"Butchers crossing", por John Williams

terça-feira, julho 21, 2020 Sidney Puterman

Quatro sujeitos ensimesmados chacoalham pela pradaria árida. Seguem em direção às Montanhas Rochosas, no Colorado. Desde sua partida de um minúsculo lugarejo no Kansas - a erma Butcher's Crossing do título -, cruzam desertos, vadeiam riachos, acampam quando encontram um bom pasto e partem antes de nascer o sol. Crêem que, se tudo continuar correndo bem, logo chegarão às montanhas. No seu avanço arrastado, os cavalos se limitam a acompanhar a lerda parelha de oito bois, atrelados à carroça semi-vazia, com um maneta na boléia. Embora os quatro personagens estejam viajando juntos já há algumas semanas, sua comunicação se limita ao funcional. Na carroça embarcaram a comida básica (feijões, café e biscoitos duros), uísque, alguma água e bastante munição. Sofrem de desconforto, sede e monotonia. Mas tudo sempre pode piorar. Este é, em resumo, o cenário desenhado por John Williams para proporcionar ao leitor uma lenta imersão no Velho Oeste. Quatro caubóis atravessando uma paisagem inabitada, com um objetivo precisamente definido. Seu leitmotiv é uma carnificina. Sonham concretizar a mãe de todas as caçadas. O cara que cavalga na frente tem um mapa na cabeça e prometeu uma shangri-lá de búfalos. Um vale oculto que é um criadouro natural e milenar dos bisões. Então os homens seguem para transformar este Éden animal em um holocausto. Até então eu não sabia nada sobre búfalos. Todo meu conhecimento se restringia à mussarela de búfala. Pois agora eu subi alguns degraus no verbete. E sei que, neste caso em particular, mais do que caçar, eles estão indo matar búfalos estáticos. Porque eles, os búfalos, não se movem (eu aprendi um monte nesse livro sobre como exterminar uma manada inteira). É que a vítima, o búfalo, é grande, mas é burro. Se o bando de matadores andar em fila, ele não se assusta. Fica lá, pastando. Facilita ainda mais porque o búfalo se mantém virado para onde o vento está soprando. É só não ir a favor do vento e chegar de mansinho. Como diz o atirador do grupo, Miller, "é o movimento que os deixa agitados - você pode ficar o dia inteiro na frente deles sem incomodá-los, se conseguir ir até lá sem se mexer". Para chegar "sem se mexer", você rasteja. Em uma das suas raras falas com mais de duas linhas, ele antecipa para o noviço um tutorial do gênero tiro-e-queda. Manda mirar um pouco atrás da omoplata, dois terços do topo da giba, para atingir o coração. Ele pondera que o melhor seria acertá-los um pouco de frente, nos pulmões. Mas - ressalta - "dessa forma, eles não morrem logo, mas também não fogem correndo para muito longe depois de baleados". É um matador que prima pela técnica. Ele alerta que "com o vento, é arriscado tentar acertar na frente". Mas a orientação fundamental é: sempre tente acertar primeiro o líder da manada. Búfalos não vão longe sem um líder. Ficam desnorteados, não sabem o que fazer. A manada, acéfala, se torna apática. Pois foi o que aconteceu. Após assistir a primeira sequência de tiros, o noviço corre até os demais, ofegante: "Miller os pegou, não sabem para onde ir. Simplesmente ficam ali parados, deixando que ele atire neles. Nem fogem. Simplesmente ficam ali parados." Este é o trunfo quando o atirador mira nos pulmões. Permite abater uma quantidade maior de búfalos, em um espaço menor de tempo. O animal morre sem estardalhaço. Cai duro e os outros continuam pastando ao redor. Por isso é que um matador profissional, chegando ao habitat dos bichos, é capaz de produzir sozinho uma linha industrial de matança. Com o tiro bem dado, o búfalo de quase uma tonelada implode. Pois é. Para mim, não desce pela garganta. Vegetariano há um quarto de século, a sensação de sacrilégio - frente à pormenorização do massacre meticuloso dos búfalos - me persegue durante todo o tempo de leitura. Leio incomodado. Mas nem de longe isso parece ser uma questão para o pequeno bando de caçadores. Eles estão em 1870, o escritor está em 1960 e o leitor vegetariano, eu, em maio de 2020. Nossos pontos-de-vista são oriundos de séculos diferentes e de contextos que não podem ser comparados. Então, segue o livro. Os quatro homens formam um grupo enxuto. Miller é o caçador. Um veterano do mato. O maneta é seu companheiro-assistente, que toca a carroça, cuida do acampamento e faz a comida. Com eles segue um esfolador, contratado com a reputação de ser o melhor no ofício. O quarto integrante, o noviço, é um jovem de Boston que pela primeira vez pisava no Oeste - e que, por sinal, era quem estava bancando a expedição. Além de ser o investidor, ocupará a função de aprendiz de esfolador. Em síntese, este é o livro. Tendo saído do vilarejo, onde deixaram para trás o