"Tormenta", por Thaís Oyama

terça-feira, fevereiro 11, 2020 Sidney Puterman

"Tormenta" é a recém-lançada crônica do primeiro ano de governo de Jair Bolsonaro. Ultrapassa o noticiário comezinho e escarafuncha as pinimbas, as rasteiras e os acordos de bastidores. A obra se alinha com uma nova vertente do mercado editorial, que busca encorpar o registro da atividade política. Mais que salutar, é sem dúvida um nicho promissor - mas que dificilmente encabeçará a lista de best-sellers por aqui. Falta público. Basta ver o caso em questão: não obstante a imensa torcida contrária que tem o protagonista, a quase totalidade dos potenciais leitores tem para a leitura fôlego curto e digestão difícil, e prefere se empanturrar de memes a sapear pelas estantes. Já eu soube do lançamento da edição pela reação espalhafatosa do presidente, que depreciou a autora em uma live azarada (além de dar publicidade a uma obra que ele repudiava, ainda deu moral para que o então ministro da Cultura encenasse no dia seguinte uma performance goebbeliana - e canastrona -, que, rechaçada pela torcida do flamengo e pela comunidade judaica, provocou sua imediata demissão). Se o emulador de nazista viu a corda e se enforcou sozinho, a obra que tenho em mãos foi amarrada com precisão. Bom que seja assim, em prol da memória do país. Bem, voltando à personagem depreciada, a japa. Apesar do gracejo presidencial de péssimo gosto (é racismo que se diz?), Oyama escreve bem à beça. Para utilizar as metáforas tão ao gosto de presidentes, eu diria que ela, batendo dez pênaltis, tira todos do goleiro. No seu "Tormenta", ela põe na cal o que apurou e faz um retrato falado fidedigno dos primeiros doze meses Bolsonaro (oficialmente, ainda faltam trinta e seis, embora ele já trabalhe por oitenta e quatro). A autora enfileira seus highlights sem excessos. O conteúdo selecionado é relevante e desnuda a nossa democracia de viés novelesco. Diverte. Ainda assim, o livro não traz grandes novidades. Seu maior trunfo é enriquecer o já sabido com detalhes apurados em off e refrescar a lembrança do (e)leitor que foi soterrado pelas notícias do ano. A demissão do Bebianno e o tuíte presidencial exibindo uma golden shower fazem aniversário por agora e parecem que aconteceram em um governo remoto. Daí a importância da obra, que organiza fatos. Digo eu que neles não aconteceu nada do que a esquerda aterrorizava e a direita se vangloriava. Passados doze meses, não há até agora nenhuma minoria sendo perseguida. Continuam todos vivendo suas vidas, o país mudou pouco ou sequer mudou. Na mesma toada, não há liberação das armas, nem a economia foi resolvida. Continuamos onde sempre estivemos - na lama, no limbo, ao léu, à deriva. A maior das mudanças é que antes o PT tinha dezenas de milhares de empregos para distribuir e na "nova gestão" os empregos migraram para os Bolsonaro. E, no tiroteio virtual entre recém-empregados bolsonaristas e recém-desempregados lulopetistas, o único cadáver identificado é o da verdade. O Brasil é um país de factóides - antes exclusividade dos políticos, agora cada um tem uma conta numa rede social para postar sua própria versão dos fatos. Assim, enquanto nos debatemos asfixiados por esta barafunda midiática e engolfados, à esquerda e à direita, por uma profusão de narrativas sem pé nem cabeça, o cenário faz dos livros bem apurados um oásis. Neste, Oyama opta por abrir com um breve retorno ao candidato. Destaca que Bolsonaro foi eleito com o voto sem entusiasmo do empresariado brasileiro ("Os empresários nunca tiveram grandes ilusões com aquelas eleições. Haviam perdido a fé em Alckmin, tinham horror ao candidato de Lula e não confiavam em Ciro Gomes. Mas não escolheram Bolsonaro - era o que havia para o momento."). A autora destaca que, desde o princípio, era uma eleição improvável, com risco de desemprego - do próprio. O deputado vencera sete eleições consecutivas para o Legislativo e, se perdesse, ficaria sem mandato, após 28 longos