"Escravidão", por Laurentino Gomes
Dia de Zumbi. Feriado chuvoso (pelo menos aqui no Rio) do dia da Consciência Negra. O dia de descanso pode ser também um bom dia para reflexão. A contribuição africana na construção do Brasil está (literalmente) no nosso DNA. As hashtags #somostodosmaju, danielle etc poderiam hoje ser sintetizadas por uma única, já muito utilizada, mas insuperável: #somostodosnegros.
Se no passado houve um tempo em que não éramos, isto não se aplica mais. A sociedade brasileira, não importa o tom da pele, e se alisa o cabelo ou não, é negra. No passado, havia índios, portugueses e africanos. Nós somos os filhos deles e nos misturamos todos. Fizemos essa mistura da mesma maneira que permanecemos vivendo: com muita covardia, opressão e deslealdade. Uma trajetória dura e desigual. É o que é. Pode ser cômodo, mas não é vantagem ignorar a História.
Ela está escrita em toda parte. Para aperfeiçoar nossa perspectiva contemporânea, podemos nos valer das dezenas de ótimos livros dedicados ao ingresso forçado da população africana na América. Entre eles, o trabalho de Laurentino Gomes é uma referência, por reunir o conhecimento distribuído em outros estudos mais encorpados. O seu primeiro tomo de "Escravidão" já diz a que veio.
E também como nós viemos.
Acima, na ilustração do post, você vê o libambo - uma fila de cativos recém-aprisionados, atados uns aos outros por argolas presas no pescoço. Os congoleses chamavam o procedimento de ekibuka. Não havia limite para o tamanho da fila: podia ter meia-dúzia de sujeitos recém-escravizados, ou centenas. As distâncias que os presos marchavam também variava, chegando até mesmo a quinhentos quilômetros - quando o percurso ia de Cassanje, no interior do continente, até Luanda.
Os cativos eram comprados aos sobas (reis locais) pelos pombeiros, uma espécie de representante comercial, que ia mercadejando pelas aldeias africanas. O pombeiro pegava mercadorias a crédito em Luanda e enveredava pelo interior, trocando suas bugigangas por escravos. Era ajudado pelos seus próprios escravos, que cuidavam da vigilância dos novos escravos comprados. Depois de uma expedição comercial de muitas semanas ou até mesmo seis meses (nas mais longas destas expedições), a caravana retornava ao litoral.
A perda média de vidas era em torno de 50%: metade dos escravizados não resistia às agruras do percurso em direção à costa e sucumbia. O grupo sobrevivente de escravos - já numa seleção natural dos mais fortes - era vendido na própria capital, no retorno. A outra parte era embarcada para a América. Não de pronto: era comum que houvesse um período de espera, com o grupo instalado nas imediações do porto, numa demora que poderia chegar a meses.
Enquanto aguardavam o embarque, os escravos no ócio eram empregados nas roças próximas. Quando não estavam trabalhando, permaneciam confinados em galpões fétidos, onde faziam suas necessidades no mesmo espaço em que comiam e dormiam. Após todas estas provações, ao enfim chegarem ao seu destino, no outro lado do Atlântico, os escravos africanos desembarcados já tinham em média um ano de servidão.
Este era o último elo de uma extensa corrente comercial. Tendo atravessado o oceano, o produto era entregue ao negociante final, a quem cabia fazer a distribuição pelo território local, para a entrega por encomenda ou a venda por leilão.
Podemos considerar este um módico resumo do procedimento que se tornou padrão no período. Dentro deste modelo negocial se deu a maior parte da transferência de seres humanos do continente africano para o novo mercado aberto, a América. Mas, se o mercado era novo, o produto era um velho conhecido. O comércio de seres humanos escravizados já era a mais valiosa commodity do Produto Interno Bruto africano nos séculos anteriores.
Laurentino Gomes, em sua síntese histórica, costura um vasto cabedal de informações em uma narrativa linear, de fácil leitura. As informações que condensei até aqui foram extraídas deste seu primeiro tomo (do que será uma trilogia), que resume a atividade escravagista na África até o século XVIII, em uma operação dominada pela impessoalidade e pela busca do lucro.
Como disserta o autor, os escravos exportados para os demais mercados representavam o motor da economia africana. Soa desconfortável, mas o produto por excelência do continente era gente. Sua alta taxa de reprodução proporcionava matéria-prima farta e gerava uma receita tão vantajosa que a perda de 50%, que frisei acima, era absorvida sem inviabilizar a operação.
E não só: era uma mercadoria tão auto-suficiente, que o próprio escravo aprisionava, vigiava, desfrutava, comerciava e possuía outros escravos, mesmo sendo ele também um escravo.
Esta peculiaridade, que eu não temo reputar uma aberração, se disseminou mundo afora e ampliou a sustentação do negócio. O Brasil foi o principal destino deste mercado criminoso de carne humana. Pondo a barbárie em números, estima-se que três milhões de escravos foram trazidos para o Brasil.
Nós somos eles, ainda que poucos entre nós sejam capazes de rastrear as próprias origens.
Alguns, sim. Quinhentos anos depois, alguns tataranetos dos tataranetos destes escravos que atravessaram o oceano tiveram a oportunidade de fazer o percurso inverso, como narra Laurentino, ao descrever o emocionante trabalho de análise genética de 150 afrodescendentes de cinco estados brasileiros: Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Maranhão.
Com base em amostras de saliva, o laboratório norte-americano African Ancestry (que mantém em seu banco de dados registros do DNA de mais de 220 etnias africanas) identificou a origem no continente africano de cada um dos testados. A entrega dos resultados foi acompanhada por uma equipe de filmagem, que gerou o documentário "Brasil: DNA África", dirigido por Mônica Monteiro (exibido há alguns anos na GloboNews, pode ser encontrado no YouTube). O roteiro previa a viagem de "retorno" dos afrodescendentes à sua tribo de origem na África.
Entre eles estava o arquiteto baiano Zulu Araújo, cujas raízes estavam numa pequena comunidade ticar no interior de Camarões. O filme mostra o encontro de Zulu com a tribo e sua recepção pelo rei local. E também a pergunta que fez ao rei Gah Ibrahim: "Eu gostaria de saber como nós, de etnia ticar, fomos parar no Brasil". Subitamente desconfortável em seu trono, o rei, culto e poderoso, marido de 20 mulheres e pai de 40 filhos, confrontado com a pergunta, pediu para respondê-la somente no dia seguinte - quando, enfim, o relutante soberano declarou como os ancestrais de Zulu foram parar do outro lado do oceano: "O chefe tinha autoridade sobre a vida de todos da tribo. Quando alguém cometia algum crime ou adultério, esta pessoa demonstrava não ser civilizada. Por isso ela era vendida aos homens brancos."
A situação, exponenciada pelo desterro, revela apenas uma parte dessa estória. Porque nem todos os escravizados foram sequestrados do continente. Segundo o historiador Paul Lovejoy, ao longo da história mais de 30 milhões de africanos foram escravizados. E mais da metade deles - 55% - jamais saíram do continente africano. Viveram e morreram como escravos - na África. A cultura da escravidão foi sempre muito arraigada no continente. Tanto, que nem após a sua própria morte o escravo tinha direito à liberdade.
De acordo com outro historiador, Alberto da Costa e Silva, a tribo xerbro, no litoral de Serra Leoa, "enterrava o cativo nu, para demonstrar que nada possuía, e com as mãos e pés atados por uma corda, cuja ponta comprida devia sair da cova e atar-se a um mourão fincado no solo. Antes de sepultá-lo, o dono lhe dava uma chibatada, para deixar claro que continuava a ter autoridade sobre o espírito do morto, que, no além, deveria ser escravo dos antepassados do seu senhor."
Na tradição africana, a propriedade de escravos era a demonstração maior de riqueza e status. O escravo era obtido em decorrência de guerras, sequestro ou mera e descarada captura de gente momentaneamente descuidada. Embora não citado por Gomes, o africano Mahommah Baquaqua, o único escravo brasileiro a escrever um livro (e em inglês!), era um alto servidor de um rei africano e foi capturado no deslocamento entre duas cidades. Feito escravo, e após ter sido vendido e servido por um tempo a um governo local, foi negociado com um mercador, que o exportou para Pernambuco (a rocambolesca biografia de Baquaqua, narrada em primeira pessoa, você encontra aqui no blog). O africano foi depois revendido para um carioca, que o vendeu para um navio nova-iorquino. Baquaqua foi dos EUA (onde se alfabetizou) para o Caribe e de lá para a Inglaterra, onde narrou suas desventuras. Pois Mahommah estava apenas se locomovendo em sua própria região quando foi sugado da sua condição de ser humano autônomo e transformado em mercadoria.
Como vimos na confissão do rei ticar, porém, a aquisição hostil não era a única forma da escravização: a condenação em sua própria comunidade era capaz de transformar um cidadão livre em escravo - na maioria das vezes, além de escravo, um estrangeiro, e no caso dos que vieram para a América, desterrado. O rei Gah Ibrahim atribuiu à incivilidade do transgressor a sua transformação em escravo, donde entendemos que a civilidade do governo local condenava o seu cidadão incivilizado a ser vendido como escravo a negociantes estrangeiros.
A prática se tornou um comércio bem mais lucrativo depois da chegada dos brancos à África. A alta procura elevou o valor do produto na origem, com reflexo no destino final: entre 1490 e 1590, o preço médio de um escravo em Portugal aumentou dez vezes, de 3 mil para 30 mil réis. É esta gigantesca e milenar rede comercial que Laurentino Gomes destrincha para o leitor, com a clareza peculiar da sua narrativa.
Segue aqui um trecho que conta muito do livro, seja da forma, como do conteúdo: "O tráfico era um negócio que exigia, principalmente, um cuidadoso trabalho de relacionamento dentro do continente africano com reis e chefes locais, que lucravam e controlavam o fornecimento de cativos em suas respectivas áreas. Cabia a eles organizar cuidadosamente as expedições militares para capturar escravos. Na África, Estados inteiros foram criados ou derrubados, assim como sociedades nasceram e entraram em colapso em função do tráfico negreiro. Os chefes africanos definiam os preços, controlavam a oferta, faziam alianças e fechavam negócios com diferentes interlocutores europeus - em geral, rivais entre si -, de modo a evitar o monopólio de qualquer país ou grupo de compradores no seu território."
Se o seu texto é inequivocamente claro na atribuição de competências e responsabilidades, Gomes tem a mais perfeita noção do terreno minado em que se tornou a questão racial. Pisa com cuidado e procura frases diplomáticas para abordar as raízes da compra e venda de seres humanos, que ganhou uma conotação distorcida sob o discurso do politicamente correto. Sinal dos tempos. Hoje, como se já não bastasse o ignóbil, a ele somou-se o demagógico. Que dupla.
Laurentino não é de subjetividades e é preciso nas operações aritméticas. "Entre o final do século XVII e o começo do século XVIII, traficantes europeus tinham de pagar o valor equivalente a 37 ou 38 escravos (cerca de 375 libras esterlinas) por navio negreiro em troca da autorização para ali comprar cativos. As despesas incluíam ainda impostos, pagamentos para os altos funcionários reais e para os intérpretes locais que sabiam falar fluentemente inglês, francês, holandês e português. Só então começavam as outras negociações, que podiam ser conduzidas apenas por intermédio de representantes comerciais credenciados pelo soberano."
Como bem frisa Laurentino após esta passagem, citando o historiador John Russel-Wood, "eram os africanos, e não os europeus, que ditavam as regras do jogo, e o comércio no âmbito da África permaneceu firmemente nas mãos dos governantes e das elites africanas", no que é ratificado por Lovejoy. A participação negra no tráfico era relevante não só na captura, armazenamento e venda, mas também na distribuição. As tripulações eram comumente integradas por escravos.
O navio Desengano, segundo o historiador Roquinaldo Ferreira, tinha quinze escravos africanos marinheiros e apenas nove brancos. É importante salientar que os negros que habitavam as regiões litorâneas e próximas à costa africana exerciam o papel de comerciantes; eles, em si, não eram mercadoria. Eles eram receptadores da mercadoria coletada no interior do continente, onde, com as sucessivas ondas de captura, os seres humanos caçados se retiravam cada vez mais para uma distância aparentemente segura da costa.
"A linha de produção da fábrica flutuante de mão de obra cativa começava no interior do continente africano, de onde milhões de escravos eram extraídos nas intermináveis guerras entre etnias, linhagens, Estados e nações envolvidos no tráfico negreiro", relata o autor, que esmiuça: "Da captura, na África, à chegada ao local de trabalho, no Brasil, um africano estaria sujeito a até cinco transações, nas quais ia sendo sucessivamente comprado e vendido por diferentes donos. Até o final do século XVII, a maioria dos angolanos vinha de regiões situadas a dois meses de caminhada até o litoral. No século seguinte, as áreas de captura já se situavam bem mais para o interior, o que exigia seis meses de caminhada até os portos."
Tudo isto reforça como o mercado de venda de gente era pujante. A compra de escravos mudou de patamar com a cultura da cana-de-açúcar, no Brasil, do algodão, do arroz e do tabaco, nos EUA, e a descoberta de ouro e diamantes, em Minas Gerais. O produto trabalhador escravo se valorizou.
Um triste ranking da perfídia nos coloca na liderança do total de escravos transportados da África para outros mercados continentais, com 5,8 milhões de pessoas de pele negra traficadas por brasileiros e portugueses (o Rio de Janeiro, no século XXI a cidade das favelas e da corrupção, foi o maior porto negreiro da história, cujos navios transportaram 1,5 milhão de escravos, seguido por Salvador, com 1,3 milhão, e Recife, com 850 mil).
Os ingleses, que no primeiro quarto do século XVIII assumiram o papel de principais coibidores do tráfico, antes disso mercadejaram 3,8 milhões de africanos, cabendo aos franceses 1,4 milhão, de acordo com o autor. Os norte-americanos, que se tornaram historicamente os possuidores dos holofotes da causa negra, traficaram 300 mil cativos - o número, reduzido quando comparado com os principais traficantes, se deve a uma entrada tardia na operação e a uma taxa de sobrevivência dos trabalhadores escravos muito acima dos demais países. Curiosamente, o livro não traz informações sobre os números do tráfico espanhol.
A mão-de-obra humana, sob o jugo da escravidão, foi provavelmente o maior negócio da humanidade durante boa parte dos séculos recentes. Laurentino, detalhista, discrimina a contabilidade dos grandes operadores do comércio negreiro. E, se seu compromisso como historiador impôs que ele registrasse de forma criteriosa o mecanismo do tráfico, habilidosamente evita jogar luz excessiva sobre uma verdade histórica inconveniente. Porque, se o Holocausto contra os judeus foi um diabólico genocídio, com um culpado evidente - o nazismo alemão -, talvez o Holocausto Negro tenha um culpado que venhamos nos recusando a colocar no banco dos réus.
Nos habituamos com a verdade prática de que a cor da pele determina quais são as vítimas e quais são os criminosos. Mas talvez não seja tão simples. Esta minha abordagem, entretanto, reitero, não é o viés de Laurentino. Ele não faz juízo de valor sobre o assunto (mas seu trabalho fantástico me proporciona fazê-lo), que é apenas um dos enfoques, neste que é o primeiro livro da sua trilogia sobre o tema.
Neste tomo, são diversos os fatos históricos sobre os quais ele se debruça. Gosto, entre muitas outras, das passagens sobre os jagas e a incrível rainha Jinga, e também as sobre o titanic brasileiro, o galeão Padre eterno, o "mais famoso baixel de guerra que os mares jamais viram", como escreveu o lisboeta Mercúrio Português, em 1665. Pesando duas toneladas e apto a receber 144 canhões, o colosso foi à pique em poucos anos, no Oceano Índico. Seu dono e construtor era Salvador de Sá, carioca filho de Martim de Sá e descendente de Estácio e de Mem de Sá, fundadores da cidade (e todos eles nomes de logradouros próximos no Centro velho do Rio, ainda que ironicamente circundando a chamada "Cidade Nova", que é velha e desprestigiada).
Salvador foi governador do Rio por três vezes, e também matador de índios no Sul do país (exterminou tribos guaranis, paiaguás, guaicurus e calchaquis), negociante de prata nos Andes, grande comerciante de escravos e dono da concessão perpétua do monopólio da pesagem e do armazenamento de todo o açucar exportado pelo porto carioca. Seu auge foi quando liderou uma força-tarefa de 15 navios e 2.000 homens para navegar até a África e reconquistar Angola aos holandeses.
Já quase ao fim do volume, Laurentino dedica alguns capítulos à história de Palmares e de Zumbi. O mítico Quilombo dos Palmares teve início no fim do século XVI e durou por quase todo o século seguinte. O ano que se acredita tenha sido o de sua destruição final é 1694.
(Até eu me envolvi na destruição do quilombo, como figurante de soldado no filme homônimo, de Cacá Diegues, lançado em 1984. Nesta que foi minha única experiência na frente das câmeras, eu desertei. Optei por ser um figurante fugitivo, depois de muitas horas internado nas matas de Xerém, à base de um solitário sanduíche de mortadela e algumas gramas de cannabis sativa. Inebriado, me piquei e não figuro nas cenas de batalha. Nada a lamentar. De cara limpa ou não, o filme é péssimo.)
O kilombo, palavra originária do quimbundo, um dos idiomas falados em Angola, significava acampamento, arraial ou união. Escravos fugidos das cidades e da zona canavieira conseguiram organizar sua defesa em diversas aldeias interligadas, cobrindo uma vasta região e povoada por fugitivos não somente do cativeiro, como também brancos fugitivos da lei.
Durante décadas o Quilombo dos Palmares não parou de crescer. Diversas expedições foram montadas para destruí-lo, sem sucesso. Quando a cidade principal do quilombo era atacada de forma mais intensa, seus habitantes abandonavam o local e erigiam uma nova Palmares, a algumas léguas de distância da anterior.
Um relato de Jurgens Reijimbach, tenente holandês responsável por uma entre as diversas caravanas de assalto a Palmares ao longo do século XVII, é um dos poucos remanescentes a descrever a cidadela. Após vinte e um dias de incursão sertão adentro, tendo já destruído os vestígios abandonados de outras construções quilombolas (chamadas então "Palmares velha"), a expedição formada por holandeses e brasileiros entra em Palmares pela sua porta ocidental.
"Este Palmares tinha igualmente meia milha de comprido; as casas eram em número de 220 e no meio delas erguia-se uma igreja, quatro forjas e uma grande casa de conselho, que havia entre os habitantes toda a sorte de artífices e o seu rei os governava com severa justiça, não permitindo feiticeiros entre a sua gente", narrou Reijimbach, revelando que "quando diversos negros fugiram, crioulos foram enviados atrás deles, que foram capturados e mortos, de modo que o terror agora reina entre eles".
Aos incautos surpreende a informação de que os líderes quilombolas eram proprietário de escravos. Cativos que, além de não serem poucos, sequer eram tratados de forma mais humana: quando fugiam, eram capturados e mortos. Paradoxal. Temos aqui escravos fugitivos punindo com a morte escravos também fugitivos, com os segundos sendo condenados pelos primeiros por terem fugido.
Os parcos relatos históricos que temos não lastreiam o novo relato ficcional (mas que posa de real) construído séculos depois, este tempo em que vivemos. Vista de agora, deste futuro-do-pretérito idílico, Palmares não teria nem escravos, nem injustiças. Seria o Éden negro.
Há registro de pelo menos 17 expedições militares de grande porte destinadas a destruir Palmares. Nenhuma delas foi bem sucedida, devido ás táticas de guerrilha e à elusiva mobilidade do grupo. Não obstante, uma negociação de paz foi enfim levada a cabo. O líder Ganga Zumba, pai de Zambi e tio de Zumbi, concordou em ser indenizado pelo governo com a alforria de todos os habitantes do quilombo, com direito à posse da terra ocupada, em troca da desmobilização militar dos quilombolas e também do compromisso de não mais acolher fugitivos.
No papel, bonito. Mas tinha tudo para não dar certo. Confiar na lealdade dos portugueses poderia ser excesso de ingenuidade. É um povo ladino, matreiro. Quem de primeira percebeu isso foi Zumbi, que se recusou ao armistício, envenenou o tio e se escondeu nas matas, mantendo em pé de guerra os quilombolas.
O governo, escaldado de tantas derrotas ao longo de um século, fez um acordo com o diabo: encomendou ao bandeirante Domingos Jorge Velho a missão de arrasar Palmares. Os paulistas eram conhecidos por sua vocação, sertaneja e selvagem. E Jorge Velho, meio tapuia, meio português, tinha um exército de 1.300 homens habituados a dormir ao relento, viver de raízes, a emboscar e a matar.
O preço foi caro. Velho receberia todo o armamento, posse de parte do território quilombola, um quinto dos escravos capturados, devolução comissionada dos outros quatro quintos, direito de matar quem quisesse - até mesmo brancos que fossem empecilhos à expedição - e o perdão antecipado de todos os crimes cometidos na execução da tarefa.
Se valendo de cercos e assaltos até o sítio definitivo de Palmares, a comunidade foi arrasada. Zumbi logrou fugir e passar os dois anos seguintes escondido, até que foi delatado, capturado e decapitado. Antecipou em um quarto de milênio o que viria a acontecer com Lampião, nos mesmos arrabaldes.
Este Zumbi, que celebramos hoje, deixou um registro episódico da sua existência. Sabe-se dele muito pouco além do que eu referi aqui, nestes curtos parágrafos. Mas seu vulto foi se agigantando, à medida em que causas sociais se embaralharam com o estudo da História. Foi aí que realizou seu maior feito, ao emprestar seu nome a um discurso idealista contra a opressão racial.
Não há referências documentais - seja da época ou dos três séculos posteriores - que mencionem seu nome ou algum dado biográfico seu anterior ao combate, que não os registrados quando do acordo de paz entre Ganga Zumba, rei de Palmares, e o governo português do Recife, em 1678. O que se sabe da sua existência se circunscreve deste período até sua morte, menos de duas décadas depois.
Este lendário Zumbi dos Palmares, entretanto, no século 20 foi atualizado ("o nosso Espártaco negro", defendeu, em 1929, Astrojildo Pereira, fundador do Partido Comunista Brasileiro) e chegou a ganhar uma biografia, no fim dos anos 70. Baseada em misteriosas cartas antigas, inesperadamente encontradas após três séculos guardadas (e que jamais teriam sido mostradas a ninguém, nem antes, nem depois da sua "revelação"), o gaúcho Décio Freitas - também vinculado ao PCB - jura que elas trariam uma biografia do líder quilombola. E mais: que ele praticava um "socialismo infuso" e que em Palmares "as decisões sobre os problemas cruciais eram tomadas por uma assembleia de que participavam todos os habitantes adultos. Havia entre os palmarinos igualdade civil e política".
Só faltou dizer que os palmarinos chamavam um ao outro de "companheiro quilombola".
Como convém a um bom herói, ele defendia os oprimidos e criou um reino de liberdade e justiça social. Protegia os perseguidos, roubava dos ricos e dava aos pobres. Como Robin Hood. Ou mais, como Tarzan: na história de Décio, Zumbi nascera livre, fora educado por um padre português e somente aos 15 anos encontrou sua vocação libertária - rejeitando seu lar e sua cultura portuguesa, seu tutor católico e a liberdade que lhe pertencia de direito. Abandonou tudo e foi para o sertão, erguer quilombos, proteger ex-escravos e guerrear contra os portugueses.
O fundador do Grupo Gay da Bahia, o antropólogo Luiz Mott, escreveu também um perfil biográfico de Zumbi, onde suspeita que o herói tenha sido homossexual. Atribui sua convicção ao que imagina fossem os ritos homofóbicos da época, pois, ao ser executado e degolado, Zumbi teria tido o próprio pênis decepado e enfiado em sua boca.
OK. Vou pular essa.
Este primeiro tomo traz ainda diversas particularidades que ligam o presente ao passado. Muitos destes distantes personagens históricos se imiscuem na nossa rotina contemporânea, como toponímicos, que batizam logradouros país afora. Alguns deles são um autêntico despropósito. Como Garcia D'Ávila, herdeiro da Casa da Torre (uma das maiores propriedades rurais da colônia), traficante de escravos tido como um dos homens mais ricos da Bahia e também biografado por Mott.
Segundo Laurentino, Garcia Dávila "foi denunciado à Inquisição por uma série de atos de sadismo e extravagâncias físicas e sexuais contra suas escravas". Lógico que, tanto à época como agora, não rolou condenação. Mas, cá pra nós, tem cabimento? Em tempos de cancelamento à torto e à direito e de Me Too, um comerciante de mulheres negras, estuprador, ser o nome da rua de metro quadrado mais caro do país, endereço de badaladas grifes femininas? Não pode. No mínimo.
Sugiro que entre as vereadoras cariocas - categoria na qual a versão masculina tem por tradição dar nome de rua e promover rachadinhas - ao menos uma se apresente para propor uma mudança no nome da rua. Rua Jaguar, rua Posto Dez, ou, melhor, rua Marielle Franco, dando enfim um endereço a quem já batiza tantas placas. Expurgar nome arbitrário de rua é bem melhor que destruir estátuas, que são arquétipos do seu tempo e, não raro, obras de arte.
Espero o lançamento do segundo tomo. O tema é elemento determinante da nossa História e parte imprescindível da nossa brasilidade. A narrativa, dura, é atenuada pelo texto correto e bem alinhado do autor, em páginas arejadas e com fonte grande, com notas remissivas mais técnicas do que discursivas e um caderno de imagens impresso em papel couchê, no centro da edição.
Um bom livro para o dia de hoje. Ou para bem presentear alguém neste Natal de isolamento. Ou para lê-lo a qualquer tempo e hora. Se a história negra do Brasil lhe diz respeito, seja qual for o grupo étnico ao qual você julgue pertencer, o livro de Laurentino Gomes é uma leitura oportuna.
Globo Livros, 479 páginas
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