"Zelota", por Reza Aslan
Fui iniciar a leitura desse livro em Belém, porque Jesus nasceu em Belém. Eu já tinha comprado o livro; por uma outra razão, resolvi ir a Belém; juntei ambos, porque achei que juntos ficariam bem. Mas o autor de "Zelota" me disse logo no início que Jesus não era de Belém e que isso era uma farsa promulgada através dos tempos. Uma mistificação. Jesus, o Nazareno, era de Nazaré. Paciência. A Belém em que estive, a do Pará, já não era a da Judéia, mas em compensação, oferecia uma longa rua chamada Nazaré. Fui até ela e acomodei os fatos: assim, a verdade é que estive em Belém e em Nazaré, no período em que lia o livro. Com minha consciência apaziguada e minha pendência particular resolvida, vamos ao que importa, que é o livro. O artigo de jornal que originalmente me motivou a comprar a edição dizia que a obra versava sobre a busca do Cristo histórico - e que em nada abalaria as convicções religiosas dos leitores. Bem, só se for para quem apenas folhear ou não entender nada do que está escrito, porque a pesquisa de Aslam dá um verdadeiro ippon em tudo o que se crê tenha sido a passagem de Jesus pelo planeta. Antes de mais nada, adianto que a obra é brilhante. A contextualização política da Palestina nas décadas anteriores e posteriores à chegada de Jesus nos remete a um mundo em tudo parecido com o nosso - só que distante no tempo, sem tecnologia e dominado pela cobiça sem escrúpulos. O autor inicia com um corte de tempo e espaço na história de Jerusalém, analisando a compulsão religiosa e messiânica do povo judeu e a rede de poder que entremeava os puristas, os sacerdotes e o romano invasor. Retira da narrativa do período a predominância da passagem de Jesus e permite que a dinâmica histórica ao longo do século dite seu curso, sem se subordinar à trajetória de um personagem específico (não importando que ele fosse o mais importante personagem de todos os tempos). Em tempos dados à mais ostensiva carnificina, Reza Aslan descreve os governantes da Judéia e seus vínculos e alianças com Roma - acordos onde não raro a matança indiscriminada era instrumento de controle e persuasão. Nos apresenta o "zelo", conceito judeu de purismo étnico e religioso, cujos seguidores eram chamados "zelotas", entre os quais crê se alinhe Jesus de Nazaré. Após a decupação do período que se encerra com a destruição de Jerusalém e o quase extermínio do povo judeu - início da diáspora que só veio a iniciar seu processo de reversão 20 séculos depois - (que é o primeiro bloco da obra), o autor retorna à passagem de Jesus. Enfatiza como um judeu, cujo comportamento em nada diferia das dezenas de outros candidatos a Messias que povoaram aqueles tempos, pregou aos judeus defendendo a pureza da fé judaica, sua ojeriza às práticas sacrílegas do Templo corrupto e sua não submissão a Roma. E, importante para a historiografia, atribui a responsabilidade pelo relato da passagem de Jesus sobre a Terra a dois grupos: o grupo de Jerusalém, liderado por Pedro e, principalmente, por Tiago, o Justo, irmão de Jesus; e o grupo helênico, que já pregava sobre Jesus em Roma, em grego, idioma estrangeiro em que foram escritos todos os evangelhos (a propósito, Aslan cruza o período histórico da disseminação de cada um deles, demonstrando a influência de um sobre outro e como trechos eram reescritos, gerando gradativamente mudanças de percepção e conteúdo). Sobremodo, expõe como os apóstolos mantiveram os valores defendidos por Jesus, cuja base era o respeito (o "zelo") pela fé judaica. Se debruça sobre a nova linha estabelecida por Paulo e seus violentos embates com Tiago e os demais apóstolos (diante das acusações desses de que ele não havia convivido com o Mestre, ele se dizia mais autorizado do que os demais, porque Jesus teria aparecido para ele pessoalmente e era quem o instruía). Mostra como Paulo recriou a passagem de Jesus - não mais um judeu pregando a fé judaica, mas um judeu renegado pregando uma nova fé -, versão que se impôs à posteridade. Crê Reza Aslan que o Jesus que é a representação imortal da fé cristã, o Deus encarnado, deriva da forma com que Paulo descreveu, muitos anos depois de ocorrida, a passagem pela Terra de alguém que ele nunca viu, se opondo à narrativa dos que conviveram com ele e também veneravam seus ensinamentos. Embora tenha me deixado fascinar pelo livro, não tenho conhecimento para incensá-lo ou desacreditá-lo. A interpretação que o autor dá à construção da narrativa evangélica é convincente, original e embasada - para refutá-la, só uma outra obra, que trilhe os passos seguidos pelo autor e os desminta. Até lá, permanecerei fortemente impressionado pela visão desse Jesus histórico, ainda grandioso, porém mais enigmático do que aquele em que sempre cri.Editora Zahar, 281 páginas
0 comentários: