"Recordações do escrivão Isaías Caminha", por Lima Barreto

quarta-feira, julho 26, 2017 Sidney Puterman

A FLIP 2017 é do Lima. Demorou. Só hoje, na 15a edição da festa literária, o autor carioca foi convidado para subir ao patamar de principal homenageado. As edições anteriores celebraram grandes nomes; poucos, porém, eram mais representativos que este Barreto. Basta citar os sazonais Andrades, os dois, Mario e Oswald, cada um premiado uma edição (2015 e 2011). Ou a poetisa Ana Cristina César, que o precedeu. Xá pra lá. Razões sempre as há, devem tê-las. O que importa é que a FLIP 2017 é do Lima. Antes tarde do que nunca. As décadas recentes vêm agigantando o legado de um escritor desigual, mas imprescindível, na literatura brasileira. Seu romance de estreia, "Recordações do escrivão Isaías Caminha", lançado quando Lima Barreto tinha promissores 27 anos, é excepcional, pela juventude, ainda que aquém dos seus textos mais maduros, de uma década após. Mesmo assim, seu potencial era tal que antecede em estreitos dois anos seu título mais célebre, "O triste fim de Policarpo Quaresma". Depois deles, sua produção, volumosa, teve reciprocidade editorial rala, em vida. O seu tempo não refletiu, nem acolheu, o seu gênio. Isto fez dele um sujeito amargo e da sua escrita, ácida. Seja na primeira camada, seja no subtexto, Lima revida. Lima se queixa. Revela a injustiça da sua vida desprestigiada. Entendo e faço coro. Para Lima, em prol de Lima, tudo deveria ter sido antes. Porque seu tempo foi curto. Em "Recordações...", convivemos com a essência do autor, antes do polimento. Mas, agora, é deste volume de lançamento que trato, e nele Lima já exibe a si mesmo, através do Rio e do seu olhar, sempre debochado, sobre os que têm e sobre os que querem ter.  Ele também queria, mas tudo a ele foi vedado. Lima a nada, nem a ninguém, perdoa. Na sua estreia caçoa e expõe o ridículo dos jornalistas, dos burocratas, das autoridades, de todos que ocupam imerecidamente um lugar acima do seu. Seus personagens são sujeitos tacanhos, que ele considera receberem as benesses que ele era muito mais merecedor. Esta abordagem restrita daria margem a que o julgássemos um autor menor; não sem razão, essa pequenez também lhe pertence. Mas aviva, como não? sua legitimidade. Nos envolve na egrégora que lhe domina os dias. Lima tanto reclama, tanto acusa, tanto expobra, que tudo isso fazemos também, em seu nome. O narrador é o alter ego de Lima, onde ele projeta os recalques que são o leitmotiv da sua veia literária. E daí? Importa é que desde a nascente a obra de Lima é um riacho que envereda por um país de muito tempo atrás e também de agora há pouco: quem éramos e o que somos transborda como um grude, onde passado e presente são a mesma gororoba. Por meio de um seu personagem, diz o Lima: "Doutor! Doutor! Quantas prerrogativas, quantos direitos especiais, quantos privilégios, esse título dava! teria direito a prisão especial e não precisava saber nada." Nossas atuais "autoridades" que comentem a passagem. Porém, ainda que a política esteja sempre presente, este seu livro se concentra em descrever a redação de um jornal - O Globo - na primeira década do século XX. O restante é pretexto. O título, fictício, escondia o Correio da Manhã, em que Barreto trabalhara. Ignoro se foi inspiração para O Globo de Irineu Marinho, fundado em 1925; mas talvez não fosse boa inspiração: "O diretor, ninguém o sabia jornalista. Mas o jornal atraía, tinha um desempenho de linguagem, um grande atrevimento, uma crítica corajosa às cousas governamentais. E o jornal pegou. Trazia novidade: além do franco ataque aos dominantes, uma afetação de absoluta austeridade e independência. O Rio de Janeiro tinha então poucos jornais, quatro ou cinco, de modo que era fácil ao Governo e aos poderosos comprar-lhes a opinião favorável. O aparecimento d'O Globo levantou a crítica, ergueu-a aos graúdos, ao presidente, aos ministros, aos capitalistas, aos juízes, e nunca os houve tão cínicos e tão ladrões. Foi um sucesso." A reação dos que se locupletavam foi tímida: "Os