"Cão come cão", por Edward Bunker

terça-feira, novembro 03, 2015 Sidney Puterman

Li a página final e fechei o livro, não sem antes assinalar, com minha costumeira anotação de rodapé, a data e o local: "26/10. Vôo 8079. Decolou às 19:30 do JFK." Como já estávamos há quase duas horas no ar, arrematei: "Sobrevoando algum lugar dos Estados Unidos." Com tempo de sobra ainda pela frente, podia ser um bom momento para escrever o que achei do livro. A primeira reflexão foi "um texto sem concessões". Olhei para a capa do livro, sobre meu colo, e, acima do título, estava a frase de um crítico americano, à guisa de splash comercial: "Uma obra de ficção sem concessões." OK. Embora ecoasse como uma repetição pobre, ainda que involuntária (penso), tínhamos um acordo, então - o crítico americano e eu -, sobre a principal virtude literária de Bunker. Deve proceder, acredito. De fato, o autor não tem inclinação aparente para o clichê ou para a pieguice. Não repete fórmulas. Diferentemente de outros escritores, ainda que talentosos, Edward Bunker não é um literato com um bom texto que "mergulhou fundo" no universo dos bandidos. Bunker é um bandido. Um ex-bandido, alguém que circula mais à vontade pelo submundo do que entre as gôndolas de um supermercado. Bunker encadeia o raciocínio dos marginais na condição de ter sido um deles - ter pensado como eles e ter sido ouvinte frequente de seus devaneios criminais. O trio de malfeitores que protagoniza seu roteiro - Troy Cameron, Diesel Carson e Mad Dog McCain - são certamente extratos multifacetados dos seus próprios colegas. Que imagino mortos. Seguro, Bunker nos guia por entre pensamentos errados e nos conduz à cena do crime, como testemunhas espiando pelo vidro blindado. Sua descrição das ações, meticulosa, soa insensível como quem dita a receita de um estrogonofe. Vez por outra, opina. Seu discurso, com fel, contrapõe a sociedade aos foras-da-lei, crendo estes consequência daquela; mas, nas pequenas brechas, insinua o crime como uma irreversível marcha rumo ao precipício. Nem de longe é imoral; sua moral, porém, nos é entregue embrulhada em grossas camadas de desprezo e violência. É que, brilhante ou não, ele sempre será um deles. A predileção do autor pelas marcas de grife dá à narrativa um paladar refinado. Ainda assim, isto não impede que terminem todos sujos de sangue. Esfrego as mãos. O livro chega ao fim e os companheiros de Bunker permanecem colados em mim. Não há mais páginas, nem ar. O livro, agora fechado, estrebucha como um peixe na areia. A maré baixa não virá buscá-lo. Nem personagens, nem leitores, saem incólumes da matança. Antes assim.

Editora Barracuda, 286 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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