comprador de peles (McDonald) e a jovem prostituta apaixonada pelo noviço (Francine), é o moroso avanço destes quatro cavaleiros, rumo a uma área remota conhecida somente por Miller, que compõe a narrativa. Lá espera por eles uma Serra Pelada de búfalos. Durante uma centena de gerações, o vale foi um paraíso para os bichos. Agora se tornaria um grande beco, com um paredão em uma extremidade e um atirador com uma munição interminável na outra. Mas este é um julgamento moral anacrônico. Ainda que me obrigue a proferi-lo, é literariamente irrelevante. O texto é coisa de mestre. John Williams escreve com um preciosismo cenográfico que parece que estamos defronte a uma tela panorâmica. O romance cerze a paisagem e a lenta movimentação dos personagens em uma interminável profusão de pormenores. Aprendi coisas do Velho Oeste que passei a vida sem saber. Que búfalo é burro feito uma porta. Que os caçadores "faziam" a própria munição. Que o sujeito resiste ao isolamento na neve enfiado dentro de uma tenda sanduíche. Que búfalo nunca morre de velho: vira caça de homem ou de lobo. Que testículo de búfalo jovem é afrodisíaco. Que se deve comer o fígado cru do búfalo para evitar a "doença do búfalo" (erupção da pele, ulcerações, febre e fraqueza), provocada justamente por você comer o resto do búfalo. Eu não tenho nenhuma serventia para esses ensinamentos. Aqui nem neva. E o próprio Miller, o lacônico, achava impossível entender os búfalos: "É melhor não tentar entender os búfalos. Nunca se sabe o que são capazes de fazer. Caço búfalos há 20 anos e ainda não sei. Já vi búfalos correndo na direção de um desfiladeiro e cairem cem búfalos um em cima dos outros no fundo de um cânion. Vi búfalos se assustarem com um corvo, mas vi gente andando no meio dos búfalos sem que eles se movessem um centímetro. A única coisa que se pode fazer é não pensar neles, simplesmente passar por cima, matar quantos puder e não tentar entender coisa nenhuma". No seu andamento milimétrico, o roteiro de Williams nos conduz a um grau de apreensão diametralmente oposto à velocidade em que a lacônica caravana se move. Quando eles seguem avançando deserto adentro, e não encontram água, até eu resseco. Mais não conto. É um livro que não permite spoiler sobre o seu terço final. O que vem antes é a narrativa, grossa, encorpada, do escritor. Rara. Agradeço à Rádio Londres pela macia edição em capa dura e laminada, o que torna a relação com o o objeto livro mais preciosa. Mas (pula aí quem for fresco com detalhes antecipados), elogios desvairados à habilidade do escritor à parte, confesso que a forma com que ele exerceu seu direito de escolher a conclusão da própria estória me frustrou. Após a longa maratona enfurnado com aqueles quatro em um acampamento na montanha, passando frio, fome, sede e medo, ansiava por um encerramento à altura da aflição contínua à que fui exposto, dias a fio. Tendo feito uma opção pela ira destruidora, o final não me soou condizente com o artesanato da obra. Direito dele, tudo bem. Mas eu achei que John Williams pegou o atalho errado na hora de atacar o pico. Ou o fim dele simplesmente me pareceu uma má solução para um grande texto. Mas essa não é a opinião dos entendidos. Pelo que li antes e depois, acham que o tal final que eu estou detonando é até mesmo a melhor parte de um livro espetacular do início ao fim. Valorizam a questão da busca existencial do protagonista, naquela ladainha de encontrar a si mesmo. Rapá, essa estória de auto-busca comigo não desce nem com uísque. Não tenho essas sutilezas. Existencial por existencial, eu ainda tô mais ligado no sentimento coletivo dos búfalos que têm sua existência extinta por um caçador filha-da-puta e que, cúmulo da porra-louquice, ainda vai terminar o livro dando uma de prima donna endemoniada. Caraca, os búfalos são tão maneiros naquela vidinha mazomeno de pasto selvagem, aí vem uns carinhas lá do raio que o parta sentá o dedo neles e neguinho filosofa que os manés estão em plena convulsão mental no processo de acharem a si mesmos? Dá um tempo. O búfalo ali era tão mais importante que os caras, que, para você ver só, o editor escolheu colocar na capa a foto do Sr. Búfalo. Por essas e outras eu não me conformei com o destino dado a ele e ao despossuído personagem "manada". Não é que eu queira uma moral, eu quero é um sentido. O Williams escreve muito. Mas esse finalzinho dele eu passo.

Editora Rádio Londres, 332 páginas

Obs.: No título está grafado "Butchers Crossing", sem o apóstrofo, porque, por alguma razão, o apóstrofo no título desconfigura o layout da página. Vá entender. O certo é "Butcher's Crossing", óbvio.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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