"Sem nunca jogar a toalha", por George Foreman


George Foreman era um tubarão. Um grande tubarão negro. Seus olhos miúdos e sua couraça imponente não deixavam margem à dúvida. Se ele viesse em sua caça, você estava morto. Não importava quem você fosse, seu destino era um só. Lona.

Seu auge foi há meio século atrás, em 1974. Lembro como se fosse hoje.

À época, seu próximo adversário, Muhammad Ali, era um mito. Os jornais ainda se referiam a ele como Cassius Clay, o nome que renegara. É que o mais carismático lutador de todos os tempos tinha dois nomes. O Clay, que repudiava, era seu nome de escravo. Ali era seu nome de liberto.

Não só. Cassius Clay fora encarcerado por se recusar a lutar na Guerra do Vietnam. Rejeitava o país e sua política, a ponto de adotar um nome muçulmano. Já George Foreman se tornara campeão olímpico de boxe e desfilara com uma bandeirola dos Estados Unidos nas mãos.

Ou seja, não faltava lenha nessa fogueira. Dois cíclopes em cantos opostos do ringue e do orgulho racial. Era a vez do novo campeão encarar o anterior. Do novo rei do boxe enfrentar a antiga lenda. E ninguém acreditava que o velho mito, um gigante falastrão, fosse capaz de vencer a fera.

Eu, criança, fiquei pilhado para essa luta, entre o tubarão predador e o ex-campeão lendário. Poucos anos antes, ele fora destronado por Joe Frazier (vi essa luta também, em preto-e-branco, numa transmissão que varou a madrugada), que depois fora despejado, debaixo de cascudo, por Foreman.

A imprensa proclamava que a luta entre Cassius Clay, ops, Muhammad Ali, e Joe Frazier era a "luta do século". Eu, bobinho, acreditava. Depois vieram mais umas quinze "lutas do século" - e o século ainda era o mesmo. Descobri que a "luta do século" era sempre a última.

Ali e Frazier eram o topo do boxe. Era como Roger Federer e Rafael Nadal foram anos depois, no tênis - absolutos. Aí surgiu o intruso George Foreman e implodiu Frazier em questão de minutos. Foi como se o Djokovic chegasse e eliminasse ambos por quarenta a zero no primeiro game.

A luta entre o campeão tubarão e a presa desafiante se daria no Zaire, um país africano que nem existe mais (eles vivem trocando o nome dos países por lá, dependendo do tirano da vez). Foi batizada de "The Rumble in the Jungle" e talvez tenha sido a maior luta de boxe de todos os tempos.

Ou seja, dá para dizer que esse confronto em Kinshasa, em 1974, foi mesmo a "luta do século".

Tanto que virou livro ("A luta", por Norman Mailer, postado aqui no blog dez anos atrás) e filme ("When We Were Kings", lançado em 1996). Você leu? se não, leia. Você viu? Se não, veja. É uma história épica. A jornada do herói. Sim, o inconcebível aconteceu. O ex-campeão abateu a murros o temível tubarão. E, não tivesse sido o avesso do nocaute esperado, não teria entrado para a história.

Mas o inesperado se deu. Muhammad Ali, a versão islâmica de Cassius Clay, cansou as mandíbulas do tubarão. O monstro definhou de fome. Morreu de tanto dar dentadas a esmo, sem destroçar sua presa. A tática maluca utilizada por Ali foi batizada de rope-a-dope

Não é qualquer ser humano que pode performar uma rope-a-dope strategy. Você precisa ficar pendulando para trás e para a frente nas cordas do ringue, enquanto um animal te espanca. A ideia é fazer o animal (o adversário) cansar de te bater. Se você não for nocauteado e sobreviver, aí sim você esmurra o animal cansado, que, extenuado, cai.

Foi o que fez Muhammad Ali contra George Foreman. Em seu livro "God in my corner", bisonhamente traduzido em português como "Sem nunca jogar a toalha", Foreman diz, contudo, que o "dope" da tal técnica foi literal. Ele teria sido dopado com uma espécie de sonífero, antes da luta.

E não só. Foreman confessa que o árbitro teria pedido 25 mil dólares ao seu agente para não desqualificá-lo. George resolveu pagar. Ele tinha fama de ser um lutador que dava socos abaixo da linha da cintura. Não quis correr o risco de ser desqualificado e ter seu cinturão roubado.

Algum tempo depois soube que o agente de Ali havia pago 35 mil dólares ao mesmo árbitro. Só aí entendeu melhor a pressa com que ele havia feito a contagem que deu a vitória ao adversário.

"Lutei limpo, e não fiz nada que teria me desqualificado, por isso desperdicei 25 mil dólares sem necessidade", reclama. "Mas quando Ali me derrubou, o árbitro contou rápido demais. Quando me levantei no oito, ele contou 'oito-nove-dez' como uma palavra só".

Certamente soam como desculpas. Mas fazem todo sentido. Eu, menino - reitero -, vi a luta. Tudo indicava que Ali seria trucidado pelo tubarão, sem dó nem piedade. Mas o tubarão, com 25 vitórias e zero derrota, "cansou". Eu, ehm. Todos celebraram que a estratégia suicida funcionou.

Eu também fiquei feliz. Torci muito pelo Cassius Clay contra o grande tubarão preto.

O livro de Foreman conta que essa luta foi decisiva para a sua vida. Segundo o próprio, ele perdeu, mas ganhou. Teria sido ali que ele começou a trilhar o caminho para Deus. Fico feliz demais por ele. Mas esse é só um prenúncio do que é o livro. É um (bom) exemplo do que se convencionou chamar no mercado editorial de literatura de auto-ajuda.

Nele, o ex-campeão mundial de boxe George Foreman traz conselhos de como superar as adversidades e como encontrar a si mesmo através da fé. Foreman foi um legítimo campeão e escreve um texto convincente (óbvio que com a ajuda de um ghost-writer, no caso, Ken Abraham).

Há muitas lições a aproveitar. Foreman se abre com tocante sinceridade e nos oferece palavras de conforto e conselhos sábios. Muitas das suas afirmações me comoveram. Mas o livro não é o que eu pensara. Só embarque nessa canoa se este for o tipo de literatura que você está procurando.

"Depois que encontrei Cristo, consegui olhar novamente para aquela luta de boxe e na verdade agradecer a Deus", reflete. "Embora eu não soubesse naquela época, o que parecia ser a pior coisa era na verdade a melhor. Por quê? Porque aquela derrota me iniciou na minha busca por Deus".

Há também conteúdo relevante sobre a trajetória do ex-campeão - distribuído de maneira esparsa. Picotada. Noutras vezes, de forma redundante. Só que o carro-chefe do texto é a sua conversão à fé.

São dezenas de páginas de reflexões íntimas e espirituais, orientação comportamental e proselitismo. Se você quiser saber o contexto detalhado das lutas do campeão, vá beber noutra fonte.

A obra nos faz simpatizar com George Foreman. De verdade. Ele deixa para trás a imagem de tubarão predador e se transforma na pantera amiga do menino Mogli. Mas confesso que não queria simpatizar com Foreman. Já simpatizo com gente demais. Me bastava apenas conhecer sua história.

Se minha curiosidade voltar, vou ter que procurar noutro lugar. Se achar, eu conto aqui.

Editora Thomas Nelson Brasil, 275 páginas  |  1a edição 2007  |  tradução  Rafael Mantovani

Título original: "God in my corner"

"Getúlio, 1882 - 1930", por Lira Neto


Na infância, minha convivência com Getúlio era puramente interesseira. O cabeçudo estampava a nota de dez cruzeiros. Os sisudos Caxias (dois cruzeiros) e Barão do Rio Branco (cinco cruzeiros) valiam menos. A feiosa Princesa Isabel valia cinquentinha - mas essa nunca me caiu na mão. Que dirá a do barbudo pai dela, D. Pedro II, montado em inatingíveis cem cruzeiros.

Pra mim, nossos vultos históricos eram literalmente moeda de troca. Quando alguém me dava uma nota com a cara lisa do Getúlio, eu corria na banca da esquina e trocava por dois gibis da Ebal.

À medida em que deixei de ser guri, tomei ciência de que o muita testa da nota esverdeada era o presidente mais reverenciado da História do Brasil. Nas leituras que se seguiram, percebi também que o baixola era muito incensado, mas pouco perscrutado. Li textos onde o conteúdo era mais retórico que histórico, mais hagiológico que biográfico. Em suma, uma literatura capenga.

Faltava uma obra à altura do espaço que Getúlio Vargas ocupava no imaginário do Brasil.

Enfim, o cearense Lira Neto chamou para si a responsabilidade em escrever a biografia completa de Getúlio Vargas. O brasilianista Thomas Skidmore, autor de "Brasil: de Getúlio a Castelo", troçava que a tarefa de biografar Getúlio demandaria "quase toda a vida de um eventual biógrafo". 

Não sei quanta vida tomou de Lira Neto. Mas gerou um calhamaço de mais de 1.800 páginas, distribuído em três tomos (para conforto do leitor). Hoje posto aqui o primeiro deles. O "soldado".

As três lombadas seccionam cronologicamente a trajetória de Getúlio Vargas.

Ainda que o próprio autor refute a ideia de três "Getúlios" (com cada um correspondendo a um tomo - o "revolucionário", até 1930; o "ditador", até 1945; e o "democrata", até 1954), faz sentido isolar as várias facetas de um mesmo personagem. É uma peça em três atos.

Políticos constroem uma persona pública por meio das quais interagem e desejam ser identificados. Nós, reles cidadãos, decupamos o enigma proposto quando, e se, uma biografia honesta os decodifica. Aí sim espreitamos o que estava velado pelas cortinas. É quando o figurão garboso no pedestal perde alguns dos seus disfarces e tem seus truques revelados.

E o figurão Getúlio tem uma magia bem peculiar. Bonachão, arguto e nada marcial. Ainda assim, chamei o primeiro de seus personagens de "soldado" porque ele mesmo assim se intitulou, na página do seu diário alusiva à sua posse como chefe de governo.

"(...) Eu entrei de botas e esporas nos Campos Elíseos, onde acampei como soldado, para vir no outro dia tomar posse do governo no Catete, com poderes ditatoriais".

Podemos ver o "soldado" em dezenas de fotos da época. Um coroa baixinho e rechonchudo numa veste militar. Tronco curto, com um cabeção e um ventre saliente, e perninhas miúdas enfiadas em botas enormes. Bem mais para anão de jardim que para combatente. Que soldado era esse?

Nem de todo farsa, nem de todo real. Quem ler a biografia de Getúlio escrita por Lira Neto irá descobrir. Tinha seus antecedentes. Manuel Vargas, pai de Getúlio, lutou na Guerra do Paraguai, comandando sua tropa. Saiu do conflito com patente de general e terras em São Borja.

Ligado ao principal grupo político do Rio Grande, chefiado por Júlio de Castilhos, e depois por Borges de Medeiros, Manuel Vargas sempre esteve próximo do poder. E doravante os Vargas foram o poder constituído em São Borja e arredores.

Dos filhos, o mais violento era Viriato, envolvido em pelo menos dois assassinatos. Já de Getúlio, roliço, pacato, o pai esperava tudo, menos um guerreiro. O menino surpreendeu o pai. Cismou de fazer o colégio militar. Cursou o colégio por mais de um ano, mas acabou abandonando, envolvido em uma revolta estudantil contra a péssima conservação das instalações.

Getúlio Vargas trocou de carreira - se formou advogado e foi indicado para promotor em Porto Alegre. Tudo a ver com seu jeitão. Mas aí estourou mais uma revolução gaúcha, entre chimangos (seu lado familiar) e maragatos, e ele voltou para São Borja, para estar ao lado do pai e dos irmãos.

A liça foi breve e ele retornou a Porto Alegre, onde (sob as bençãos de Borges de Medeiros, o grande manda-chuva local e do qual Manuel Vargas era tributário e aliado) se tornou deputado. Lógico que houve uma eleição. Mas eleições, naquele tempo, eram pro-forma. Vencia quem o presidente do estado dizia que venceu. Era tudo descaradamente fraudado.

Getúlio logo se revelou um político de berço. Sereno, conciliador, matreiro, cativava amigos e adversários. Suas manifestações na tribuna, somadas à confiança que o Borges depositava nele, o guindaram ao cargo de representante da bancada gaúcha na Capital Federal. 

Vargas deu tão conta do serviço que, no governo do recém eleito presidente do Brasil, Washington Luís, foi escolhido para Ministro da Fazenda. E olha que fazer contas nem era seu forte.

A imprensa não aliviou. O gaúcho não tinha predicados para a pasta. Era um político novo e não entendia patavinas de economia. Já Washington desdenhou. Disse que de economia entendia ele e bastava. E Getúlio acabou que conquistou mais apoios. O baixinho era danado.

O problema é que o país estava em convulsão política. Como sempre, aliás. Até postei aqui semanas atrás o livro do Pedro Doria sobre o tenentismo. Nele o jornalista esmiuça o golpe militar de 1922, a Revolução Gaúcha de 1923 e a Revolução Paulista de 1924, que desbocou na Coluna Prestes, ativa até 1927. Tá tudo no livro.

Getúlio Vargas largou o ministério para se tornar presidente do Rio Grande do Sul. Sua indicação era fruto de um acordo entre as duas grandes facções gaúchas - republicanos e libertadores - para que o sempiterno Borges de Medeiros, depois de cinco mandatos, entregasse o poder. Getúlio deixou de ser ministro, foi presidir o estado, mas preservou seu ótimo relacionamento com Washington.

Como sabido, àquela época São Paulo e Minas se revezavam na presidência. Era a tal República do Café com Leite. Mas Washington Luís, que já havia presidido São Paulo, queria emplacar seu candidato, o paulista Júlio Prestes. Os mineiros não gostaram. Foi soprado um nome de consenso. Uma candidatura gaúcha.

Podia ser "consenso" para a Aliança Liberal, o partido que fazia oposição ao governo. Para Washington, era uma traição. Principalmente quando o candidato aventado era o seu ex-ministro. 

Getúlio não gostou nem um pouco da ideia de ser lançado candidato a presidente. Por inúmeras razões. Primeiro, porque achou que não ganharia. Segundo, porque achava que, se ganhasse, não levaria. Terceiro, entrar em choque com o governo federal significaria cortar todas as linhas de crédito que vinham beneficiando o Rio Grande, todo endividado.

Getúlio não queria desagradar seus parceiros locais, se negando à candidatura. Mas também não queria afrontar Washington Luís, seu ex-chefe e, até então, conveniente aliado.

Acontece que havia muitos focos revoltosos país afora avessos a Washington Luís. O Rio Grande exercia uma liderança natural, pois o tenentismo estava mais estruturado lá do que em qualquer outra parte do país. Outro estado pegando fogo era a Paraíba. João Pessoa (que veio depois dar seu nome à capital) era o governador local, contra o governo federal e as forças conservadoras da região.

A terceira perna do grupo que queria derrubar o governo estava fincada em Minas Gerais. 

O nome de Getúlio Vargas ganhou cada vez mais força, ele que só queria governar o Rio Grande em paz. Mas Vargas acabou muito mais um joguete das circunstâncias do que condutor do próprio destino. Foi lançado candidato. Washington estrilou. Getúlio negou, mas outros fatos evidenciaram que ele dizia uma coisa em público, mas manobrava por baixo dos panos pela candidatura.

Os jornais estampavam nas manchetes as evidências do Getúlio traidor.

Traidor ou não, Getúlio tentou de toda maneira recuar. Mas era tarde. Seu nome foi para as urnas. Não levou, como ele já bem sabia. No Brasil de então, o voto era impresso, mas ganhava quem o presidente queria que ganhasse. Como já disse acima, a eleição era só para satisfazer as aparências.

Houve uma grita contra o resultado da eleição. Getúlio queria que ficasse tudo por isso mesmo. Se reaproximou de Washington Luís, com mensagens conciliatórias. Mas mataram João Pessoa (vice na candidatura de Getúlio) pelas costas. Até hoje se questiona se foi um crime político ou de vingança pessoal. Mas não importa. Naquele momento, tudo tinha um peso político.

O trinômio Rio Grande do Sul, Paraíba e Minas Gerais precisaria reagir em conjunto ao assassinato e dar uma resposta à altura. O Rio Grande resolveu se levantar contra a República. Getúlio assentiu. Os gaúchos fizeram sua bravata - iriam amarrar os cavalos no Obelisco em frente ao Senado Federal.

A princípio parecia que não daria em nada. Minas prometera muito e entregava pouco. Mas os gaúchos se articularam, mataram a resistência federal no estado ("mataram" do verbo matar, dezenas de oficiais legalistas foram mortos, Porto Alegre ficou em chamas) e embarcaram no trem rumo ao sudeste.

Uma vez "revolucionário", Getúlio intimamente se preparara para o pior. Seu código de honra era extremo. Caso a revolta desse com os burros nágua, suicidaria. O que ele enfim viria a fazer, em 1954, já ameaçava em 1930. E ameaçaria de novo em 1932.

Não foi necessário. A Revolução triunfou no Rio Grande. Agora era avançar e tomar conta do país.

Getúlio, o candidato preterido, aquele que assumiria a nação, foi no trem da soldadesca, num vagão que mais parecia um spa. Vestiu um uniforme de campanha, para ficar consoante com o espírito da coisa. Mas o avanço da Frente Revolucionária estava mais para festa do que para guerra.

Ainda no Rio Grande, "em todas as cidades do trajeto, maragatos e pica-paus confraternizavam, dando vivas a Getúlio em uma só voz. O povo cercava o trem, entoava hinos cívicos e aplaudiam febrilmente os soldados que apareciam às janelas da composição", relata Lira Neto.

As refeições eram feitas em pratos de porcelana e taças de cristal. "Havia razões para aquela caravana ser tão pouco marcial", explica o autor. Enquanto estivessem em território gaúcho, "o perigo de se deparar com tropas e reações legalistas pela frente era quase nulo".

As forças legalistas sediadas em Santa Catarina meteram o pé, diante do avanço revolucionário. Lira estima que mais de cem comboios cruzaram o rio Uruguai, na divisa dos dois estados, carregando as tropas da Revolução. Os vagões iam lotados e voltavam vazios, para buscar mais soldados.

De guerra, por enquanto, nada. Só muito oba-oba. Isso aqui é Brasil.

A chegada a Curitiba foi "deslumbrante", segundo o próprio Getúlio. Fardado, saiu do trem para uma limusine que o levou diretamente ao palácio do governo estadual. "Com um vistoso arranjo de flores sobre o capô, o veículo mais parecia um carro alegórico", pontua o biógrafo.

À medida em que os revolucionários avançavam e os legalistas recuavam, a batata do presidente Washington Luís ia assando. O emparedamento já era tal que o alto-comando das forças armadas chamou o protagonismo para si e apresentou um ultimato ao presidente, informando-o, na cara dura, que uma "Junta Governativa Provisória" assumira o comando da nação.

A heróica Revolução virou um reles golpe militar.

Pela manhã, Washington, encolerizado, prometeu aos seus ministros: "Só aos pedaços sairei daqui!". Avisado que aviões do Exército bombardeariam o Catete, bradou: "Que bombardeiem, mas não saio!"

À tarde, o brioso Washington, prudentemente, reconsiderou. Aceitou se entregar e foi feito prisioneiro no Forte de Copacabana. Seguiu para o cárcere numa limusine Lincoln modelo 1928.

Com o presidente deposto, a Junta Governativa tentou dar um golpe de mão nos revolucionários, dando a entender que ela presidiria o país até que fosse organizada uma nova eleição. Getúlio e seus aliados, que vinham em direção ao Rio, mandaram avisar que a banda tocaria de outra forma.

"Acho-me nas fronteiras do estado de São Paulo com 30 mil homens de tropas do Exército e do povo do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, perfeitamente armados e municiados, agindo em combinação com Minas e com o Norte, sob direção de Juarez Távora", escreveu Getúlio à Junta.

"Não somente para depor Washington Luís", continuou, "mas também com o fim de realizar o programa da revolução. Os membros da junta no Rio de Janeiro serão aceitos como colaboradores, porém não como dirigentes, uma vez que seus elementos só participaram da revolução quando ela já estava virtualmente vitoriosa".

Para bom entendedor, meia palavra basta. A Junta enfiou a viola no saco. "Estou pronto e sempre foi este o meu pensamento, passar o governo a Vossa Excelência quando Vossa Excelência aqui se apresentar", escreveu de volta o general da Junta, Tasso Fragoso.

Getúlio Vargas chegou na Estação da Luz, em São Paulo, no dia 29 de outubro. "Foi recebido com glórias de herói", com duas mil pessoas na gare, esperando por ele. Dois dias depois, a cena foi reproduzida tim-tim por tim-tim na Central do Brasil, no Rio de Janeiro.

O populacho do Distrito Federal repetiu o paulista. Se os paulistanos celebraram um sujeito que nunca viram mais gordo, os cariocas duplicaram a festa por alguém que mal conheciam.

"Cada pessoa, entre os milhares ali presentes, queria chegar mais próximo de Getúlio para olhá-lo bem de perto e, se possível, tocar-lhe a mão", descreve Lira. "Na balbúrdia que se formou, os mais velhos eram derrubados; as mulheres, atiradas ao chão; as crianças, pisoteadas", continua. "Os mais afoitos, ignorando as medidas de segurança, se precipitavam perigosamente, em ondas, rente ao vão entre a plataforma e os trilhos".

Quando o pequeno gaúcho de São Borja conseguiu se desvencilhar dos seus novos súditos, entrou no carro aberto da presidência da República, um Lincoln modelo L, que aguardava por ele. O trajeto se deu pelas avenidas entulhadas de gente: Marechal Floriano, Visconde de Inhaúma, Rio Branco e Avenida Beira Mar, até o Palácio do Catete - seu novo endereço nos quinze anos seguintes.

Foi coreografada então a cena que, antes prometida como uma bravata, entraria para a história: gaúchos, de uniforme de campanha, amarrando seus cavalos no obelisco defronte à Cinelândia.

O que a minuciosa biografia de Lira Neto nos oferece neste primeiro volume é a história de um político de pouca expressão (e reduzida experiência) ser enviado para a capital como novo representante da bancada gaúcha - e pau-mandado do caudilho do Rio Grande, Borges de Medeiros.

Habilidoso, cativou o presidente do país, Washington Luís, e, numa dança partidária das cadeiras, acordou ministro da Fazenda, sem entender bugalhos de economia. Num jogo de conveniências da política estadual, abandonou o ministério para se tornar governador do Rio Grande.

De volta a seu estado, em um momento em que a política nacional era um vulcão cuspindo fogo, seu nome é costurado por mineiros e gaúchos, à revelia da vontade do próprio Getúlio, como candidato de oposição ao governo federal - traindo o seu ex-chefe direto, o presidente da República.

Após muitas idas e vindas, Getúlio aceita, perde a eleição e se conforma; mas o resultado é contestado por seus pares e a aliança formada por gaúchos, mineiros e paraibanos se levanta em armas contra o governo, que promete resistir - mas se rende.

As centenas de vagões, trazendo trinta mil soldados e, no luxuoso carro-dormitório, o doutor Getúlio Vargas e comitiva, vem de Porto Alegre ao Rio de Janeiro em ritmo de festa. O até então semi desconhecido são-borjense assume o Catete e uns gaúchos de anedota dão a volta no Obelisco.

Termina o primeiro livro e começa um novo capítulo para a história do Brasil.

"Poucas vezes vi alguém descrever tão bem a história de Getúlio Vargas e do povo gaúcho como o Lira Neto na primeira parte da sua trilogia. Foi tão impactante para mim que me vi andando com Getúlio, fumando um charuto, pela Rua da Praia, em Porto Alegre", escreveu, na contra-capa... Lula! 

Sim, é bem possível imaginar Lula confabulando e fumando um charuto.

Mas lendo um livro?

Companhia das Letras, 629 páginas  |  1a edição, 2012


"Futebol ao sol e à sombra", por Eduardo Galeano


Não se pode fazer uma tier list dos livros sobre futebol sem a inclusão desta concisa, mas enciclopédica, obra do escritor uruguaio Eduardo Galeano.

Muito mais do que uma protocolar e impessoal viagem pelo tempo, ele registra com paixão os principais feitos do futebol sul-americano - e, de lambuja, os mundiais. Ainda que mais para hincha do que para historiador, sua prosa cobre mais de um século de de futebol. Por ele no pása nada

Lógico que, sendo de onde é, a mística charrua fala mais alto - ou seja, o futebol uruguaio e argentino estão em primeiro plano. Mas não há favor algum nessa ênfase - a Celeste é Olímpica por merecimento. Ganhou a medalha de ouro nas Olimpíadas de 1924 e 1928. E, mais, o mesmo time bicampeão olímpico se sagrou o primeiro campeão mundial, batendo a própria Argentina.

No Estádio Centenário, em Montevidéu, em 1930. Aliás, o mítico estádio da foto aí de cima.

Mas, se o livro fala muito de uruguaios e argentinos, fora de dúvida que quem divide o pódio com os hermanos são os brasileiros. Galeano adora o talento. Reverencia os craques brasileiros que viu jogar.

Dói, entretanto, que o primeiro grande espaço que ele conceda ao Brasil seja o da Copa arrancada a fórceps por Obdulio em pleno Maracanã. Para quem é da minha geração, 1950 ainda machuca. Mesmo tendo nascido muito depois da derrota humilhante, eu cresci escutando seus ecos.

Na minha infância, todo jogo Brasil x Uruguai despertava a ladainha do Maracanazo.

"O Brasil e o Uruguai disputavam a final no Maracanã. O Brasil era uma barbada. A final era uma festa", inicia o autor, destacando que todos já davam a vitória brasileira como favas contadas. "As primeiras páginas dos jornais já estavam impressas, já tinham vendido meio milhão de camisetas com grandes letreiros que comemoravam a vitória inevitável".

Pois é. Ele não está errado. Por tudo que li e ouvi, foi exatamente assim e ainda pior.

"Quando houve o gol de Ghiggia, explodiu o silêncio no Maracanã, o mais estrepitoso silêncio da história do futebol", diz. "Os comentaristas brasileiros definiram a derrota como a pior tragédia da história do Brasil".

Galeano conta como o próprio Jules Rimet perambulou pelo gramado: "Fiquei sozinho, com a taça em meus braços e sem saber o que fazer. Acabei por descobrir o capitão uruguaio, Obdulio Varela, e a entreguei quase às escondidas. Apertei-lhe a mão sem dizer uma palavra".

Galeano conta que era um pibe e escutou o jogo pelo rádio - no um a zero, fez mil promessas  (jamais cumpridas) para que a Celeste virasse o jogo. 

"A vitória do Uruguai diante da maior multidão jamais reunida numa partida de futebol tinha sido sem dúvida um milagre", afirma. "Mas o milagre foi acima de tudo obra de um mortal de carne e osso chamado Obdulio Varela". 

Obdulio, depois do jogo, passou a noite sozinho, zanzando pelos bares do Rio, observando, taciturno, a tristeza que provocara. Na volta, ganhou um qualquer do governo uruguaio. O bicho extra teve vida curta. "Deu para comprar um Ford modelo 1931, que foi roubado naquela mesma semana".

O escritor rabisca um tratado antropológico do futebol. Além dos mais badalados Obdulio, Zamora, Scarone, Nasazzi, nos apresenta Atílio, Schiaffino, Arispe, Petrone, Andrade - segundo Galeano, o primeiro negro que a Europa viu jogar bola. Venceu a Olimpíada de 1924. "Foi negro, sul-americano e pobre, o primeiro ídolo internacional do futebol", afirma.

São muitos os nomes. E, em meio a todos, os vivos e os mortos, certamente o jogador mais citado é o brasileiro Garrincha. O autor contempla muitos outros craques do Brasil - Friedenreich, Domingos da Guia, Leônidas da Silva, Zizinho, Didi - porém, somados, foram menos citados que Mané.

Se derrama em elogios a Leônidas, mas nega a ele a invenção da bicicleta. Segundo Galeano, o que aqui chamamos bicicleta é na verdade o que ele chama de chilena, criação de Ramón Unzaga no campo do porto chileno de Talcahuano: "Com o corpo no ar, de costas para o chão, as pernas disparavam a bola para trás, num repentino vaivém de tesouradas".

Quem deu o nome foram os jornalistas espanhóis, quando o Colo-Colo viajou para a Europa e o atacante David Arellano deu lá suas "chilenas", uma "cambalhota desconhecida". Arellano morreu naquele ano, em Valladolid, num choque com um zagueiro. Não disse se foi dando uma chilena.

"A leste, a Muralha da China. A oeste, Domingos da Guia". Se houve alguma introdução mais espetacular para descrever um zagueiro, ainda estou por ler. "Nunca houve zagueiro mais sólido na história do futebol", conta. "Desprezava a velocidade. Jogava em câmera lenta, mestre do suspense, amante da lentidão: chamou-se domingada a arte de sair da área com toda a calma".

Se fala da invenção da bicicleta, ops, da chilena e da domingada, fala também da invenção do gol de peito. Só que não se trata de banalmente deixar a bola ricochetear na caixa torácica. Vai além.

"Foi em 1947. Botafogo versus Flamengo. Heleno de Freitas, do Botafogo, fez um gol de peito", balbucia. "Heleno estava de costas para o arco. A bola chegou lá de cima. Ele parou-a com o peito e se voltou sem deixá-la cair. Com o corpo arqueado e a bola no peito, enfrentou a situação".

Eu mal consigo imaginar. Pena que não filmaram. Galeano continua: "Entre o gol e ele, uma multidão. Na área do Flamengo havia mais gente que em todo o Brasil", se empolga. "Heleno pôs-se a caminhar, sempre curvado para trás, e com a bola no peito atravessou tranquilamente as linhas inimigas".

Quantos metros teria andado? O escritor não conta. Revê o lance na memória dos sonhos.

"Ninguém podia tirá-la sem fazer falta", esclarece. "Quando chegou nas portas do gol, Heleno endireitou o corpo. A bola deslizou até seus pés. E ele arrematou."

Não foi só aqui que o galã temperamental do Botafogo deixou viúvas. "Heleno de Freitas tinha pinta de cigano, cara de Rodolfo Valentino e humor de cão raivoso. Nas canchas, resplandecia". Bom de perfil, esse Galeano. "Uma noite, perdeu todo o seu dinheiro no cassino. Outra noite, perdeu não se sabe onde toda a vontade de viver. E na última noite morreu, delirando, num hospício".

Já li a biografia de Heleno. Não há, em suas duzentas páginas, parágrafos como estes.

Mas é Garrincha o jogador ao qual Eduardo mais recorre. Teve o privilégio de vê-lo ao vivo. "Às vezes, quando já estava pertinho do gol, dava marcha ré e começava tudo de novo, só para prolongar o prazer". Conta, em detalhes, um dos gols que Mané fez exatamente assim, na Itália.

"Garrincha invadiu a área, deixou um beque sentado e se livrou de outro, e de outro. Quando já tinha enganado até o goleiro, descobriu que havia um jogador na linha do gol", exclama. "Fez de conta que chutava no ângulo e o pobre coitado bateu com o nariz na trave. Então, o arqueiro tornou a incomodar. Garrincha meteu-lhe a bola entre as pernas e entrou no arco".

Outro gol que descreve em minúcias foi o gol do lateral-esquerdo do Brasil, na Copa de 1958. A Áustria perdia de um a zero e o lateral avançou, com a bola dominada. "O técnico brasileiro, Vicente Feola, corria pela lateral do campo. Suando em bicas, gritava: Volta, volta!"

O tal lateral, batizado como Nilton Santos, "o homem-chave da defesa brasileira, chamado de Enciclopédia pelo muito que sabia de futebol, avançou, partindo do seu campo. Abandonou a retaguarda, passou a linha central, esquivou um par de adversários e continuou seu caminho", diz.

Enquanto isso, Feola se esgoelava. Mas "Nilton, imperturbável, não passou a bola a nenhum atacante: fez toda a jogada sozinho, e culminou-a com um golaço". 

Galeano conta que "Feola, feliz, comentou: Viram só? Eu não disse? Este sim, sabe!"

O escritor volta a Garrincha. "Jogava para um time chamado Botafogo, e esse era ele: o Botafogo que incendiava os estádios, louco por cachaça e por tudo que ardesse". 

"Nunca houve um ponta-direita como ele", se rende o uruguaio. "No Mundial de 58, foi o melhor em sua posição. No Mundial de 62, o melhor jogador do campeonato". Reverencia: "Ao longo dos seus anos nos campos, Garrincha foi o homem que deu mais alegria em toda a história do futebol".

Fez também seu necrológio. "Garrincha morreu sua morte: pobre, bêbado e sozinho".

Eduardo Galeano, aparentemente sem perceber, vai desfiando uma lista memorável de craques botafoguenses. Longe da contaminação do clubismo, abre pequenos capítulos para os brasileiros que admira na história do futebol. Depois de Heleno, Garrincha e Nilton, chega a vez de Didi.

"Ele foi o eixo da seleção brasileira", afirma. "Corpo enxuto, pescoço longo, estátua erigida de si mesmo, Didi parecia um ícone africano plantado no centro do campo. Ali, era dono e senhor".

"Chutando de longe, enganava o goleiro com a folha seca", revela. "Batia na bola com o lado do pé e ela saía girando e girando voava, dava cambalhotas e mudava de rumo como uma folha seca perdida no vento, até que se metia entre as traves, no ângulo onde o goleiro não esperava".

Não é fraco não esse uruguaio.

Ele volta a Garrincha, agora na Copa do Mundo de 1962. "Sem Pelé, e sob a batuta de Didi. Amarildo brilhou no difícil lugar de Pelé; atrás, Djalma Santos foi uma muralha; e, na frente, Garrincha delirava e fazia delirar". Galeano reproduz a manchete do jornal local, no dia seguinte à semifinal, quando eliminamos os chilenos: "De que planeta veio Garrincha? perguntava o jornal El Mercurio, enquanto o Brasil liquidava os donos da casa".

Dedica capítulos curtos aos demais grandes craques dos anos 50 e 60: Di Stéfano, Puskas, Lev Yashin, Bobby Charlton, Uwe Seeler, Gento, Stanley Matthews, Beckenbauer, Eusébio, Pedro Rocha e até um tal Jimmy Greaves de quem eu nunca ouvi falar, nem antes, nem depois.

A maior Copa do Mundo de todos os tempos, a de 1970, ganhou amplo destaque. O jogo mais aguardado, entre os campeões do mundo de 58 e 62 - o Brasil - e o de 66 - a Inglaterra -, ganhou um capítulo exclusivo, titulado "Gol de Jairzinho". Ele narra o gol, passe a passe. 

"Tostão recebeu a bola de Paulo César e avançou até onde pôde. Encontrou a Inglaterra inteira recuada na área. Até a rainha estava lá." Verdade. Podemos ver nos teipes. Conta como a bola chegou a Jairzinho, "que tinha aprendido a ganhar a vida no subúrbio mais duro do Rio de Janeiro".

Bem, até onde eu sei, Jairzinho é dali mesmo de Botafogo, na Zona Sul do Rio. Ainda moleque, pulava os muros de General Severiano, para ver o time treinar. Depois, mais taludo, tricampeão juvenil do Rio, a vida era dura mesmo: disputava a ponta-direita do time do bairro. O titular chamava Garrincha.

No México, na segunda partida da fase de grupos, estava zero a zero, quando Jairzinho "saiu disparado com uma bala negra, driblou um inglês e a bola, bala branca, atravessou a meta do arqueiro Banks". Eduardo não curte muito o Reino Unido. Sem disfarçar, comemora. "Em ritmo de festa, o ataque brasileiro tinha se livrado de sete guardiões. E a cidadela de aço tinha sido derretida por aquele vento quente que vinha do sul".

"Na final, o Brasil esmagou a Itália por 4x1". O autor repercute os jornais ingleses: "Deveria ser proibido um futebol tão belo". O Brasil ganhou pela terceira vez a Jules Rimet. Posse definitiva.

"No final de 1983, a copa foi roubada e vendida, depois de ser reduzida a quase dois quilos de ouro puro", denuncia o autor. Diz ainda que "uma cópia ocupa seu lugar nas vitrines". Não está no livro, mas tenho que complementar: roubaram a cópia também.

Não sei se o autor chegou a ser cobrado em vida. Quase metade dos jogadores brasileiros que cita no livro eram jogadores do Botafogo. Seria justo que uma parte (ainda que simbólica) dos royalties fosse para o time de General Severiano. Ao longo de 118 anos de penúria teria vindo bem a calhar.

Contra o capitalismo, contra o Primeiro Mundo, contra a mercantilização do futebol, contra os patrocínios, contra a enxurrada de jogos, contra a transformação dos atletas em máquinas de jogar futebol e em produtos globalizados - o escritor uruguaio abominaria as SAFs. Escapamos dessa.

Galeano fez um aditivo posterior ao livro, reunindo as copas recentes. Não tem o mesmo sabor.

Ainda que a contragosto, Eduardo não se furtou a fazer o panegírico do Peñarol, que se auto-intitula El Capo del Continente. Fala do célebre confronto entre os campeões de Europa e América do Sul, Real Madrid e Peñarol, em 1966. Dois jogos. Os uruguaios venceram ambos por 2x0.

"Na década de 60 o Peñarol herdou o cetro do Real Madrid, que tinha sido a grande equipe da década anterior", opina. "Naqueles anos, o Peñarol ganhou duas vezes a Copa do Mundo de clubes e foi três vezes campeão da América".

Tirei a foto que ilustra o post em outubro passado, na semifinal da Libertadores de 2024. O jogo foi contra este Peñarol, o tal vencedor de dois Mundiais e cinco Libertadores. Ainda assim, um bom e antigo freguês do Botafogo. Os eliminamos na Liberta de 1973, com duas vitórias, e fomos campeões da Taça Conmebol (hoje rebatizada Copa Sul-Americana) ganhando deles nos pênaltis, em 1993. 

Na semana anterior, no Nílton Santos, metemos no Peñarol uma sonora goleada: 5x0. Eu quase me joguei da arquibancada, em êxtase. Os uruguaios ficaram tão perdidos, depois do vareio, que por pouco não fecharam a fronteira, para que o Botafogo não pudesse entrar no país em vias de escriturar o massacre.

Não adiantou. Fomos assim mesmo.

Nesse jogo de volta, em que os uruguaios ameaçavam trucidar os torcedores botafoguenses, seguimos temprano para o Estádio Centenário, sob uma mal-encarada escolta policial. Eu aproveitei o sol que caía, no fim da tarde, para homenagear um uruguaio decente. 

Foi nas arquibancadas azuis de cimento carcomido que comecei a ler o livro de Eduardo Galeano.

De novo eliminamos o Peñarol (para alegria do autor, torcedor do rival Nacional) e nos classificamos para a finalíssima continental. Do outro lado do Rio da Prata, em Buenos Aires, exatos trinta dias depois, com um jogador a menos desde o primeiro minuto de jogo - fato inédito em sessenta anos do torneio -, o Botafogo perpetrou a mais gloriosa conquista da história da Copa Libertadores.

Se Galeano ainda estivesse entre nós, essa façanha sem dúvida daria um capítulo à parte.

O nome? o autor apreciava os títulos curtos. Tenho para mim que lhe bastaria "El Glorioso". 

Editora LP&M, 256 páginas  |  3a edição, 2013  |  Copyright 1995  |  Tradução Eric Nepomuceno

Título original: "El Fútbol a sol y sombra"


"Versalhes tropical", por Kirsten Schultz


O título, instigante, me induziu a crer que eu encontraria mais, e melhor, do que na realidade encontrei. Até aí, jogo jogado. Mérito de quem titulou.

Mas é inegável que o subtítulo "Império, monarquia e a corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821" provoca no leitor a expectativa de um estudo robusto - expectativa enganosa.

O livro se propõe a analisar as relações entre o povo e o poder constituído, no momento da transição do Brasil Colonial para o Brasil Império. A análise, entretanto, revela um conteúdo frágil e descontinuado.

A autora, Kirsten Schultz, é professora de História Latino-Americana na Universidade de Seton Hall, em New Jersey, com PhD em História pela Universidade de New York. Seu esforço é legítimo e as intenções parecem sérias - mas seu livro contribui pouco para o entendimento do período.

Como boa acadêmica, ela investe pesado nas citações e transcrições de época. O sabor proporcionado pelo português d'antanho não é suficiente, porém, para dar sustança às teses que pretende demonstrar, nem os autores que cita têm musculatura para legitimar seu raciocínio.

Como qualquer livro honesto, há sempre com que se beneficiar da leitura. A laboriosa pesquisa de Schultz não é de todo em vão. Mas a autora permanece ininterruptamente distante de nos entregar um ângulo pertinente, uma abordagem original ou, ao menos, uma boa crônica da época.

Há que se garimpar para encontrar uma ganga que seja.

Sendo menos tolerante, poderíamos chamar o livro de um vatapá verborrágico. Uma miscelânea de citações textuais de documentos de pouca ou nenhuma relevância. Ao fim e ao cabo, uma tentativa confusa de teorizar a simbologia do poder com a chegada da Corte portuguesa ao Brasil.

O cidadão de boa vontade tem muita dificuldade em entender o que pretende a autora.

Caso ela ainda esteja no ramo, digam a ela que me esforcei.

Editora Civilização Brasileira, 443 páginas  |  1a (imagino que única) edição 2008  |  Copyright 2001  

Tradução  Renato Aguiar 

Título original: "Tropical Versailles: empire, monarchy, and the Portugues Royal Court in Rio de Janeiro, 1808-1821"