"Z, a cidade perdida", por David Grann

sexta-feira, julho 14, 2017 Sidney Puterman

É uma estória tão fascinante que qualquer uma das suas múltiplas facetas daria um roteiro cinematográfico. Na verdade, deu. Está em cartaz "Z", baseado no livro de David Grann. Mas não me ocupo do filme, que não vi. Falo do livro, bem amarrado. Como sói acontecer, o exemplar já há tempo acumulava poeira na minha estante. Provocado pelo lançamento da película, achei que era hora de lê-lo - do que não me arrependi. Falava eu, no início, das facetas, que são muitas e atraentes. A óbvia (mas nem por isso menos boa) é a do explorador destemido. Percy Harrison Fawcett é o cara. Ascético e determinado, era considerado O Indestrutível até pela família. É o approach perfeito: todos gostamos de heróis e desafios impossíveis. Mas por trás da história desse Indiana Jones de carne e osso (há quem diga que foi ele a inspiração do personagem) se esconde a longa e triste espera de Nina Fawcett. Tristemente em vão. Há ainda os dois jovens amigos, aspirantes ao estrelato em Hollywood, um deles o filho que idolatra o pai - e que enfim o segue, confiante e em júbilo (a única coisa que desfrutarão juntos, porém, será a morte sem corpo). Há a epopeia de uma floresta amazônica infernal, que engole os que se deixam seduzir por seus mistérios. Há uma mórbida sucessão de heróis aventureiros desaparecidos e a mítica cidade de Z, oculta, subterrânea no coração da mata. A obra de David Grann é mais uma a reforçar a impressão de que ainda aprendemos História do Brasil lendo relatos estrangeiros. Além de descrições insuperáveis sobre a selva, fruto de expedições de reconhecimento quase suicidas, vemos que a fronteira entre Brasil e Bolívia se apoiou na mensuração de campo do britânico Percy Fawcett. Eu prontamente desgostei. Você sabia disso? Te contaram na escola? Leu no jornal, passou no Globo Repórter? Não acho certo que venhamos a saber disso por acaso. Se for verdade, deveria estar no currículo escolar. O que sei das fronteiras nacionais, entretanto, tem mais a ver com hipóteses distantes - como as que envolvem o Tratado de Tordesilhas - e com piadas, como a que conta que demos um cavalo para surrupiar o Acre da Bolívia. E, mais (voltando às revelações históricas), que houve importantes descobertas arqueológicas no solo amazônico, que incluíram cerâmicas datadas de 7.500 anos, entre elas a cidade de Kuhikugu, no Alto Xingu, que apresentava um desenvolvimento urbano e agrário muito superior aos indígenas que conhecemos... Ahm? Como assim? A obra fala também do famigerado Preste João, tão procurado pelos monarcas portugueses no interior da África, sujeito que os ingleses chamavam 300 anos antes de Prester John e que por sua vez era procurado no Império Bizantino (em mais de meio milênio, ninguém achou esse cara). Já deu de dispersões. Voltemos ao bom livro. Grann conta que, depois de servir como soldado na Índia, Fawcett fez "curso de explorador" na Real Sociedade Geográfica de Londres (fundada em 1830 já como instrumento da expansão e solidez do Império Britânico) e, vocacionado, se destacou logo nas suas primeiras investidas, na África. Cooptado como espião pelo governo inglês (relação usual, pois os exploradores geralmente tinham acesso franqueado ao interior dos países e efetivamente atuaram como observadores privilegiados), PHF honrou a tarefa. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial abandonou as expedições e tornou à Europa, diretamente para o front ("sou esmagado pelo desejo patriótico de qualquer homem apto a esmagar os teutônicos"), onde liderou sua tropa na carnificina. Acostumado à rudeza da mata e à ameaça dos índios, saiu do conflito condecorado e amargurado - e, sobretudo, determinado a voltar à Amazônia. Seus anos no continente americano lhe deram a certeza da existência de uma cidade perdida, revestida de ouro. Adepto de pequenos grupos e insatisfeito com os parceiros que lhe coube nas vezes anteriores, selecionou como companheiro para a sua aventura definitiva o filho predileto, que há muito ansiava pela oportunidade de se provar. O rapagão levou o amigo com o qual crescera e os três partiram confiantes para a presumida glória e fortuna. Neste momento, Fawcett era um herói planetário, em um mundo pré-cinema falado. Jornais dos cinco continentes estampavam manchetes sobre a sua próxima viagem, acontecimento que os leitores acompanhariam em ritmo de folhetim. Com a mídia por trás, Fawcett conseguiu uma verba digna. Obteve uma audiência com o governo brasileiro, a quem pediu ajuda (foi designado Rondon para auxiliá-lo, mas a rivalidade entra os dois amantes da selva era maior que o interesse mútuo na Amazônia). À medida em que o trio avançava na expedição rumo ao desconhecido - literalmente -, mandavam mensageiros de volta à civilização, com cartas que seriam postadas e convertidas em matéria jornalística e publicitária. Percy Fawcett era o herói internacional dos anos 20, alvo de interesse indiscriminado, uma celebridade midiática. A alimentação regular das notícias, entretanto, a partir de um determinado instante, cessou. Aqui e ali havia inquietação, superada pela confiança na habilidade do coronel em sobreviver e ser bem-sucedido. Como ele mesmo dizia, "se eu não conseguir, ninguém mais conseguirá". Porém, passaram-se semanas, meses, sem que o grupo comandado pelo lendário Coronel Percy Fawcett desse notícias. A esposa, Nina, manifestava convicção absoluta no retorno do marido e do filho; a RSG se declarava esperançosa; os jornais se viam cada vez mais reticentes. Após um ano, uma crescente coqueluche ganhou forma nos quatro cantos do planeta: malucos se candidatavam a seguir as pegadas da trupe e a encontrar Fawcett. A maioria morreu. Outros sumiram. Uns poucos retornaram vivos, mas de mãos abanando. David Grann refez o caminho que dezenas percorreram nos últimos 80 anos. Algumas teorias sobre o destino do grupo são expostas no livro - bem como a crença de que a cidade de Z pudesse não ser, afinal, uma ideia tão louca assim. O livro sobre as aventuras do explorador inglês é bem estruturado e segue a velha e boa ordem cronológica. Entremeia a rotina do próprio autor com o tema prestes a abordar, o Fawcett militar e depois explorador, com o relato das suas inúmeras viagens à Amazônia, com destaque para a fatal. Investiga sua jornada derradeira rumo à eternidade e a miríade de detetives amazônicos que o sucederam. Grann encerra a descrição das décadas de buscas frustradas com a sua própria, nos levando para dentro da selva, até pisar em Z. Um belo tributo à coragem, à antevisão e à obstinação. Se Z realmente existiu? Grann tem sua teoria. Mas, como aprendemos com seu biografado misteriosamente desaparecido, nem tudo no mundo é feito de respostas.

Companhia das Letras, 405 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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