"Medicina dos horrores", por Lindsey Fitzharris
Há exatos 120 dias eu fazia um
tour de maca (rodinhas top) em direção à sala de cirurgia. Tudo sob controle. A intervenção era eletiva e eu tinha sido aprovado nos exames prévios. Metódico, eu, entre outros detalhes mais importantes, tinha também vasculhado as prateleiras em busca do livro mais adequado para me fazer companhia no
happening cirúrgico. Ao dar de cara com este "A Arte do Retalhamento" ou "A Arte do Açougueiro" (numa tradução livre; a edição em português mereceu o título "Medicina dos Horrores"), me empolguei. Este era o livro para a ocasião. Não que eu tivesse um prognóstico funesto, temesse uma carnificina ou estivesse apavorado - não, eu estava otimista que seria um sucesso (quanto a estar ou não apavorado, eu estava tão apavorado quanto qualquer sujeito que vai entrar na faca). Mas o título vinha a calhar: a obra de Fitzharris, se fosse como eu imaginava, seria um conveniente
sedativo. É que as cirurgias do século XIX deveriam ser tão aterrorizantes e sanguinárias que, ao ler sobre elas, acharia qualquer coisa feita hoje em dia tão tranquila quanto comer pipoca no cinema, e isto, imaginei, me tranquilizaria. Bem, toda minha programação literária deu com os burros nágua. Acabou que eu só vim a ler o livro muitas semanas após a cirurgia. Ninguém lá em casa achou que ia pegar bem eu levar um livro com aquela capa para o hospital. Podia enfurecer a equipe médica e os caras, irritados, esquecerem uma broca ou um serrote dentro de mim, ou cortarem do lado errado, ou colocarem red bull em vez de morfina no meu tubo. Em suma, não levei o livro, não teve
vendetta e deu tudo certo. Apesar de eu ter enchido o saco do doutor, do assistente do doutor, da secretária do doutor, das enfermeiras e enfermeiros, todos me trataram bem e, principal, fizeram um grande trabalho. Hoje estou consertado e conquistei o salvo-conduto para me divertir com o livro proibido. Que, por sinal, é bom demais e não é nada daquilo. Se começa entregando o prometido - as horripilantes cirurgias e amputações sem anestesia da primeira metade do século XIX -, o que vem logo a seguir é ciência de primeira linha, só que em linguagem para ignorantes (eu, no caso). O texto é fundamentalmente uma biografia de Joseph Lister, o ser humano abençoado que descobriu como evitar que as feridas pós-cirúrgicas infeccionassem e matassem o paciente - mesmo após as cirurgias que, exceção das exceções, aparentavam ter sido bem-sucedidas. Você talvez não fizesse ideia (eu não fazia), mas a situação à época era tão precária que, antes da revolução trazida por Lister, havia hospitais que exibiam um percentual de perda dos pacientes da ordem de 90% - e isso, repare, apenas sobre o número de cirurgias que tinham tido êxito, o que estava longe de ser a regra. Assim, para evitar que os operados morressem em seguida à cirurgia, os cirurgiões precisavam ser rápidos - pois já se sabia que quanto mais tempo o paciente ficasse aberto, sangrando, menores as chances de sobrevivência. Para exemplificar este afã pela velocidade, há o famoso caso da cirurgia com um percentual de fatalidade de 300%: o cirurgião trabalhava tão depressa que decepou três dedos do seu assistente e cortou o casaco de um espectador, ao lado da mesa; o paciente e o assistente morreram de gangrena e o espectador teve um ataque cardíaco ao se ver cortado, também morrendo. Acidentes assim, com o bisturi, não eram raros, pois os grandes especialistas da época operavam em tempos que iam de 30 a 60... segundos! Era o tempo que precisavam para serrar uma perna e amarrar os vasos (os colegas de um dos cirurgiões mais renomados de Londres diziam que, quando ele fazia uma amputação, "o brilho do seu bisturi era seguido tão instantaneamente pelo som da serra nos ossos que as duas ações pareciam ser quase simultâneas"). Emendavam o sujeito e já partiam para a próxima vítima. Não lavavam a serra de amputação, não limpavam a mesa onde o infeliz seria operado, nem enxaguavam as mãos. Nada muito diferente de um açougue - daí o título em inglês ("
The Butchering Art"), à cuja tradução me referi acima. Os hospitais eram de tal maneira infectados, que alguém que tinha sido operado sobre a mesa da cozinha da própria casa tinha quatro vezes mais chances de sobrevivência do que um paciente convencionalmente internado. O problema para minimizar os óbitos é que ninguém tinha um cirurgião na cozinha: eles estavam todos nos hospitais, matando os pacientes que pretendiam curar. Também conhecidas como "Casas da Morte" (muitos hospitais só admitiam pacientes que deixassem um depósito-caução para cobertura dos custos do enterro), as instituições hospitalares eram um antro de sujeira e imundície, uma verdadeira incubadora de agentes infecciosos (como você mesmo pode avaliar por esta passagem casual: "Os visitantes do St. George's Hospital descobriram fungos e larvas crescendo nos lençóis úmidos e sujos de um paciente com fratura exposta"). O livro começa contando destas cirurgias apavorantes e catastróficas de meados do século retrasado, justamente abordando a chegada da miraculosa anestesia. Até então era na marra. A tal ponto que os cirurgiões mais fortes eram os mais eficazes. Que tempos. Para alívio da humanidade, porém, em meados do século XIX a dor excruciante foi expulsa do teatro de operações: a adoção do éter passaria a ninar os pacientes no reino de Morfeu, que dormiam como bebês enquanto seus membros queridos eram separados do próprio corpo. Como anunciou para a plateia o mais célebre dos cirurgiões desta época truculenta, Robert Liston (1,90m de altura, 118 quilos), no momento de aplicar pela primeira vez em solo inglês o miraculoso éter em uma vítima: "Senhores, hoje vamos experimentar um truque ianque para deixar os homens insensíveis". O mordomo Frederick Churchill, 36 anos, a vítima, acordou após sua perna já ter sido amputada e perguntou: "E então? Quando começará a cirurgia?" A audiência, aos risos, rompeu em aplausos. Ponto para nós, pacientes. Mas estávamos bem longe de algo que pudesse ser timidamente chamado de "vitória". É que, com o advento da anestesia, as cirurgias se tornaram mais frequentes, mais profundas e invasivas, e, paradoxalmente, geraram um substancial crescimento no número de mortes hospitalares (a ausência de dor aumentou a quantidade de intervenções cirúrgicas, e os cirurgiões puderam então explorar mais o corpo humano aberto, sem que o pobre coitado estivesse amarrado ou se debatendo). É aí que entra Joseph Lister, um jovem
quacker em dúvida sobre seguir a carreira religiosa ou científica. Para sorte do planeta, perdemos um pastor. Para interpretarmos bem a importância do que ele fez pela medicina (e por nós, de uma maneira geral, e por mim, que, como disse, passei por um procedimento invasivamente
serrante há pouco), convém detalharmos mais os tempos em que vivia este médico inglês, na transição da primeira para a segunda metade do século XIX. Como eu vinha relatando, os cirurgiões faziam um trabalho braçal
aparentado da medicina - a tal ponto que os hospitais pagavam mais ao catador-chefe de insetos do hospital (acredite, a quantidade de piolhos era tal que tinha uma equipe para catá-los) do que aos cirurgiões. A sociedade ocidental, como vimos, ainda era tão atrasada que maridos punham mulheres e filhos à venda nos jornais (um certo sr. Osborn "concorda em ceder sua mulher, Mary Osborn, e seu filho ao sr. William Sergeant pela soma de 1 libra, considerando nada mais ter a reclamar"), assassinos enforcados tinham sua pele transformadas em bolsas e outras bugigangas, havia clubes dos "sem nariz" (o
nariz em sela era uma grotesca deformidade provocada pela sífilis, enfermidade então sem cura) e cabia aos cirurgiões, os tais mal-pagos, mandar as "enfermeiras embriagadas do turno da noite serem levadas para dentro em macas, todas as noites". Apesar de todo este panorama médico apocalíptico, na época as pessoas se consideravam na vanguarda da modernidade - ainda que desconhecessem por completo os processos da contaminação e o imperativo profilático da limpeza. Eu disse "limpeza"? Quem a defendesse era alvo de deboche. Mesmo os números mais contundentes vinham sendo ignorados. Um contemporâneo de Lister, o médico húngaro Ignaz Semmelweiss, entendeu a importância da assepsia, mas foi repudiado pela própria comunidade médica. A dedução de Semmelweiss foi notável: parturientes morriam muito mais nas mãos de médicos do que na mão de parteiras. Seus estudos o levaram a concluir que os médicos que trabalhavam nas autópsias levavam nas mãos as partículas cadavéricas para o ventre das mulheres em trabalho de parto - daí para a infecção e a morte, era questão de dias. Médico assistente no hospital de Viena, Semmelweiss, resoluto, determinou a colocação de uma bacia de água sanitária no hospital. Quem passava da sala de dissecação, onde o trabalho era cortar os mortos, em direção às enfermarias, onde se tratavam os vivos, era obrigado a lavar as mãos. Em abril de 1847 a taxa de mortalidade era de 18,3% das parturientes (pasme: a cada cinco crianças nascidas, enterrava-se uma mãe). Após a adoção da água sanitária, o número caiu para 2,2% (junho), 1,2% (julho) e 1,9% (agosto). Mas, aqui como lá, os seres humanos têm graves problemas quando vêem suas convicções e seu status serem atacados. Os médicos zombaram de Semmelweiss e de suas teorias (lançadas em livro!). O combate foi tão encarniçado que o doutor das mãos limpas deu baixa no manicômio e morreu louco. A bacia de água sanitária foi para o lixo. Na época em que tudo isto se dava, Lister visitou o hospital vienense. A descrença com que Ignaz era considerado era tal que ninguém falou no médico inovador e no seu trabalho. Corporações e suas idiossincrasias. A reação combativa da guilda dos médicos foi um prenúncio do que aconteceria com Joseph Lister, quando as suas descobertas sobre o processo infeccioso começassem a ser colocadas em prática. Enfim, é o passo-a-passo dessa crônica de atraso e avanço, de determinação e investigação científica que Fitzharris nos traz. As décadas de trabalho de Joseph Lister foram uma sucessão de análises, experimentos, estudos e aprimoramentos. Mas que funcionaram de maneira inequívoca - convido você a ler o livro e a acompanhar a lenta e persistente evolução das descobertas do doutor. Uma vez superadas as resistências iniciais na Escócia, Lister passou a divulgar suas teses com cada vez mais repercussão - não só em todo o Reino Unido, mas na França, Alemanha e Estados Unidos. Como você vai constatar, ele foi inicialmente rechaçado por uma fatia expressiva da elite médica de cada um destes países, sem esmorecer. Para atingir o sucesso, Joseph Lister recebeu contribuição inestimável das pesquisas do cientista Louis Pasteur, nas quais se baseou. Fitzharris envereda pela análise bioquímica de Pauster sobre itens como levedura, álcool amílico e ácido butírico. Estes experimentos concluíram que a vida microbacteriana não provinha de geração espontânea - e sim estava disseminada no ar, demonstrando, de forma cabal, as possibilidades de contaminação. Cabal, agora, né? Porque, à época, apesar de químico famoso, foi atacado de cima a baixo. O periódico científico
La Presse bateu duramente no cientista: "Receio que os experimentos que citou, Monsieur Pasteur, venham a se voltar contra o senhor. O mundo para o qual o senhor deseja nos levar é fantasioso demais." Como frisa Lindsey, "Pauster acreditava que a putrefação, tal como a fermentação, era causada pelo crescimento de microrganismos minúsculos, transportados no ar pela poeira".O próprio químico francês sintetizou a essência da sua descoberta: "A vida orienta o trabalho da morte em todas as etapas". Tendo acesso ao trabalho desenvolvido por Pauster, Lister aprimorou sua interpretação da transmissão de germes pelo ar - e logo descobriria que não era um único agente infeccioso, transmitido de uma única maneira, mas um batalhão deles, navegando pela atmosfera das formas mais variadas. Com estas conclusões, suas experiências se orientaram para a desinfecção preventiva, para a assepsia absoluta no momento das cirurgias e para os cuidados pós-operatórios, com resultados que nocautearam definitivamente seus muitos detratores. A sua obsessão pela pesquisa microscópica revolucionou a cirurgia e a medicina. Como diz a autora, "o trabalho pioneiro de Lister garantiu que os resultados da cirurgia não fossem mais entregues à sorte. Daquele momento em diante, a ascendência do saber sobre a ignorância e da diligência sobre a negligência definiu o futuro da medicina cirúrgica. Os cirurgiões assumiram uma postura proativa, em vez de reativa, em relação às infecções pós-operatórias. Não mais enaltecidos pela rapidez da mão com o bisturi, eles se viram reverenciados por serem cuidadosos, metódicos e precisos. Os métodos de Lister transformaram a cirurgia, que passou da
butchering art à ciência moderna." Eu, que fui aberto e serrado, não teria chance de sobrevivência não fossem as descobertas do dr. Joseph Lister há 150 anos, aplicadas com zelo e maestria pela equipe médica do dr. Rolix, que meteu a mão na massa, ops, no osso (mais precisamente, no quadril, no fêmur e no acetábulo). Mais não posso dizer porque, graças a um trio de médicos norte-americanos - Long, Morton e Boott -, desbravadores originais dos procedimentos anestésicos, na sala de cirurgia eu dormi feito um anjinho e, tal como Frederick Churchill havia feito há um século e meio, acordei e perguntei: "E então? Quando começará a cirurgia?" Com a graça do bom Deus e Pai Misericordioso, que esteve e está comigo todo o tempo, e com a benção do dr. Bezerra de Menezes, acordei com as minhas duas pernas saudáveis - e muito bem conectadas em mim. Frederick já partiu há muito, mas espero que, naqueles tempos ainda difíceis, ele tenha vivido bem com a única que lhe restou.
Editora Intrínseca, 319 páginas
Obs.: O layout da edição em capa dura, criada pela alemã Rothfos & Gabler, com fita de seda acoplada como marcador de páginas, ficou o ó do borogodó. A destacar que a tiragem inglesa mereceu, sabe-se lá porque, uma arte de capa visualmente mais rica que a edição brasileira. Fica o registro.
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