"Notes from a big country", por Bill Bryson

segunda-feira, maio 14, 2018 Sidney Puterman

Gosto de um texto bem-humorado (eu e a torcida do Botafogo), o que já é especialidade de Bill Bryson em todas (das muitas) áreas em que se aventura. Eu já havia lido a tradução de uma obra sobre Shakespeare escrita pelo autor, mas é a primeira vez que leio Bryson no original. É tão divertido quanto, além de ser uma interminável profusão de adjetivos que turbina o inglês do mais ignorante dos sujeitos (eu, decerto). Ri à farta com a constante perplexidade de um cidadão confrontado com as idiossincrasias da sua própria terra. É que Bryson, norte-americano radicado no Reino Unido, relata suas peripécias quandono fim dos anos noventa, após duas décadas desterrado, volta para os Estados Unidos, mas agora com mulher e filhos - todos ingleses -  a tiracolo. Provocado por um amigo editor, a narrativa das suas agruras ganhou publicação no Mail on Sunday's Night & Day (revista focada em cultura e impressa em papel jornal). E o que eram apenas artigos despretensiosos acabou se tornando um compêndio de estupefatas exasperações. Se você reparar, são muitos ângulos simultâneos. O nosso ponto de vista, vendo o ponto de vista dele, lembra mais uma matryoshka, aquelas bonequinhas russas que você tira uma de dentro da outra que está dentro de outra que estava dentro de outra e por aí vai. Ou seja, vemos a cultura americana pela lente da cultura inglesa, mas que na verdade é a visão recondicionada de um americano que vivia na Inglaterra. E mais: toda esta parafernália étnico-anglo-saxônica se submete ao caleidoscópio temporal. As situações que ele narra, apoplético, são testemunhadas pela sua ótica contemporânea - mas um presente que hoje, para nós, é passado decrépito, o tal distante milênio anterior. E tudo isto, mais ainda, no meu caso bem específico, lido por um leitor brasileiro (eu) e agora você, que lê as sandices que me vêm à cabeça. Pobre leitor. Se eu disser que comprei este livro em um sebo escocês, numa ruela qualquer de Edimburgo, não vai ajudar em nada a simplificar isso, né? Menos ainda explicar porque na foto eu leio o meu bem achado exemplar em um trem que segue de Nova York para a bucólica Fairfield, em New Jersey. Então melhor deixar para lá. Mas a coletânea de crônicas do Bill é diversão garantida, com um humor que remete fácil ao texto do nosso João Ubaldo (ainda que entre os dois eu prefira o gringo). Bryson tem o talento para trazer à tona as incongruências da vida cotidiana, como na crônica "A day at the seaside". Ou na impagável "The flying nightmare", onde ele caçoa da imutável performance das aeromoças na demonstração da colocação das bóias e detona o apitinho ("I am especially fascinated by the way they include a little plastic whistle on each vest. I always imagine myself plunging vertically towards ocean at 1,200 miles an hour and thinking: 'Well, thank gosh I've got this whistle"). Nos pormenores do texto, caçoando do sumiço dos itens de luxo e conforto dos vôos comerciais, fica evidente o despropósito de quem transforma viagem de avião low cost em conquista de um governo qualquer - como aqui. O fenômeno das companhias aéreas de baixo custo foi transformado no Brasil em panfleto eleitoral, onde os pobres viajariam de avião não por uma competitiva estratégia global das empresas de aviação, mas sim pela política de um certo governo. Curioso é que a primeira coisa que este certo governo fez ao assumir foi fechar companhias aéreas (a Varig que o diga), deixando seus empregados a ver navios, ops, teco-tecos. "Sorte" da Gol, que herdou linhas, aeronaves e funcionários. A propósito, quais os procedimentos técnico-tributários que o certo governo teria empregado para fazer "pobre viajar de avião" ninguém explica, parece que foi o quarto mistério de Fátima ou um milagre novo do Padre Cícero. Bem, voltando ao Bill, não faltam no conjunto dos textos (olha o que eu falei lá em cima da imensidão temporal) ranzinzices anacrônicas como a condenação do vidro elétrico nos carros, em "Slight inconvenience", em que ele recrimina a enorme preguiça dos seus conterrâneos. Ou do seu périplo de popstar em uma maratona de divulgação de um novo livro ("Book tours"), ironizando ser entrevistado por incontáveis sumidades em literatura que não leram sequer a contracapa do seu livro. Em outro texto, as queixas contra a burocracia idiota nos faz respirar aliviados (ufa, não é só aqui). Ou mesmo a incontornável impossibilidade de seguir o manual de instruções do mais banal dos computadores. Em contraponto às armadilhas do dia-a-dia, um inesperado toque de lirismo vem na crônica "Last night on the Titanic", sobre dois velhos ingleses conversando no convés do transatlântico - enquanto o navio afunda -, em uma poética e, lógico, bem-humorada reverência à fleugma britânica. Mesmo quando você sabe qual será a piada, inevitável o sorriso. Bill é mestre em perceber o inusitado das situações repetidas, ou a repetição das situações inusitadas. Ler Bill Bryson nos faz lembrar que, na vida, a gente tem sempre que dar um desconto. Porque tem sempre alguém fazendo uma besteira que ainda não tinha ocorrido a ninguém.

Editora Black Swan, 399 páginas



Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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