anos. Verdade que a corda bamba da política já oferecera piores prognósticos para o ex-capitão (denominação preferida de Oyama no livro). Conta ela que, se tivesse sido derrotado na primeira eleição que participou, para vereador, no Rio, Jair faria valer seu curso de mergulhador profissional e iria ganhar a vida limpando cascos de navio. A frota não teve esta sorte (já o Frota foi diferente) e Bolsonaro foi eleito. Segundo Thays, passou dois anos na Câmara Municipal do Rio de Janeiro "lambendo selos". Sua principal atividade seria ler jornais à procura de notícias sobre militares mortos, para enviar uma carta de condolências à viúva. De lá para cá o ex-capitão parou de lamber selos, mas sua produção legislativa se manteve inexpressiva. Os momentos de exposição que protagonizou foram mais cômicos do que ideológicos. Sua hoje sabida predileção por Chaves (o mexicano, com "s", não o venezuelano, com "z") denuncia o perfil das suas preferências. Uma percepção de cocheira da sua capacidade vem do seu mais próximo assessor, o general Augusto Heleno, flagrado comentando ao telefone o ainda candidato Jair: "O cara não sabe nada, pô! É um despreparado". Após um ano de governo, fica mais fácil avaliar o diagnóstico feito pelo general quatro estrelas. Outra revelação de alcova trazida por Oyama é a razão da demissão precoce do ministro Gustavo Bebianno, aliado de primeiríssima hora do candidato Bolsonaro, defensor intransigente e conselheiro jurídico, pau-pra-toda-obra, guarda-costas (Gustavo é faixa-preta de jiu-jitsu) e botafoguense centenário. Em reunião com o generalato presente, já no sexto dia de crise e intenso linchamento de Bebianno pelo exército virtual de Carluxo (o filho conhecido como o zero dois), Bolsonaro acusou: "Você tramou contra o Flávio". Diante da negativa de Gustavo, o ex-capitão se queixou de que Bebianno teria se aproveitado do caso Queiroz para que Flávio (o filho que seria o zero um) fosse destronado do Senado em favor de Paulo Marinho (empresário que dera apoio na campanha, emprestando a casa e fornecendo equipe e material para os vídeos do horário gratuito). Perplexo, segundo Oyama, Bebianno novamente negou a acusação. Consternado, Bolsonaro preferiu encerrar o assunto orientando os generais presentes a colocarem o futuro ex-ministro no conselho de Itaipu, onde ganharia R$ 70.000,00 por mês (lembra o que eu falei acima dos empregos a distribuir?). Gustavo recusou: "Você acha mesmo que eu fiz tudo que fiz para ganhar dinheiro?" Os ânimos a partir daí se exaltaram, os dois precisaram ser apartados e Gustavo Bebianno estava prematuramente fora do governo, ainda na sexta semana do mandato presidencial recém-iniciado. Na verdade, demissão a toque de caixa de um companheiro, culminando com um quase entrevero físico, não se limitou a Bebianno: o respeitadíssimo general Santos Cruz, amigo de quatro décadas de Bolsonaro, chegou, segundo a autora, a bater testa com o presidente no dia da sua demissão, em abril. Como vemos, a piaba canta no gabinete. O relacionamento com os mais próximos é sempre sem arestas. Bolsonaro vai direto ao ponto. "Negão, lembra que você tem dois olhos, duas orelhas e só uma boca", teria dito o presidente ao deputado mais votado do Rio de Janeiro, Hélio Lopes. Chamado pelo músico Marcelo D2 de "escravo da casa grande" (é racismo que se diz?), o deputado pertence ao estreito círculo que teve acesso ao seu quarto de hospital em Juiz de Fora. Oyama, logicamente, dedica um bom espaço ao atentado, inclusive respondendo com números à pergunta que não quer calar: "Bolsonaro teria vencido sem a facada?" Segundo a agência Bites, consultoria de análise estratégica de dados digitais, no dia 4/9, dois dias antes do atentado, o candidato tinha 10 milhões de seguidores nas redes sociais. Três semanas depois, esse número havia saltado para 12,5 milhões, um crescimento de 25% (ele chegou ao segundo turno com 17 milhões). Oyama, apoiada nos dados da Bites, conclui que o desempenho de Bolsonaro vinha aumentando numa curva estável desde abril. "O atentado, portanto, foi um evento excepcional, mas não um ponto de inflexão na campanha - a tendência de crescimento já existia". Ela endossa esta leitura com a opinião do cientista social Maurício Moura, especialista em psicologia política pela Universidade Stanford e CEO da Ideia Big Data, que crê que "o atentado trouxe benefícios eleitorais e políticos evidentes para Bolsonaro, mas não determinou sua vitória". Eu cá tenho minhas dúvidas. Sem a ajuda de Adelio ou não (Bolsonaro, dando entrada no hospital no dia da facada, desdenhou do agressor: "Esse cara é ruim de serviço"), o ex-capitão, eleito, tornou o noticiário bem mais agitado. Às demissões precoces se juntaram as declarações hostis e as decisões de sopetão. Segundo Oyama, um general do palácio teria criado o neologismo "inassessorável", dizendo que o ex-capitão faz "o que lhe der na veneta". Soma-se a isso o conhecimento limitado do presidente. Relata a autora que, na preparação para o Roda Viva, ainda em campanha, seus assessores sugeriram que ele tivesse na ponta da língua a resposta para perguntas clássicas, como o nome de seu livro de cabeceira. Como Bolsonaro não tem o hábito de ler, Bebiano sugeriu: "Diz que é uma biografia do Churchill". O candidato devolveu: "Quem?" Esclareceram: "Winston Churchill, primeiro-ministro britânico". Bolsonaro arrematou: "Esse nome eu não vou lembrar". Bebianno sugeriu outro: "Então diz que é a Bíblia". Jair concordou: "Beleza". Na hora do programa, veio a tal pergunta. Bolsonaro respondeu na lata, para surpresa do staff: "A verdade sufocada', do Carlos Alberto Ustra" (reconhecido por diversas vítimas como torturador no regime militar, Bolsonaro dedicou a ele seu voto pelo impeachment de Dilma, que lhe rendeu uma cusparada do então deputado Jean Wyllys, vencedor do Big Brother, que, eleito novamente, renunciou ao mandato em favor de David Miranda, marido de Glenn Greenwald, o norte-americano que gerenciou a divulgação das mensagens hackeadas dos comandantes da Lava Jato -  e este parênteses é uma pequenina amostra do que é a política brasileira; ela é isso aí que você leu; esqueça projetos, planos de trabalho e leis de interesse público, estas coisas menores e desimportantes). Seguindo o rastilho dos fake-escândalos diários, mais à frente a própria Thais Oyama pergunta: "É por falta de estratégia ou falta de preparo que Bolsonaro dá declarações estapafúrdias e se mete em situações que parecem prejudiciais ao governo? (...) Sagacidade ou estultice?" A autora não deixa a pergunta sem resposta. Ela aposta que o segredo por trás de tudo está no monitoramento da internet feito pela "turminha das redes sociais" (assim chamado pelo general Santa Rosa, e também conhecido como "gabinete do ódio", na denominação carinhosa do presidente da Câmara, Rodrigo Maia). Este aspecto tem para Thaís tal relevância que ela o aborda novamente hoje, 11 de fevereiro, na coluna publicada na página 2 do jornal O Globo, com o sugestivo título "O risco de querer ser amado". Se no artigo ela vai além e interpreta que agora Bolsonaro deixou os generais para trás e tem por norte os (efêmeros) likes das redes sociais, no livro Oyama esmiuça que "pela análise dos picos de adesão registrados nas redes do presidente em 2019, as ocasiões em que o ex-capitão obteve mais seguidores ocorreram quando ele atacou a imprensa". O modus operandi foi seguido também pelo "popular" ministro da Educação, Abraham Weintraub, que, segundo a Folha de São Paulo, publicou de 1/1 a 22/11 de 2019 um total de 444 posts, em que 40% deles - quase 200 - eram ataques ao PT, à esquerda ou à imprensa (cabendo 29 posts exclusivamente à TV Globo). Sua performance majoritariamente histriônica é via de regra reforçada pelos tuítes do senador Eduardo Bolsonaro (o zero três), cujo apogeu no ano foi ser protagonista da bolha da embaixada americana, ideia de jerico do presidente, que fez muita espuma, mas