amigos do Governo ficaram em começo estuporados, tontos , sem saber como agir. Respondiam frouxamente. A cidade, agitada pela palavra do jornal, fez arruaças e obrigou o Governo a demitir esta e aquela autoridade. E O Globo vendeu-se, vendeu-se, vendeu-se..." Vale destacar que o sentido de "vendeu-se" aqui era o da venda de exemplares. Só para constar. Mas a apresentação que faz da percepção do jornal pelo público difere do que constatou internamente: "Quando se tratava de per si com qualquer dos empregados do jornal, ficava-se admirado que a folha se imprimisse e se escrevesse diariamente. Floc tinha em pouca conta Lorsque; Bandeira desprezava Floc; e todos pareciam querer entredevorar-se até aos ossos. De secção para secção, a guerra era terrível. A revisão dizia que a redação era analfabeta; a tipografia acusava ambas de incompetentes; e até a impressão que não lia nem via originais tinha opinião desfavorável sobre todas três." Há mais de 100 anos, identificava o Quarto Poder e o julgava já a reboque do capital: "Há necessidade de dinheiro; são precisos, portanto, capitalistas que determinem e imponham o que se deve fazer num jornal." Mas expunha a que nível desciam por conta da competição pelo leitor: "De dia para dia O Globo crescia em venda. Todos o liam: era o jornal dos desgostosos, dos pequenos empregados, dos ricos que não podem ganhar mais e dos destronados. Na venda avulsa, nenhum o excedia, nem o próprio Correio da Manhã. Só o Jornal do Brasil se mantinha emparelhado com ele, e a rivalidade era acesa. Forjava anúncios, calhaus de 'precisa-se', de 'aluga-se', pequenos anúncios que, em abundância, parecem ser o índice da prosperidade de um jornal." Edmundo Bittencourt, dono do Correio da Manhã, era o seu alvo, "batizado" de Loberant no seu romance: "Loberant sabia o segredo do seu sucesso e velava pela folha com cuidados especiais. Diariamente lhe vinham informações sobre a venda avulsa, sobre o movimento dos anúncios. Se decaíam um pouco, logo procurava um escândalo, uma denúncia, um barulho, um artigo violento contra quem quer que fosse." (A propósito, afirma Ruy Castro que Bittencourt proibira que o nome de Lima Barreto fosse sequer citado no jornal.) Mas, sobretudo, a despojada narrativa de Lima é que o fez quebrar paradigmas. A ela deve, simultaneamente, a estranheza dos contemporâneos e a longevidade do seu texto. Assim, para bem falar de Lima, nada melhor do que lhe dar voz. Seu pano de fundo é o Rio da época, com o qual ele também é pouco generoso: "Quando saltei e me pus em plena cidade, na praça para onde dava a estação, tive uma decepção. Aquela praça inesperadamente feia ofendeu-me como se levasse uma bofetada. Enganaram-me os que me representavam a cidade bela e majestosa. Ruas feias, estreitas, lamacentas, marginadas de casas sujas e sem beleza alguma." Lima sempre foi crítico da Reforma de Pereira Passos: "Está tudo mudado: Abolição, República... Como isso mudou! Então, de uns tempos para cá, parece que essa gente está doida: botam abaixo, derrubam casas, levantam outras, tapam umas ruas, abrem outras... Estão doidos!!!" (já eu não sei se os dois bairros escolhidos eram uma crítica velada à fragilidade das instituições que homenageavam.) Se mordia, também assoprava, pondo um personagem para o contraditório: "Que são dez ou vinte mil contos que o Estado gaste? Em cinco anos, só com as visitas do estrangeiro esse capital é recuperado... Há cidade no mundo com tantas belezas naturais como esta? Qual?" Se hoje não se faz bom juízo da polícia carioca, há mais de um século Lima via assim: "A polícia vive com os bicheiros... Não serve para nada, fique certo. Para o que foi feita, não serve. Serve para perseguir e executar vinganças." Vê-se pelos olhos de Lima que a compulsão por incendiar o transporte público não é novidade: "Numa travessa, forma-se um grupo, começa-se a discutir, ataca-se o Governo; passa o bonde e alguém lembra: vamos queimá-lo." Testemunha: "Tínhamos deixado a estação do Mangue, quando de todos os lados, das esquinas, das portas e do próprio bonde partiram gritos: Vira! Vira! Salta! Salta! Queima! Queima! Num ápice, o veículo foi retirado das linhas, untado de querosene e ardeu." Filosofa: "O apagamento momentâneo da honestidade e a revolta contra pessoas inacessíveis levam os melhores a esses atentados brutais." Falava eu há pouco que aqui o novo é velho, e me deu razão o Lima: "Um pobre tipógrafo, que morava para a Saúde, temia ser morto por uma bala perdida." Quanto aos políticos de então: "Gente miserável que dá sanção aos deputados, que os respeita e prestigia! Por que não lhes examinam as ações, o que fazem e para que servem?" Ainda que na vida real corresse atrás deles, criticava os cabides de emprego: "Franco de Andrade viera na comitiva de um ministro baiano e já possuía quatro empregos. Além de lente substituto, era médico do Hospício, legista da Polícia e subdiretor da Saúde Publica." Mais de uma vez zomba das leis da prefeitura carioca, como a postura municipal que proibia os cidadãos de irem à rua... descalços! (ou seja, os prefeitos do Rio há muito cuidam das pessoas). Há expressões no livro que contam muito da época, como "o laudo do doutor concluía que o homem era mulato, muito adiantado é verdade, um quarterão." Descobri no dicionário que "quarterão" é o filho de uma pessoa branca com outra mestiça, ou seja, o quarterão vem desse um quarto, desses 25% de negritude remanescentes numa mistura que tem 75% de branco, como numa lata de tinta; donde a expressão mulato "adiantado" significa que o indivíduo se "adiantou", "evoluiu", "progrediu", ao se tornar gradativamente mais branco e menos negro. Ecos anacrônicos da escravidão que nos mancha. O preconceito de cor era a espada sobre sua cabeça. Ao ser tratado pela primeira vez de "mulatinho", lembrou que chorara: "Choro hoje quando me lembro que uma palavra desprezível dessas não me torna a fazer chorar. Entretanto, isso tudo é uma questão de semântica: amanhã, dentro de um século, não terá mais significação injuriosa." Lima acertava umas, mas errava outras. Ainda uma década antes da Revolução Russa, já radiografava o esquerdismo troçando do Leiva, o revolucionário burguês: "Leiva parecia-me mais sincero na sua poesia palaciana e de modista do que nas idéias revolucionárias. Sua situação lhe determinava as opiniões; seu fundo era céptico e amoroso das comodidades que a riqueza dá. Cessassem as suas dificuldades, surgiria o verdadeiro Leiva, indiferente aos destinos da turba, dando uma esmola em dia de mau humor e preocupado com uma ruga no fraque novo que viera do alfaiate." Até mesmo de vidente coxinha o Barreto poderia ser chamado, quando, à página 74, entra um senador na delegacia e pergunta: "Você bem podia me dizer se o Nove Dedos está preso aqui?" Continuamos à cata deste sujeito liso. Cronista da mesquinhez humana, versão carioca, modelo fim do século XIX, suas frases antecipam o estilo que caracterizaria Nelson Rodrigues: "A diplomacia é a mais deliciosa vida que há... Uma delícia! Pode-se ser burro ou inteligente, que é o mesmo! O secretário da Inglaterra, Mr. Lodge, era uma besta, mas uma besta perfeita..." O fato é que as desventuras do jovem estudante pelas ruas do Rio Antigo são viagem saborosa para qualquer carioca que, por amor à cidade, se ponha na pele desse escritor transeunte. Não sou diferente. Tanto que, à parte o talento de Lima, o primeiro prazer que me invade não é o da literatura, e sim o do passeio pelo tempo. O badalado economista francês Thomas Piketty se valeu dos romances d'antanho para estabelecer parâmetros econômicos confiáveis, em seu superestimado "O Capital no Século XXI". Não vou desdizê-lo. Viajo à Capital Federal do século XIX pelos desencontros do personagem vindo pela primeira vez à cidade. A Feira Literária Internacional de Paraty, o mais consagrado evento brasileiro de literatura, oferece - enfim - o protagonismo para este carioca suburbano que, assim, com quase um século de morto, tripudia do pouco valor que a vida lhe deu.

Garnier, 232 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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