"Fogo e fúria", por Michael Wolff

segunda-feira, maio 07, 2018 Sidney Puterman

Cada vez que eu penso em escrever sobre o livro, o Trump apronta mais uma. O cara não tem o limite do que é razoável. Fico com a impressão de que são pelo menos duas polêmicas (escândalos, bravatas, mimimis de fake news) por semana. Qualquer livro sobre o personagem fica datado em 15 minutos. Bem, dane-se. Vou me ater à obra encadernada. Para falar de "Fogo e fúria" é preciso se debruçar sobre duas estórias. A história contada pelo livro - os primeiros nove meses de governo de um presidente inesperado - e a história do livro que conta esta estória: um best-seller que soterrou a última dúvida de que haveria um mínimo de conteúdo programático na orientação deste governo permanentemente na iminência de desmoronar. Pelo menos, era o que parecia no lançamento da obra. Em dezembro de 2017 a publicação chegou às livrarias norte-americanas e em três semanas já estourava a casa dos dois milhões de exemplares vendidos. Dinheiro certo, pule de dez. Tanto que a ânsia em multiplicar o faturamento mundo afora fez com que no Brasil a pré-venda iniciasse em janeiro - em um mutirão que envolveu cinco tradutores na tarefa de verter o livro do inglês para o idioma de Camões. Em março o texto já escorria do Oiapoque ao Chuí. Como depois não se falou mais no assunto, me ficou uma dúvida: será que aqui gerou um faturamento decente ou foi mais um cogumelo midiático? Pena que googlando não encontrei resultados do mercado editorial brasileiro - exceto que a Amazon constatou um súbito aumento da venda dos exemplares do homônimo "Fogo e fúria", de Randall Hansen, sobre o bombardeio aliado na Segunda Guerra. Já do bombardeio de sandices do qual a obra é testemunha sei apenas dos R$ 39,92 lançados no extrato do meu cartão de crédito. Cifras à parte, o livro reúne dois velhos conhecidos: o empresário Donald Trump e o jornalista Michael Wolff. Nenhuma novidade nisso. Donald conhece todos os jornalistas americanos que convém conhecer. Michael era um deles. Logo se instalou o governo Trump, o jornalista o abordou na Casa Branca e pediu para cobrir os primeiros cem dias de governo. Trump lhe ofereceu um emprego. O jornalista recusou e reiterou: queria apenas acesso à Casa Branca e acompanhar a rotina. Trump insistiu no emprego e Wolff insistiu na recusa. Trump deu-lhe as costas, dizendo "f*ck you" e completou: "Pode ficar poraí. Eu não me importo." Michael Wolff sorriu - começava aí o livro - e ficou. Não por 100 dias, mas durante um semestre e meio. Observou e escutou. Tomou quarenta litros de café. Plantou amizades de ocasião. Se deixou disponível. A colheita suplantou as melhores expectativas da semeadura. Vieram lhe contar mais do que ele teria cogitado perguntar. Em primeira mão. Sem esforço e, melhor, sem intermediário. Direto da fonte. Escutava os maiores absurdos diariamente da boca do primeiro escalão do governo, ou seja lá que nome deva ser dado à turma que entrava e saía do gabinete do presidente. Todos queriam vazar alguma coisa sobre alguém. Anotou (quando não lhe foi permitido gravar) tudo o que lhe disseram - e foram mais de 200 entrevistas. Michael Wolff não desperdiçou a lauta matéria-prima e fez dela um latifúndio. Na obra pela qual será lembrado, ridiculariza a tudo e a todos e faz da administração atual uma comédia de erros. O texto de Wolff é cáustico e a Casa Branca de Trump que ele descortina é vulgar. A julgar pelas palavras do autor, um bando de idiotas girando ao redor do idiota-mor e engajadamente envolvidos em sabotar os demais. Poucas - ou nenhuma - questões de Estado. Vaidades, futilidades e puxa-sacos. Vemos a Corte de Trump como um produto do século 21: mídia, disse-me-disses e aparências. Porém, apesar das venenosas toneladas de sarcasmo, o livro de Wolff sobre a pseudo-nobreza trumpiana me gerou uma certa impaciência. Para o leitor brasileiro normal - eu e você - é um interminável desfile de ninguéns - gente que nunca antes ouvimos falar e que jamais vimos mais gordos e flatulentos. À exceção de algumas figurinhas carimbadas, como o Steve Bannon do Breibart News, Rudolph Giuliani (agora ressurgido como advogado-mor de Trump), Bob e Rebekah Mercer, Rupert Murdoch, Joe Scarborough do Morning Joe e os Jarvankas (como o autor debochadamente se refere ao casal Jared Kushner e Ivanka Trump), quase ninguém é alguém. Jamais tinha ouvido falar nessa turma - talvez uma meia-dúzia, se muito, eu tenha visto ser citada em uma matéria qualquer. Ou sequer isso. Segue uma amostra: Jeff Sessions. Kellyanne Conway. Gary Cohn. Hope Hicks. Richard Spencer. Katie Walsh. Roger Ailes. Tom Price. Richard Wirthlin. Luther Strange. Dina Powell. Roy Moore. Devin Nunes. Mika e Zigbniew Brzezinski. Mick Mulvaney. H.R. McMaster. Steve Mnuchin. Roger Stone. Nancy Pelosi. Vernon Jordan. Justin Smith. Mark Berman. Wilbur Ross. Juleanna Glover. Hillary Rosen. Stephen Schwarzman. Michel Flynn. Sergei Kislyak. Don McGahn. Larry Kudlow. Sheldon Adelson. John Boehner. John McCormick. Newt Gingrich. E por aí vai, isso não tem fim. Apesar desta enxurrada de nomes, nunca Pence. Mike Pence, o vice-presidente, não é ninguém. Outro ninguém é a esposa de Trump, Melanie, a jarra. O fato é que os nomes se sucedem às centenas. Mas a gana com que o autor vai na jugular do gênio da autopromoção diverte o mais insensível dos leitores (por exemplo, diz que os filhos de Trump, Don Jr. e Eric, eram chamados pela própria entourage presidencial como Uday e Qusay, os filhos de Saddam). Já nas primeiras páginas o autor mostra que não será condescendente com o presidente. Se referindo à campanha, reproduz o polêmico comentário de Trump ao apresentador da NBC Billy Bush, em microfone aberto: "Sou automaticamente atraído por mulheres bonitas. Simplesmente começo a beijá-las. Vou e beijo. E quando você é um astro, elas deixam. Você pode fazer o que quiser... pegar elas pela boceta. Você pode fazer o que quiser." Me fez lembrar um outro presidente latino-americano que se referiu publicamente às bocetas locais ("Cadê as mulheres de grelo duro?"). Presidentes realmente pensam que podem falar o que quiserem. Trump é sempre pintado com cores fortes, da primeira à última página. Segundo Wolff, Rupert Murdoch se esforçava por mudar sua opinião a respeito de Trump: "um homem que por mais de uma geração não passara de bobo da corte dos ricos e dos famosos." Ainda segundo o autor e jornalista, "a mídia tratava Donald Trump como um arrivista sem importância, e passou a ignorá-lo depois que ele cometeu o maior dos pecados, pelo menos o maior em termos midiáticos: tentar cair demais nas graças da imprensa. Sua fama, como tal, era na verdade má fama: ele era famoso por não ser famoso. Era um fama de araque." Ou destaca a maneira pejorativa como ele se referiu ao próprio povo pobre americano de Atlantic City ("white trash"), cidade onde ele mantinha seus cassinos. O primeiro discurso oficial de Trump após a eleição, com a tradicional presença dos ex-presidentes americanos, mereceu o seguinte comentário de George Bush: "Que merda esquisita." Como degustação, o autor reproduziu a fala inaugural do atual presidente dos Estados Unidos da América na sede da CIA. É uma peça de programa humorístico. Uma mistura da saudação à mandioca com o nunca-antes-na-história-desse-país. Ou  seja, não temos o que invejar. Mas, da mesma maneira que não existe Romeu sem Julieta, para Michael Wolff não há Donald sem Steve. O livro, tirando seus 50% de ácida ironia, é sobretudo sobre a relação de fogo e fúria (falaremos mais do título do livro mais para a frente) entre dois grandes velhos homens brancos, Donald Trump e Steve Bannon. O auto-denominado cérebro por trás do presidente foi biografado e desmontado por Wolff. Sobrou pouca coisa decente. Wolff oferece uma síntese do pensamento de direita de Bannon, um "movimento político radical de livre mercado, Estado mínimo, ensino doméstico, anti-liberal, padrão-ouro, favorável à pena de morte, anti-muçulmano, pró-cristão, monetarista, contrário aos direitos civis." Wolff vê Bannon como um novo ator político que acreditava que a nova política não é a arte da conciliação, mas a arte do conflito. O inflar e o murchar de Steve Bannon como pretenso chefe de gabinete e como consciência política de Donald Trump são, no livro de Michael, literalmente um capítulo à parte. Mais de um. Mas o que importa é que, direta ou indiretamente, são todos sobre Trump. O autismo, a vaidade e a falta de conexão com o mundo real fazem com que o autor veja Trump como o "Deus Sol", caricaturado por sua conduta infantil e imprevisível. Narra a batalha diária de seus assessores diretos para influenciá-lo ao longo do dia e com o compromisso