que, como tantas outras, desceu encanamento abaixo. Assim, com materiais de densidades diversas, nesta breve crônica do Ano I do Bolsonarismo no poder, Oyama vai do profundo ao superficial e do essencial ao fútil. No caldeirão em que ela remexe as informações apuradas tem Bolsonaro usuário assíduo de remédio pra disfunção erétil (é brocha que se diz?), tem presidente-general da ditadura chamado de centro-esquerda (Ernesto Geisel, o alemão), tem trama para impinchar o presidente, tem candidato a vice defenestrado por participação em suruba gay, tem presidente do judiciário puxando o saco do presidente do executivo, tem pai com medo que filho se mate, tem político querendo aprovar o parlamentarismo em 2020, tem, literalmente, de um tudo. Não posso deixar de mencionar o poder de síntese da autora para definir os personagens (para ficar só com algumas da lavra de Thaís, vou de Olavo de Carvalho - "ex-astrólogo com fraco por escatologias e obscenidades" - e Luciano Bivar -"dono de um partido irrelevante e de um passado sombrio"), dando leveza a uma realidade pesada. Por falar em Olavo, ele recebeu seu espaço já quase no fim do texto: "Foi em meados dos anos 2000 que Carvalho começou a popularizar nas redes o conceito da batalha que não se trava com armas nem embates entre concepções políticas, mas na esfera da produção cultural. O professor de filosofia on-line passou as últimas décadas insistindo que o partido do ex-presidente Lula só fincara suas garras no poder por ter inoculado nas escolas e universidades, nos mercados editorial e artístico e nos veículos de comunicação uma visão cultural que incluía pontos de vista sobre sexo, sexualidade, religião, questões raciais e ambientais." A este raciocínio a autora adiciona a visão de Filipe Martins, assessor de Bolsonaro para assuntos internacionais, e, na definição de Oyama, "olavista desde os dezessete, Martins é o discípulo que superou o mestre". Segundo a jornalista, Martins dizia que "só um candidato com a coragem de livrar seu discurso do primado econômico e atacar a esquerda pelo flanco dos costumes teria condições de derrotá-la". O que leva Oyama a concluir que "a ascensão e a vitória de Bolsonaro foi vista pelos seguidores de Olavo como a concretização de uma profecia". Noves fora a mistificação barata, a leitura do cenário brasileiro feita por Olavo de Carvalho é pertinente. Em uma cultura de massa medíocre há óbvia prevalência da mediocridade, que domina o debate político e, paradoxalmente, o despolitiza. Para a massa - incluindo a universitária, que se pensa engajada, mas carece de cultura e personalidade -, tudo se resume a uma feroz e fanática torcida pelo ícone-celebridade com o qual se identifica. Estes grandes astros, politicos idolatrados, repisam seus bordões, para gozo e histeria do seu eleitorado, e trazem para o picadeiro a própria família (o senador Jorge Bornhausen costuma dizer que "familiares de políticos só devem entrar em seus gabinetes se emoldurados por porta-retratos", relembra Oyama), envolvendo-os na sua estratégia de dinheiro e poder. O ex-presidente Lula chegou ao ponto de subir no caixão da esposa para fazer comício, enquanto seu filho genial (o "Ronaldinho dos negócios", segundo o pai) prossegue cada vez mais encalacrado com a enxurrada de dinheiro que irrigava o estilo de vida da família, com destaque para o famigerado sítio de Atibaia (veja mais sobre o tema em "$ócio do filho", de Marcos Vitale, postado aqui no blog). Quanto a estes vínculos cordiais, no dizer de Sérgio Buarque de Hollanda, Thaís Oyama é taxativa: "O partido de Bolsonaro sempre foi a família. A família dele. E o Aliança pelo Brasil, sigla que ele criou em novembro após brigar com o PSL, nada mais é do que a legenda do clã". Gostando ou não do ano I de Dinastia, só nos resta assistir a segunda temporada. Já em cartaz.

Companhia das Letras, 267 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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