"A marcha da insensatez", por Barbara W. Tuchman

quinta-feira, novembro 12, 2015 Sidney Puterman

Barbara Tuchman não escreve sobre o desenrolar dos fatos. Escreve sobre as idas e vindas dos atores políticos, nas coxias - onde se tramam as decisões que gerarão os fatos. A celebrada historiadora norte-americana constrói, em "A marcha da insensatez", uma análise acurada da escalada decisória que culminou no desmoronamento do poder em quatro passagens da História distantes entre si, temporal e geograficamente:  o enfraquecimento da Igreja Católica com o advento do Protestantismo, a perda da América pelos ingleses e, por fim, a Guerra do Vietnam (há ainda as páginas dedicadas à Guerra de Tróia, credenciadas como a primeira destas passagens; mas eu qualifico-as mais como introdução e recurso retórico do que como comparativo à altura das demais). O que faz estes diferentes momentos históricos analisados por Tuchman convergirem para um mesmo ralo é que, em todos eles, o resultado final foi consequência de uma cadeia de erros, sucessivos e reiterados, dos então detentores do poder. O título do ensaio de abertura, "Em busca de uma política contrária aos próprios interesses", revela como a autora percebe a performance dos poderosos em cada uma destas circunstâncias. A partir daí, estabelecido o paradoxo que é a pedra fundamental da obra, Tuchman, em sua abordagem minimalista, se debruça sobre as décadas anteriores a cada derrocada, visando identificar a sequência de decisões que conduziram ao desenlace infeliz - que foi a gradativa e irreversível perda de poder, de prestígio, de sustentação e de recursos. Confesso: poucas vezes tive em mãos um texto histórico tão criteriosamente cerzido. Seu processo narrativo fraciona cada uma das minúcias políticas que envolvem o contexto decisório. Cada personagem é dissecado, com suas influências, bagagem e contradições destrinchados sobre a mesa. Tuchman não se apressa. Isso faz da obra fonte riquíssima para os estudiosos e, ao mesmo tempo, um peixe com muitas espinhas para os que têm interesse superficial sobre os temas abordados. Se cada um dos seus volumosos capítulos é um livro à parte (onde a autora desfibra nervo a nervo os rumos tomados por uma liderança que solapa a si mesma), o último, sobre o impasse que levou os Estados Unidos a uma guerra inglória no Sudeste Asiático, é enciclopédico. Nele acompanhamos os nervosos e inconstantes 19 anos que precederam o início do conflito militar entre os ianques e os norte-vietnamitas, de 1945 a 1964. Com o poder global rachado em dois blocos ao término da Segunda Guerra Mundial - os EUA à frente do Ocidente e os soviéticos como os senhores absolutos da Cortina de Ferro, terminologia da lavra de Winston Churchill -, os Estados Unidos se sentiram imbuídos do dever de bloquear a proliferação socialista. Enxergando na cisão entre o norte e o sul vietnamita um palco determinante para a conversão da Ásia em um feudo comunista, a América do Norte apostou sua fichas no suporte tático ao Vietnam do Sul, contra um Vietnam do Norte suprido pelos russos. Uma luta, na verdade, inglória, onde o Norte desfrutava de maior apoio popular e parecia fadado a ocupar o Sul, uma ex-colônia francesa - anêmica, acéfala e desmobilizada. Foi para dar apoio aos nativos órfãos da madrasta européia que os americanos mandaram seus "rapazes" negociar, confrontar e, ao fim, estender seu tapete de bombas. A fundo perdido, porém. Tuchman demonstra que os questionamentos "O sucesso comunista no Vietnam será realmente decisivo a nível mundial? Uma intervenção militar esquartejada, sem envolvimento total norte-americano, será capaz de conduzir ao desfecho da guerra local?" já existiam em todos os níveis de governo muito antes da guerra e foram ignorados, apesar do seu significado capital. Os EUA acabaram por cair na armadilha anunciada e chamaram para si uma guerra que não tinham como vencer. A um custo de 50.000 vidas, 300.000 feridos e US$ 150 bilhões de dólares gastos, os