"Topa tudo por dinheiro", por Mauricio Stycer
Em meio a tantas biografias de meia-tigela que existem por aí (por mais que eu tente evitar, vez por outra levo gato por lebre), sobre os mais variados sujeitos, essa aqui escrita pelo Mauricio Stycer é uma que vale o que pesa. Fala pouco e bem. Biografa o homem de negócios. Radiografa o negócio em si. O mercado da comunicação. O universo televisivo no Brasil, dos anos 60 aos anos 2000.
Já a vida pessoal do biografado, Mauricio pula. "Evitei escarafunchar aspectos da vida pessoal de Silvio nesse livro", explica o autor. "Deixo essa tarefa para a infinidade de biógrafos que já fizeram e ainda farão isso", esclarece.
A biografia, você sabe, é sobre Silvio Santos, morto mês passado. Foi escrita em 2018, quando o então octagenário apresentador ainda se mantinha no ar, todo serelepe. Ou quase.
Sempre tive curiosidade pelo personagem; mas comprei o livro também porque Silvio faz parte da minha memória afetiva. Cresci escutando sua risada, em uma época em que o aparelho de TV era onipresente. Era posto em um altar no melhor ponto da sala (tinha que ver se o lugar era bom para a antena). Só exibia três ou quatro canais, que "funcionavam" até pouco depois da meia-noite.
Depois dessa hora as emissoras saíam todas do ar e a sensação de solidão se tornava absoluta.
Pelo menos esse era o meu sentimento notívago de guri. Por volta das onze havia a "Sessão Coruja", encerrando a programação. O bagulho era tão pomposo que tinha até apresentadora. Uma espevitada senhorinha de voz fanhosa, a Célia Biar, opinava que o filme era bom por isso ou por aquilo, nos convidando a vê-lo - por ser palpitante, ou romântico, ou assustador.
E falava isso sob a luz de um abajur, sentada numa poltrona rococó, ao lado de uma coruja zoiuda.
Às sextas e sábados rolava a "Sessão Dupla", em que um longa-metragem era seguido por outro, fazendo com que a TV Globo ficasse no ar até quase quatro da matina. Para mim, moleque, era uma aventura. Eu gostava dos filmes velhos, e também das novelas, "Casos Especiais", séries, enlatados... mas achava enjoados os programas de auditório, como os do Silvio Santos.
Mesmo assim, ele era a cara do domingo. A gente escutava a voz dele e sabia que era domingo. E domingo é uma coisa boa. Então, não dá para desconectar o telespectador mirim da entidade Silvio Santos - o que aguçou meu interesse, quando vi uma biografia sobre o apresentador.
Atirei no que vi e acertei no que não vi. O que o botafoguense (tamo junto) Stycer escreveu é muito maior e melhor do que uma biografia convencional sobre um animador de auditório. Ele fala, sim, do camelô que vendia carnês e bugigangas na tevê, mas, principalmente, da rota bajulatória do concessionário de canais de televisão e dono de banco.
A propósito, essa coisa de "camelô" dá pra por na rubrica da mitologia sobre o Silvio Santos - cujo nome de batismo é Senor Abravanel, descendente de uma milenar família judia. Stycer enfatiza o quanto o apresentador inventou, mistificou e mentiu sobre sua vida pessoal. Acho que dá pra incluir essa estória de ter sido camelô nessa construção da lenda.
Após se tornar famoso na TV, Silvio se categorizava como "artista". E achava que a vida dos artistas deveria ser "misteriosa". Tanto, que alternava em se dizer solteiro, na maior parte das vezes, com outras em que dizia ter "oito esposas". A esposa verdadeira, Cidinha, morreu de câncer em 1977 e posteriormente o artista se declarou arrependido por escondê-la.
Mas, antes de ser famoso, Silvio alugava espaço na programação televisiva da época, cheia de espaço vazio e carente de dinheiro. Comprou um negócio falido de um colega de TV - o "Baú da Felicidade", do Manoel da Nóbrega - e, com seus talentos de businessman e apresentador, fez da arapuca um baú de dinheiro. Para ele mesmo.
Tenho lugar de fala. Minha avó, ou minha mãe, sei lá (ambas telespectadoras assíduas do animador), caíram na conversa do Silvio e fizeram o tal carnê. A promessa era que você pagaria x por mês durante um ano e poderia ser sorteado e ganhar prêmios (improváveis). Se não ganhasse, trocaria o dinheiro gasto com o carnê por tralhas variadas nas lojas do Baú.
Como a inflação já comia solta, ao cabo de um ano um valor de, digamos, R$ 50,00 por mês (R$ 600,00 no ano) dava para trocar por uns quatro copos e uma bandeja. Negoção da china pro Silvio.
Stycer nos conta como - com os horários na TV e o carnê - o homem foi de vento em popa. Era líder de audiência e empresário bem-sucedido. E aí se segue toda a sua determinação em obter uma concessão de canal de televisão, sua bajulação da ditadura, seus negócios escusos e sua astuta relação com outros magnatas da mídia.
Sem contar a sua aventura como banqueiro, que deixou um rombo de 4,3 bilhões de reais. Quem investiu se f..., porque o banco quebrou e o Silvio - rárárá - não pagou ninguém. Nem perdeu um mísero saca-rolha do próprio patrimônio. Foi a Brasília, se reuniu com o presidente e saiu dali com tudo resolvido. O governo (ou seja, nós) pagaria o pato.
Ninguém reclamou, muito menos as colegas de auditório. O próprio Silvio já tinha dito, em uma entrevista de 1987 ao Estadão: "O povo brasileiro é manso, não é lutador como o povo dos Estados Unidos". Ainda arrematou: "O brasileiro fica satisfeito com um bife".
Em outra entrevista, muitos anos depois, em 2010, foi perguntado sobre a quebra do seu Banco Panamericano. "Em público, questionado por jornalistas, fingiu demência", escreveu Stycer. Para Monica Bergamo, da Folha, negou saber quem era Rafael Palladino (o principal executivo do banco e primo da Iris, esposa do Silvio Santos):
"Palladino? Que Palladino? Nunca fui ao banco. Nem sei onde é o prédio."
Para outros, Silvio admitiu ter ido ao banco "uma única vez". A quebra da instituição não aconteceu por acaso, nem por má gestão. O autor relata uma fraude.
"A fraude no banco, revelado no fim de 2010, teve origem em uma prática, comum no mercado financeiro, de venda de carteiras de empréstimos entre bancos", explica Mauricio. "O golpe se dava no momento em que um programa de computador devolvia os empréstimos vendidos à conta original, o que inflava ativos e receitas e reduzia despesas".
Destaco eu que, pelas datas apresentadas, a quebra do banco do Silvio ocorreu no mesmo período da "marolinha" (como então o presidente Lula adjetivou a crise financeira que desestabilizou a economia mundial, inclusive a brasileira). Provável que o Silvio (ou o tal Palladino) tenha apostado no crescimento do subprime e, como tantos outros bancos, tenha ruído quando a bolha furou.
Mas o autor não aprofunda o tema.
O livro mesmo é esculpido em seis grandes capítulos, sendo um deles dedicado às suas relações com os outros empresários do setor ("Entre Roberto Marinho e Edir Macedo") e outro à sua escancarada puxação de saco dos ocupantes do poder ("Sou um office boy de luxo do governo").
O último fala da rede de televisão que criou, o SBT. Certamente a mais peculiar programação de todos os tempos, sempre subordinada aos interesses comerciais do seu proprietário. Não à toa, os próprios funcionários diziam que SBT significava "Silvio Brincando de Televisão".
Parece que há duas semanas foi lançado nos cinemas o filme "Silvio". O pouco que li a respeito diz que o filme é ruim demais. Percebi certo consenso. Tô fora. Já o livreco, modesto, é bom.
A capa é acanhada, o formato é semi-bolso e a "área de cobertura" é limitada. Mas, pela inteligência e agudeza com que contou a história de Silvio Santos, Stycer fez o suficiente para colocar o seu livro na prateleira de cima.
Editora Todavia, 256 páginas | 1a edição | Copyright 2018
0 comentários: