"Retratos e fatos da história recente", por Carlos Castello Branco
É voz corrente que o Brasil é um país sem memória. Vou além: um HD travado. Não roda nem pra frente, nem pra trás. Millôr Fernandes já dizia que o Brasil era o país do futuro "mais antigo do mundo". Pelo menos foi com esse nome que Zweig batizou a propaganda que vendeu pro Getúlio.
Ainda dá pra recuperar. Os registros escritos estão aí para estabelecer esta conexão. Atendem também pelo nome de "livros". Tem aos montes e de tudo que é jeito. E nem precisa ter nascido com essa vocação explícita, de berço. Pode ter sido publicado em papel jornal, pro consumo corrido do dia a dia. Se é bom, e depois ajuntado e encadernado, vira livro - por que não?
Foi o que fizeram com as colunas do Castello. Para quem não sabe, não lembra ou jamais ouviu falar, o Castelinho era um expert no ramo da síntese política. Sua trajetória foi longa - 55 anos de redação -, mas aqui o apanhado é restrito. A edição, despretensiosa, circula mais é pela primeira metade dos anos 70, mordendo um naco do coração da ditadura.
Sendo mais mordida do que mordendo, aliás.
As colunas selecionadas para a edição ou foram escritas no período ou se dedicaram, posteriormente, aos nomes decisivos daquela época. De triste memória, para quem a tem.
O país controlado pelo governo militar ainda rescendia aos anos de chumbo, de 68 a 74, e para o populacho os dias corriam mais pasmacentos do que poderíamos imaginar. A repressão eliminara a resistência e a normalidade tinha um quê de conformismo. A cultura era vibrante, o mundo crescia, nossa economia enganava. O Brasil ia à praia, via Chacrinha, Flávio Cavalcanti e pornochanchada e jogava futebol. O Maraca dava fácil mais de cem mil num domingo de sol. Ê Brasilzão.
Os jornais permaneciam sob censura. Seus leitores cotidianos, porém, tinham uma visão de soslaio do jogo de cartas marcadas da negociação política entre civis e militares, principalmente nos artigos de Carlos Castello Branco. O pouco garboso jornalista piauiense - sem saco nem pescoço - tinha espaço diário no Jornal do Brasil. Texto redondo e trânsito fácil em meio aos políticos governistas e da "oposição" consentida.
Não tenha dúvida de que a leitura desta coleção de artigos são aulas de jornalismo e de análise do tabuleiro político - ainda que a coletânea que tenho em mãos dê preferência mórbida aos obituários (que Castelinho transformou em perfis íntimos de alguns protagonistas do seu tempo). Menos momentosas, mas cirúrgicas.
Seu conhecimento do palácio lhe permitia dizer sem medo quem ia onde, quem fazia o quê e em qual direção soprava o vento. Para um leitor na terceira década do terceiro milênio, o acesso a estas colunas de política, publicadas sob o constante olhar de esguelha do governo militar, revela muito.
Por isso, ao puxar da prateleira esse "história recente" (antiga pra caraca...) do Castelinho, cujo centenário se deu este ano, em junho último, temos uma chance rara de voltar a um passado que ainda assombra o presente. E assombrar é bem o termo, porque não somente o autor, mas todos os personagens - cada um ganhando ao menos um capítulo - estão mortos. À exceção do Fernando Collor, que permanece nos assombrando ainda vivo, com sua cara de Bela Lugosi de Canapi.
Ainda essa semana estava dividindo palanque e capa dos jornais com Bolsonaro.
Terror à parte, Gilberto Dimenstein, criador do Catraca Livre e que nos deixou agora em maio, diz na orelha que Castello era um repórter que escrevia como historiador. Já Wilson Figueiredo, um dos mais longevos editorialistas do JB, fala no prefácio que a "Coluna do Castello" se tornou o "monólogo impessoal a serviço de uma reflexão coletiva" e frisa que o dia "não começava antes da leitura matinal do Castelinho". Contrabandeio o que li num outro livro, a biografia do próprio Castello: Merval Pereira acusa o biografado de ser o maior jornalista do seu tempo.
Eu peguei uma fatia desse tempo. Apesar de rapazola, ler a coluna do Castello era um hábito meu no fim dos anos 70 (embora antes de sapear a coluna dele eu conferisse primeiro a do João Saldanha). Eu me interessava, mas talvez não pegasse as nuances. Segundo Figueiredo, o jornalista "operou no Jornal do Brasil um código de sinais exclusivos, que os leitores traduziam diretamente, e deles se valia quando assediado pela censura, foi essa, na verdade, a arte do possível".
Relendo seus textos, hoje, é nítida a habilidade com que ziguezagueia sobre um campo minado. Quem quiser desfrutar desta edição, que comento aqui, acha fácil nos sebos reunidos na internet.
Os artigos foram dispostos em ordem alfabética. Muitos dos nomes são absolutamente ignorados hoje, a despeito da relevância que pudessem ter tido há meio século. Como Adauto Lúcio Cardoso, que tramou um golpe contra Getúlio nos 40, agiu contra Juscelino nos 50, aderiu à ditadura nos 60, foi nomeado para o STF pelo governo militar e, em uma sessão em que um decreto abusivo do governo foi aprovado pelos seus pares, tirou a toga, a depositou sobre a cadeira e renunciou ao mais alto posto da magistratura.
Com todas as restrições que possamos fazer, vale dizer: outros tempos.
É útil dar uma ciscada sobre um apanhado dos perfis que ele assinou, até mesmo porque, se você me leu até aqui, merece rever, ou conhecer, um pouco do texto elegante de um jornalista político ímpar.
Com o perdão da digressão, se formos inverter e falar de um político jornalista, o meu predileto tem blog diário, assina coluna semanal em jornal, fala todo dia na TV e vai ser valorizado depois de morto. O tal a que me refiro, um mero ex-terrorista e ex-motorneiro de metrô sueco, nascido em Juiz de Fora, será enfim um dia reconhecido. Eu assim espero.
O Centrão, atualmente com larga proeminência, espelha bem o congresso dos tempos de Castello. Que fala assim de Benedito Valadares: "Um expoente de uma geração de mineiros que se vangloria de exercer com adulta competência a arte de apoiar o governo e de lá permanecer". Sobre ele, Castelinho lembra a frase dita por Getúlio Vargas, quando Benedito, governador de Minas, ameaçou resistir ao Estado Novo: "Guampada de boi manso".
Ao falar do ex-ministro do Supremo Bilac Pinto (autor há meio século de uma lei anticorrupção que jamais foi aplicada), Castello diz que ele denunciou o plano brasileiro de enviar tropas ao Vietnam - excrescência de um alinhamento puxassaquista que não ficaria deslocado nos tempos de hoje. Após a denúncia, alguém de bom senso abortou o plano. Imagina.
Falou muito de Carlos Lacerda, solene desconhecido das gerações vindouras. Dele Castello diz que na juventude "tumultou a esquerda, liderando-a ou dividindo-a." Negando os arroubos juvenis, se tornaria artífice da direita. Nas palavras do colunista, "sua pregação está na raiz da resistência militar ao getulismo e ao janguismo", afirmando que "foi Lacerda quem criou o clima para a renúncia de Jânio Quadros, para a resistência ao parlamentarismo e a João Goulart, de cuja deposição, se não foi o autor, foi, pelo menos, como governador da Guanabara, o mais vigoroso instigador".
Governador da Guanabara era o nome antigo do prefeito do Rio, numa época em que o Rio era o Rio.
Pessoal mais novo deve lembrar da série "Agosto", em que Toni Tornado representava o capanga de Getúlio, e que tinha tomado a decisão por conta própria de matar um desafeto do presidente. A vítima a enquadrar era Lacerda, a quem Gregório Fortunato encomendou a morte a um certo Alcino.
Alcino do Nascimento, marceneiro dublê de matador, que no último serviço matara a pessoa errada, acertou o pé de Lacerda e o peito do major que o acompanhava. O militar morreu, o pistoleiro trapalhão confessou o mandante e Getúlio, duas semanas depois, se matou. Castello reproduz as palavras de Getúlio a Capanema, dias antes: "O tiro com o qual alvejaram esse rapaz ricocheteou e pegou no meu peito."
Falava eu do estilo do Castello. Ele matava dois coelhos com uma cajadada só e com um pé nas costas, como neste texto de outubro de 68, em que ele bate em sujeitos antagônicos: "Há algo de um drama paralelo talvez não na alma, mas no comportamento político do presidente Costa e Silva. Ele evidentemente não é indeciso e frouxo no comando como o sr. João Goulart, mas a verdade é que se projeta sobre seu governo a sombra de um dualismo insolúvel."
Pouco antes, Castelinho citara Brizola, sobre este mesmo Jango, quando ainda no poder: "Trava-se na alma do presidente João Goulart uma luta-de-faca-no-escuro entre dois adversários inconciliáveis: o herdeiro político de Getúlio Vargas e o maior proprietário rural do Rio Grande." Muito mais sobre Brizola e Jango você acha aqui no blog, no comentário do livro "1961", de Flávio Tavares.
Não que não existissem bolas fora. Como as loas tecidas sobre Garrastazu Médici, em março de 1974. Chamar o seu governo de administração "brilhante e feliz", que "deu impulso inédito à economia nacional" e "ele deixa o governo como um chefe" não é texto para orgulhar ninguém. Onze anos depois Castelinho dedicaria outra coluna ao ex-presidente, de quem destacou a humildade e honradez. Muitas famílias não conseguem digerir este elogio.
Falando de Juscelino ("pela primeira vez, com seu governo, o Brasil sonhou que seria um dia uma grande nação"), disse que este deixara uma lição de otimismo e de fé "que iria ressurgir sob o governo Médici". Mas sobre a suspeita morte de JK, Castello corajosamente assinou, na sua coluna de 24 de agosto de 1976: "Sua morte foi estranhamente antecipada por uma boataria que correu o país 15 dias antes dela ocorrer".
Há muitas passagens significativas e muitos personagens relevantes. Em um tempo em que muito não podia ser dito, o jornalista disse mais do que a maioria. Talvez tenha perdido o senso da medida. Em uma conversa em Paris com o ex-presidente João Goulart, este alertou Castelinho que a morte do filho de Castello pode ter sido um "acidente" fabricado pela ditadura.
O colunista não se via perigoso, nem um detrator que merecesse uma retaliação deste porte. Talvez até então não tivesse atilado com a forma com que o governo administrava os próprios porões. Ou nunca se imaginou ameaçado por estes. Não se sabe até onde Castello levou em conta a suspeita de Jango. Mas, segundo seu biógrafo, lançada a dúvida, Castelinho bebeu, todos os dias, até morrer.
Além dos tantos já citados, a edição inclui material sobre Golbery, Leitão de Abreu, Sarney, Tancredo, Milton Campos, Itamar, Jarbas Passarinho, Eugênio Gudin, Ulysses, Ben Gurion e o primo de Castello, o presidente Castello Branco, em meio a ainda muitos outros.
Como você pode constatar, boa parte dos nomes que marcaram a política brasileira na segunda metade do século passado estão registrados - em momentos mais ou menos lisonjeiros -, nas pouco clementes colunas de Carlos Castello Branco.
É leitura preciosa, ainda que não imperativa, por datada. Para quem crê no adágio de que conhecimento não ocupa espaço, porém, não há o que perder e resta sempre alguma coisa a ganhar.
Me agradou a leitura, ainda que dela não tire conclusões otimistas. Navegando pelas águas ribeirinhas desta história "recente" (hoje já tão distante), observamos pormenores, que se repetem, de um país em reconstrução permanente.
Editora Revan, 207 páginas
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