova função materna, Christiane F. se revelou mãe coruja e careta. E, com o filho a tiracolo, ela prosseguiu dando cabeçadas Europa afora, não fosse ela quem é. Já no trecho final do livro, ela capricha no quesito "lambança". Assessorada por um personagem sombrio e mal explicado, um tal de Beckermann, ela raptou o próprio filho e fugiu para Amsterdam. A partir deste
imbroglio o relato perde clareza e a compreensão de certas passagens se torna nebulosa. Não sei se a responsável pela falha narrativa é a
ghost-writer, Sonia Vujkovic, ou se, também possível, a biografada não forneceu ou mutilou informações. Mas este Beckermann, chamado por ela própria de um mau-caráter que a prejudicou e roubou, tem uma descrição cheia de lacunas. Não nos fica claro como ele conquistou suas prerrogativas - e é também incoerente sua apologia como chefão do crime em Berlim, rebaixando-se depois a atuar como um ladrão barato. O bagulho é confuso. Parece mesmo é que, na sua fuga do serviço de proteção à criança da Alemanha (não esqueçamos que, como viciada, ela tinha que se prestar a normas rígidas de acompanhamento), alguma coisa Felscherinow e Vujkovic esqueceram de contar ao leitor. Por fim, o livro encerra com dois posfácios: o da autora e o da personagem. Vujkovic é convencional e conta como conseguiu a concordância de Christiane para um novo livro. Já o encerramento assinado por Christiane é absolutamente alucinado, com ela se revelando perseguida por fantasmas e por agentes secretos. Os espiões, travestidos de vizinhos, ela reputa à mando da mãe. Inconvenientes, estão em todo lugar onde ela vai e invadem sua casa todas as vezes em que ela sai. Cheguei até a pensar que estes "disfarçados" fossem alguma troça dela com o leitor ingênuo. Nada, era mesmo paranoia explícita e constrangedoramente registrada para a posteridade. A dose cavalar de alteradores químicos de consciência que ela inseriu na corrente sanguínea vieram um dia cobrar seu preço. Pena. A corajosa Christiane F. acabou uma velha perturbada.
Bertrand Brasil, 264 páginas
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