de diligentemente permanecer ao seu lado até a noite, sob pena dele ser facilmente influenciado do contrário ("a opinião de Trump tem sempre a ver com a última pessoa com quem ele conversou", é o axioma dos corredores). E esta era uma briga constante: Bannon contra os Jarvankas. O assessor miraculoso contra a dupla cunhado + filha. O medo da ignorância de Trump fazia com que todos temessem qualquer uma de suas decisões e, também por isso, estimulava todos a tentarem "orientá-lo". Fato é que, fora o que estivesse nas telas das TVs (ele tem 3 televisores gigantes em frente à sua cama, sempre ligados em canais diferentes), somente o que fosse dito pessoalmente ou ao telefone poderia gerar uma conexão com o hardware presidencial. Afinal de contas, segundo Wolff, "Trump não lia. Na verdade, nem passava os olhos. Se a coisa estivesse impressa, podia perfeitamente nem existir. Alguns acreditavam que, para todos os fins práticos, ele não passava de um analfabeto funcional." Ratificando esta percepção, ainda no quarto mês de governo circulou um e-mail na Casa Branca, pretensamente partido de Gary Cohn (um dos poucos gestores profissionais a integrar a equipe de Trump), que saiu do ambiente restrito da primeira dezena de destinatários e alcançou centenas deles: "É pior do que vocês imaginam. Um idiota rodeado de palhaços. Trump não lê nada - nem memorandos de uma página, nem relatórios breves: nada. Ele se levanta no meio de reuniões com líderes mundiais porque está entediado. E a equipe dele não é muito melhor. Kushner é um bebezinho insolente que não sabe de nada. Bannon é um babaca arrogante que se acha mais esperto do que é." Diante do ataque de armas químicas perpetrado por forças do governo sírio contra os rebeldes na cidade de Khan Shaykun, o mundo, estarrecido, esperava a reação norte-americana. Na Casa Branca, porém, o que Wolff testemunhou foi que"era óbvio que o presidente estava mais incomodado por ter que pensar no ataque do que no ataque em si". A opção de Trump se mantinha fiel à orientação de Bannon: "Mantenha a nação fora dos problemas espinhosos e obviamente não aumente nosso envolvimento neles." Trump estava tentado por esta visão estratégica: "Para que fazer alguma coisa se não era obrigado? Ou porque fazer uma coisa que na verdade não lhe traria nada?" Segundo Wolff, "desde a posse, o presidente vinha desenvolvendo uma opinião intuitiva sobre Segurança Nacional: mantenha todos os déspotas que podem ferrar com você na maior alegria possível." Mas essa não era a opinião do núcleo Jarvanka (que incluía Powell, Cohn e McMaster), resoluto a persuadir o presidente a reagir com uma condenação absoluta do uso de armas químicas e uma série de sanções. "Na melhor das hipóteses, uma resposta militar - mas não muito grande. Era crucial não responder de maneira radical, desestabilizadora." Ivanka, a filha, sabedora que o pai não lia, não analisava planilhas etc, resolveu mexer com seu entusiasmo. Preparou uma apresentação com fotos de crianças espumando pela boca após o ataque químico. Funcionou. Trump mudou radicalmente de opinião. A partir dai ficou obcecado com a tal espuma. Decidiu que as Forças Armadas lançariam um ataque à base síria. Feliz com a própria decisão ("são apenas crianças!"), foi saltitante para a Flórida, para um encontro com o presidente chinês, Xi Jimping. Se esta foi uma passagem que mostra como algumas das decisões mais importantes do governo Trump tinham indevidamente seu cerne vinculado à interminável rivalidade do assessor de campanha versus a primeira filha, mais à frente, já em rota de colisão irreversível, o barraco na Casa Branca chegou ao ponto de Steve Bannon se esgoelar com Hope Hicks, como relata Wolff: "Você não sabe o que está fazendo! Você é burra feito uma porta! Vou foder com você e seu grupinho!" O presidente, escutando da sala ao lado, se queixava: "O que é que está acontecendo?" Os Jarvankas acharam além da conta e quiseram levar a questão à advocacia da Casa Branca, classificando-a como "a maior agressão verbal da história da Ala Oeste". Noutra feita, a disputa entre os Jarvankas e Bannon tinha a ver com a política norte-americana para o Afeganistão. Os generais ofereceram a Trump três opções: a mera retirada, o controvertido uso de mercenários ou um convencional incremento de tropas. O presidente achou péssimas todas as alternativas, convicto de que nenhuma delas o ajudaria a faturar nada com a situação. Diante do aparente fracasso das opções oferecidas pelos militares, apoiados pelos Jarvankas, Bannon exultou, pois vinha manobrando para que Trump chutasse o balde. De pouca valia, pois foi uma vitória de Pirro, já que no dia seguinte os Jarvankas emplacaram seu desafeto Joe Scaramucci como Diretor de Comunicação da Casa Branca, adicionando mais um ato ao teatro de vaudeville. A apresentação de Scaramucci, o Mooch (não confundir com o nosso Moch, codinome de João Vaccari, o arrecadador de contribuições ilegais do PT preso há 3 anos), feita por Michael Wolff é um exemplo rematado da ironia corrosiva do autor, que demole cada um dos personagens do livro. Por sua performance televisiva, Joe é chamado de Trump genérico e sua presença constante na Casa Branca pós-eleição não passa despercebida ao jornalista ("Scaramucci não era o único puxa-saco à procura de trabalho no prédio, mas seu método era um dos mais persistentes"). Mas o capítulo Scaramucci é dos mais divertidos e representativos. Sua nomeação foi uma derrota pessoal de Bannon e sua demissão dez dias depois foi um revés dos Jarvankas.  Steve, apesar de ter sido superado no caso Mooch, ainda se gabava em um jantar com alguns figurões: "Sou muito bom para arranjar soluções, levei um dia para arranjar a solução para a campanha brocha dele." Mas não conseguiu solucionar sua própria permanência no governo e o chão logo cederia sob seus pés. Com estas e mais umas poucas, finda o extenso relato de Wolff das peripécias dos milionários saltimbancos, com Steve Bannon demitido e Donald Trump fazendo mais besteiras. Em setembro de 2017, o presidente discursava para uma multidão em Huntsville, Alabama. Trump fazia seu número usual: os russos, o muro, a mídia. O seu apoio político equivocado na disputa republicana pelo Senado gerou o que lhe parecia uma reação morna do público. Frustrado, resolveu dar uma aquecida criticando a atitude do atleta Colin Kaepernick por ter se ajoelhado durante a execução do Hino Nacional, em uma partida da liga nacional. O comentário foi aplaudido de pé. Diante da repercussão, Trump passou mais uma semana falando do tal joelho. Aqui no Brasil também foi assunto. Bobagens irrelevantes desfrutam de enorme popularidade mundo afora. Mas tudo isso - e muito, muito mais - passou. O presidente americano a cada dez minutos se mete numa trapalhada diferente. Nunca nada do que diz ou faz parece remotamente elogiável. E, se você me perguntar como eu me sinto tendo lido este livro sobre um Trump inicial que foi sucedido por 16 meses de lambanças das mais variadas, com tuítes diários e quase um novo escândalo idiota por semana (agora o que está na rede é o da atriz pornô a quem ele pagou US$ 160,000.00 pela "confidencialidade", e cujo silêncio teria sido comprado pelo advogado, depois pelo próprio Trump e, pelas últimas notícias, com dinheiro de campanha), lógico que eu me sinto para lá de defasado lendo sobre os primeiros meses do governo Trump. Todo dia o cara quase lança o mundo em uma nova guerra mundial (que o cretino pode provocar mesmo sem querer, de fato) - e eu gastando meu tempo lendo as idas e vindas da formação inicial do seu governo. É meio um parque-fantasma, pois todo mundo que já foi espinafrado e demitido há séculos ainda dá as cartas no livro de Wolff. Mas, ao fim, dá pra dar uma relevada. O circo dos horrores que nos é apresentado acaba nos deixando uma lição valiosa - não há limite ou hierarquia quando o tema é a imbecilidade humana. A propósito, apenas nas páginas finais fica óbvio de onde o autor tirou o título do livro. Veio do bullying de Trump contra Kim Jong-un, oito meses atrás: "É melhor a Coréia do Norte não fazer mais nenhuma ameaça aos Estados Unidos, ou a resposta vai ser fogo e fúria." Fogo e fúria, sério? Me parece mais para fumaça e trash-talk. Desde então ele já chamou o coreano de homem-foguete e que o botão nuclear dele é maior que o botão do gordo. A ridícula xingação deu em nada. Para sorte do resto do planeta, os coreanos do Sul e do Norte estão aparentemente se entendendo. Em suma, o título do livro revela, com ironia, o que Michael Wolff pensa de Donald Trump. Um blefe.

Editora Objetiva, 343 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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