ianques imperialistas deixaram o Vietnam do Sul da mesma forma como entraram - a um passo da dominação pelos vietcongues, que afinal se deu. Tuchman, inequivocamente simpática à posição norte-vietnamita, lamenta, ao final, que "Hanói tenha lutado obstinadamente por 30 anos por uma causa transformada, após a vitória, em tirania brutal". (A tal "tirania brutal" é parte integrante de todos os regimes comunistas e não pode ser vendida separadamente, digo eu.) Sintetiza a obtusidade dos governantes, de todas as procedências, ao citar o próprio Kissinger, comandante da política de Washington: "Líderes no governo nada aprendem além das convicções que trazem consigo; este é o capital intelectual que irão consumir durante todo o tempo em que estiverem no cargo." O que explica muito da lenta evolução moral da civilização. Se a guerra de bombardeamento no Vietnam é o último e mais caudaloso dos capítulos, o que contempla a cizânia entre a igreja renascentista, que, por sua ostensiva indiferença ao mundo à sua volta permitiu (ou provocou) espaço para o crescimento da oposição protestante, é também largo e incisivo. Nele, vemos um poder sem armas agir como déspota inconsequente e beligerante. Nas palavras de Tuchman, a "insensatez do papado estava não tanto no irracional, mas no fato de se alhear por completo da missão a que estava destinado". Já o capítulo que discorre sobre como a condução gananciosa e intransigente da realeza e do Parlamento inglês empurraram as colônias norte-americanas à Declaração da Independência, lastreadas por uma guerra bufa e retirando do Império a principal jóia da coroa, é comparada diretamente à política dos governos Kennedy, Johnson e Nixon, quase dois séculos após, para com o Vietnam. Ainda que um livro sisudo, há eventualmente o tempero de passagens de canhestra ironia, como a que atribui a perda da América à preocupação do premier inglês em deixar seus cavalos ao relento, fazendo com que uma correspondência essencial para o curso da guerra perdesse o navio e o bonde da História (caso ele, o bonde, já houvesse sido inventado). Uma a mais para o anedotário da fleuma inglesa. Mais substanciosa no conteúdo e mais restrita no foco do que o tsunami de best-sellers sobre eventos históricos, Barbara Tuchman nos concede, do seu púlpito, uma Aula Magna. Para ler, aprender e refletir (ainda que, por complexa, pouco generosa com os leitores menos escaldados). Por fim, a autora premia seus leitores, nas páginas derradeiras, com a descrição de como, ao longo de milênios, reinos, califados e governos buscaram criar uma classe superdotada de governantes e funcionários públicos, ultrapreparados e incorruptíveis (na Turquia, com os Kapi Kullari; na China, com os mandarins; na Prússia, com um sistema que durou dois séculos e ruiu na Primeira Guerra). Infelizmente, todos fracassaram. Após 400 páginas e anos de pesquisa, a historiadora resume melancolicamente o poder a "alternâncias de glória e declínio, grandes esforços e sombras".  A propósito, seria ótimo se esta obra tivesse sua leitura disseminada nos gabinetes do Planalto Central sul-americano. Porque, ao que parece, há por lá muitas "autoridades" engajadas em perseguir diuturnamente as piores alternativas disponíveis, dando curso à uma Marcha da Insensatez tropical. Os governantes de agora parodiam o que não leram e repetem o que não viram, ao dar seu convicto passo à frente em direção ao precipício. Perderão todos, porque a soma de equívocos, mesquinhez e incapacidade atávica provocará ao país uma atrofia de difícil reversão. É exatamente sobre erros e perdas a obra de Barbara W. Tuchman. Fosse viva a historiadora, talvez considerasse o nosso governo cotado para uma breve nota de rodapé (não mais que isso, por falta de relevância) neste livro de impressionante musculatura.

Editora José Olympio, 429 páginas

Foto: Eu na exposição "On the Line: Intrepid and the Vietnam War", Nova York, outubro de 2015


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: