"Zelota", por Reza Aslan

terça-feira, outubro 07, 2014 Sidney Puterman

Fui iniciar a leitura desse livro em Belém, porque Jesus nasceu em Belém. Eu já tinha comprado o livro; por uma outra razão, resolvi ir a Belém; juntei ambos, porque achei que juntos ficariam bem. Mas o autor de "Zelota" me disse logo no início que Jesus não era de Belém e que isso era uma farsa promulgada através dos tempos. Uma mistificação. Jesus, o Nazareno, era de Nazaré. Paciência. A Belém em que estive, a do Pará, já não era a da Judéia, mas em compensação, oferecia uma longa rua chamada Nazaré. Fui até ela e acomodei os fatos: assim, a verdade é que estive em Belém e em Nazaré, no período em que lia o livro. Com minha consciência apaziguada e minha pendência particular resolvida, vamos ao que importa, que é o livro. O artigo de jornal que originalmente me motivou a comprar a edição dizia que a obra versava sobre a busca do Cristo histórico - e que em nada abalaria as convicções religiosas dos leitores. Bem, só se for para quem apenas folhear ou não entender nada do que está escrito, porque a pesquisa de Aslam dá um verdadeiro ippon em tudo o que se crê tenha sido a passagem de Jesus pelo planeta. Antes de mais nada, adianto que a obra é brilhante. A contextualização política da Palestina nas décadas anteriores e posteriores à chegada de Jesus nos remete a um mundo em tudo parecido com o nosso - só que distante no tempo, sem tecnologia e dominado pela cobiça sem escrúpulos. O autor inicia com um corte de tempo e espaço na história de Jerusalém, analisando a compulsão religiosa e messiânica do povo judeu e a rede de poder que entremeava os puristas, os sacerdotes e o romano invasor. Retira da narrativa do período a predominância da passagem de Jesus e permite que a dinâmica histórica ao longo do século dite seu curso, sem se subordinar à trajetória de um personagem específico (não importando que ele fosse o mais importante personagem de todos os tempos). Em tempos dados à mais ostensiva carnificina, Reza Aslan descreve os governantes da Judéia e seus vínculos e alianças com Roma - acordos onde não raro a matança indiscriminada era instrumento de controle e persuasão. Nos apresenta o "zelo", conceito judeu de purismo étnico e religioso, cujos seguidores eram chamados "zelotas", entre os quais crê se alinhe Jesus de Nazaré. Após a decupação do período que se encerra com a destruição de Jerusalém e o quase extermínio do povo judeu - início da diáspora que só veio a iniciar seu processo de reversão 20 séculos depois - (que é o primeiro bloco da obra), o autor retorna à passagem de Jesus. Enfatiza como um judeu, cujo comportamento em nada diferia das dezenas de outros candidatos a Messias que povoaram aqueles tempos, pregou aos judeus defendendo a pureza da fé judaica, sua ojeriza às práticas sacrílegas do Templo corrupto e sua não submissão a Roma. E, importante para a historiografia, atribui a responsabilidade pelo relato da passagem de Jesus sobre a Terra a dois grupos: o grupo de Jerusalém, liderado por Pedro e, principalmente, por Tiago, o Justo, irmão de Jesus; e o grupo helênico, que já pregava sobre Jesus em Roma, em grego, idioma estrangeiro em que foram escritos todos os evangelhos (a propósito, Aslan cruza o período histórico da disseminação de cada um deles, demonstrando a influência de um sobre outro e como trechos eram reescritos, gerando gradativamente mudanças de percepção e conteúdo). Sobremodo, expõe como os apóstolos mantiveram os valores defendidos por Jesus, cuja base era o respeito (o "zelo") pela fé judaica. Se debruça sobre a nova linha estabelecida por Paulo e seus violentos embates com Tiago e os demais apóstolos (diante das acusações desses de que ele não havia convivido com o Mestre, ele se dizia mais autorizado do que os demais, porque Jesus teria aparecido para ele pessoalmente e era quem o instruía). Mostra como Paulo recriou a passagem de Jesus - não mais um judeu pregando a fé judaica, mas um judeu renegado pregando uma nova fé -, versão que se impôs à posteridade. Crê Reza Aslan que o Jesus que é a representação imortal da fé cristã, o Deus encarnado, deriva da forma com que Paulo descreveu, muitos anos depois de ocorrida, a passagem pela Terra de alguém que ele nunca viu, se opondo à narrativa dos que conviveram com ele e também veneravam seus ensinamentos. Embora tenha me deixado fascinar pelo livro, não tenho conhecimento para incensá-lo ou desacreditá-lo. A interpretação que o autor dá à construção da narrativa evangélica é convincente, original e embasada - para refutá-la, só uma outra obra, que trilhe os passos seguidos pelo autor e os desminta. Até lá, permanecerei fortemente impressionado pela visão desse Jesus histórico, ainda grandioso, porém mais enigmático do que aquele em que sempre cri.

Editora Zahar, 281 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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