"A trégua", por Mario Benedetti

terça-feira, janeiro 28, 2025 Sidney Puterman

 




Montevidéu. Fim dos anos 50. Um viúvo faz anotações em seu diário. Está ansioso, às portas da aposentadoria. Tem 49 anos e três filhos adultos. Bate o ponto em um escritório. Acha o trabalho enfadonho e a vida pregressa enfadonha. A vida que lhe resta à frente também parece enfadonha.

Suas reflexões, as lembranças da esposa, seu relacionamento distante com os filhos - que ainda moram com ele - e a rotina modorrenta da repartição são a matéria-prima do texto.

"Nenhum dos meus filhos se parece comigo", resmunga. "Em primeiro lugar, todos têm mais energias do que eu, parecem sempre mais decididos, não estão acostumados a duvidar".

Se com os filhos seu olhar é indulgente, de ressentida inferioridade, com as subordinadas ele pesa mais a mão. Vai direto no osso. Sem dó, nem comiseração. É um texto publicado no início da década de 60. Ainda não existia o politicamente correto. Naquela época, cada um escrevia o que queria. 

"Agora sou totalmente chefe: tenho nada menos que seis funcionários sob as minhas ordens", enumera, para se queixar que "pela primeira vez, uma mulher". O personagem é crítico. "Sempre desconfiei delas em matérias de números. Além disso, outro inconveniente: durante os dias do período menstrual, e até mesmo nos que os antecedem, se normalmente forem espertas, elas ficam meio atarantadas; e, se normalmente atarantadas, tornam-se completamente imbecis".

Não sei se havia muitas mulheres leitoras no Uruguai daqueles tempos. Vai ver que não.

Li o livro quando fui passar alguns dias na capital uruguaia. Não viajei por mero turismo. Fui por paixão. Queria ver de perto o jogo de volta da semifinal da Copa Libertadores. A da "La Gloria Eterna". Se enfrentavam o Club Atletico Peñarol, El Capo del Continente, e o Botafogo de Futebol e Regatas, El Glorioso, o time carioca que ostenta por nome o bairro em que nasci.

Botafogo.

Eu tentava me ambientar com o texto de Benedetti - que é bom, mas introspectivo e arrastado. Já nas ruas o clima era mais quente, sanguíneo. Os dirigentes esportivos e até os políticos uruguaios promoviam uma caçada aos brasileiros. A recomendação oficial era que não se falasse português em público, porque a polícia não teria como proteger os brasileños de eventuais ataques trogloditas.

"Sexta, 26 de julho. Oito da manhã. Estou tomando o café-da-manhã no Tupí". Benedetti, ou melhor, seu personagem, comia media-lunas no centro da cidade. Em 30 de outubro, uma quarta, sessenta e cinco anos depois, eu tomava distraidamente o meu cappucinno numa ruela de Punta Carretas.

"Aprendi a gostar desse monstro folclórico que é o Palacio Salvo. Não é sem razão que ele figura em todos os cartões-postais para turistas", diz o autor. Lógico que figura. Não há absolutamente nada em Montevidéu que possa simbolizar a cidade, além desse palácio e de um letreiro na praia.

No letreiro está escrito, em letras coloridas: "Montevideo". Tirei uma foto lá. Tirei no Salvo também.

"É quase uma representação do caráter nacional", continua Benedetti. "Rude, deselegante, espalhafatoso, simpático". É, pode ser esse o "caráter nacional". "Simpático" também, desde que não lhe agridam na rua por conta do país em que você nasceu.

Benedetti, por meio do seu personagem viúvo, reclama dos diretores da empresa em que trabalha. Um deles teria dito que "o grande erro de alguns homens de comércio é tratar seus empregados como se estes fossem seres humanos". Simpáticos, os diretores uruguaios.

Paguei 500 pesos locais, o equivalente a R$ 80,00, pelo tour pelo Palacio Salvo, que consiste em pegar o elevador até o teto do prédio, onde ficam as antenas de tv a cabo. Sair do elevador é difícil, ele dá de cara para uma parede (?). Parece que não planejaram bem esta parte.

Na descida das antenas, após uma apreciação da vista, para-se em dois andares. Um para trocar de elevador - para um modelo mais antigo e pitoresco - e outro para circular por um salão vazio, de onde se desce ao térreo por uma escadaria encimada por um grande painel.

"É tão feio, mas tão feio, que deixa a gente de bom-humor". Talvez eu ficasse, se fosse mais barato.

De outra, o viúvo comenta a rebeldia do namorado da filha. "Sente com intensidade máxima um conformismo agressivo, no qual ainda falta um pouco de coerência", crê. "Parece-lhe funesta a apatia de nossa gente, a carência de impulso social, a democrática tolerância ante a fraude".

Inevitável comparar. Talvez não sejamos apáticos, mas "tolerantes à fraude" nos cabe. Hermanos.

No jogo que fui ver, os uruguaios tentaram nos engabelar, armando uma grande fraude. Haviam tomado um sacode no jogo de ida. Cinco a zero. Com a auto-estima na altura do saco, tentaram criar um clima, barrando a entrada da torcida brasileira (entramos) e acusando os cariocas de terem covardemente surrado los pibes, presos no Rio pela PM.

Milonguices. Os cisplatinos acabaram eliminados mesmo assim. Boludos.

Mas o assunto aqui é o livro, não o jogo. Mario Benedetti escreve bem. Talvez a capa pudesse ser melhor. A discreta sensualidade da imagem não retrata o espírito do texto. A contracapa poderia ser mais comedida também. O redator responsável, empolgado com a missão, deu uma exagerada:

"A trégua é uma das obras mais importantes da literatura latino-americana contemporânea".

Não é não.

Editora Alfaguara, 180 páginas  |  10a reimpressão  |  Tradução  Joana Angélica D'Avila Melo

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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