"Os Sonâmbulos", por Christopher Clark

sábado, janeiro 14, 2017 Sidney Puterman

Sou curioso. Quero saber os porquês. O porquê daquilo, o porquê disso. Algumas coisas têm um porquê dúbio. Sempre que eu ouvia falar na Primeira Guerra Mundial, vinha à reboque: ela começou nos Bálcãs; ninguém sabia ao certo qual a razão; era um episódio controvertido da História; os historiadores divergiam; etc. Confuso. Comprei o peixe pelo que me venderam e deixei quieto. Até que, certa feita, li que havia sido publicado um livro espetacular sobre o estopim da Primeira Guerra Mundial. Como sabe muito bem quem acompanha este blog, não sosseguei. Como não correr atrás dele? Foi o que fiz. Daí, como também é praxe, o pobre mofou nas prateleiras do meu quarto dos fundos, que eu esnobemente chamo de estúdio. Mas não para sempre: houve que um dia comecei a ler e me empanturrei. A intrincada malha de interesses entre os Estados da época é a massa que Christopher Clark estica bem lentamente. Ele aterrissa em cada centro político relevante para o germinar do conflito e para o mundo de então: Sérvia, Áustria, Hungria, Itália, Alemanha, França, Inglaterra, Turquia e Rússia (incluindo rasantes em Bulgária, Romênia, Grécia, Croácia e Albânia). O que ele narra é um processo catalisador que transformaria barbaramente (em todos os seus sentidos) a civilização - ao menos como a conheceram nossos antepassados -, em um cronograma cujo gatilho foi puxado com o assassinato, a tiros, do herdeiro do Império austríaco. É a partir daí que a obra de Clark troca de voltagem - com sua rosa-dos-ventos girando como ventilador de filme noir a partir da página 400. Bem, só pelo número da página, dá para ver a bitola desse trem. O ponto é que Clark não se precipita. Ele enfia miçanga a miçanga no seu longo fio de nylon europeu. Seu texto parte do lugar onde, aparentemente, tudo começou - nos Bálcãs -, mas suas idas e vindas no tempo e no espaço nos conduzem a muito tempo antes. Do início estreito e conturbado do jogo político entre as nações balcânicas e o Império Austro-Húngaro, Clark vai abrindo cada vez mais o diafragma, e começamos a ver as pretensões russas em choque com as prerrogativas turcas. A frágil, mas reivindicativa, Itália a confundir um cenário onde ela era coadjuvante. As complexas relações diplomáticas gerando alianças (vulneráveis) e ameaças (desestabilizadoras) entre o quarteto Rússia, Grã-Bretanha, França e Alemanha. Apesar da sua perceptível germanofilia, que não me desce nada bem, Clark é um ás do ramo. O anfiteatro que ele constrói para nos permitir a visão destas diversas facetas do palco pré-deflagração da Primeira Guerra Mundial é soberbo. A enevoada política balcânica é destrinchada, listando vontades e influências da cadeia de comando de cada um dos países envolvidos. E partir do assassinato do arquiduque na Bósnia se impunha, já que foi em Sarajevo que o estopim da barbárie foi aceso. Mas, depois de circular por todos os gabinetes diplomáticos das potências maiores e menores (como se estivéssemos voando num alucinado chapéu mexicano), descido garganta abaixo e ego adentro de cada chanceler e seus satélites, a impressão que resta é a daquelas pirâmides humanas, onde, se um espirrar, caem todos. É uma roda em constante movimento, onde a éntente e a détente se sobrepõem. As alianças franco-russas, com um pé no Reino Unido, em contraposição ao Império Austro-Húngaro, vulneralvelmente pendurado na Alemanha e simultaneamente opressor nos Bálcãs, que, por sua vez, dançavam seu próprio balé romeno-búlgaro-turco-croata, com os russos como o grande urso do circo, abriam e fechavam o leque, como um gigantesco pulmão que, cedo ou tarde, não ia dar conta do esforço demasiado e entraria em colapso. Franceses, apavorados com a musculatura e os maus-bofes do vizinho alemão, faziam a ponte com São Petersburgo, que também não tinha os teutões em boa conta. Berlim, um passo à frente na corrida armamentista, olhava de cima e acreditava que uma futura guerra, se inevitável, seria melhor quanto mais cedo acontecesse. A Inglaterra nadava de braçada e só cuidava de se manter à frente no domínio naval. Enquanto isso, nos Bálcãs, o pau comia. Numa terra regicida por natureza, o atentado a Francisco Ferdinando foi uma comédia de erros e covardia. Por um golpe do destino, a vítima imperial, que acabara de escapar de uma emboscada, pegou a rua errada e, ao manobrar, pôs a cabeça na boca do leão. Quando o assassinato do herdeiro dos Habsburgo (um personagem esnobe e pouco querido, à época, de quem se dizia que era "bom em odiar", e que, entre outras pérolas, afirmava que "considero todo aquele que vejo pela primeira vez um patife vulgar - e só aos poucos me permito ser persuadido do contrário") invadiu as cortes europeias, com seu imensurável potencial de dano à geopolítica mundial, exigiu de cada país um discurso e um alinhamento. No centro da questão, os austríacos ultrajados exigiam reparo dos sérvios, que, por sua vez, fingiam não ter nada a ver com o assassinato arquitetado, na Sérvia, e executado pelos irredendistas sérvios, na Bósnia. Em círculos concêntricos, os países corriam contra o relógio para forjar decisões que, em última análise, eram sempre dependentes da decisão alheia; e, justamente tentando ir contra esta sina, puseram em prática estratégias que acabaram por gerar um fato consumado. A Alemanha insuflou a Áustria a tomar um posição de desafio à soberania sérvia; a França teve uma reunião de cúpula em solo russo, onde se tramou a inaceitação da "humilhação" imposta à Sérvia, num conluio entre russos, franceses e - um tanto parcimoniosamente - ingleses, empurrando uma temerosa Sérvia a não aceitar as condições ditadas pela Áustria. Nesse quem-cuspir-primeiro-é-homem, a Europa era conduzida a uma guerra de proporções inimagináveis, que começaria a moldar o século e seus terrores. Clark não aponta culpados, mas registra os agentes. Dos ensaios à ação: encorajada pelos alemães, a Áustria ameaçou a Sérvia e, na forma de um ultimatum, pediu satisfações, já que foram cidadãos sérvios que tramaram e mataram o príncipe austríaco; a Serbia ia dá-las, amedrontada; mas os russos, que viam nisso uma ação de expansão alemã que traria revezes comerciais à navegação russa, se declararam, em comum acordo com os franceses, solidários à Sérvia; a França, por sua vez, havia tramado por trás das coxias com a Rússia, pois via os alemães como uma ameaça crescente na frente oeste; com os russos comprometidos com sua posição de não transigir frente à uma quebra da soberania sérvia, a provocadora França, que não tinha sequer botas suficientes para calçar seu exército, cobrou a adesão inglesa, pois, havendo guerra e a Grã-Bretanha não participando, o Mar do Norte seria totalmente dominado pela frota alemã; a Alemanha, espicaçada e oportunista (como disse o chefe do Estado Maior alemão, Hellmuth von Moltke, "se a guerra é inevitável, quanto mais cedo melhor"), ao ver todos em pé de guerra, resolveu que liquidaria a questão contra a França primeiramente pelo já imaginado flanco oeste, só que por dentro da Bélgica, contornando as posições francesas; a Bélgica, a seu turno, ofendida, não toleraria a invasão, resistiria, e a Inglaterra, pró-belgas, rechaçaria os alemães; a Sérvia... bem, neste instante, a Sérvia não tinha mais importância nenhuma. "Opereta bufa" poderia ser uma forma zombeteira de nominar a catástrofe. Mas seria também ingênuo. Na visão do historiador (que é a que conto aqui), nenhum dos governos envolvidos queria a guerra, por seu alto custo e sua imprevisibilidade, mas nenhum deles agiu no sentido de evitá-la - e foram sim na direção de como responder aos cenários possíveis, procurando sempre ocupar a colina mais taticamente vantajosa. A obra de Clark, monumental, tem também suas curiosidades, como a valiosa delação premiada - hoje "questionada" por estas plagas - que permitiu se chegasse aos mandantes do atentado contra o príncipe; ou como a reação espontânea ao assassinato do arquiduque nos países vizinhos, onde, ao invés de respeitosa constrição, houve surtos de euforia (em um cinema em Roma, os italianos, ao ouvirem a notícia, pediram à orquestra: "Marcia reale, marcia reale", o hino nacional da Bota, aquele que o Schumacher regeria nas pistas, 80 anos depois). Fato é que o farpado novelo das relações entre os grandes países europeus levou a que, em menos de uma semana, a contar da declaração de guerra do Império Austro-Húngaro à Sérvia, em 28 de julho de 1914, o continente desse início ao primeiro ato de uma carnificina que somente teria fim em 8 de maio de 1945, com as cortinas do segundo e derradeiro ato se fechando sobre uma Germânia em ruínas. O autor atribui à "tese de Fischer", do grupo de estudos do acadêmico alemão Fritz Fischer, a enunciação mais influente sobre a culpabilidade da guerra, nos anos 1960. Ratificando o artigo 231 do Tratado de Paz de Versalhes, que vaticinava que a "Alemanha e seus aliados foram moralmente responsáveis pela guerra", a tese identificou a Alemanha como a potência mais culpada pela deflagração da guerra, por a terem escolhido e a terem planejado antecipadamente, visando "acabar com seu isolamento europeu e tornar-se uma potência mundial". Se a cita, Christopher dedica uma exígua meia página à celebrada tese. Seu livro foi construído em uma direção que, senão contrária, desmonta a responsabilidade alemã e, minimamente, a compartilha com os demais potentados. Por sua vez, certa ou errada, a extensa e burilada tese de Clark faz por merecer o seu lugar na "história da História". A propensão germanófila do britânico Clark não me agrada, mas evidencia que qualquer autor, ao escrever, tem um lado - e há que nos debruçarmos sobre os fatos e versões que ele seleciona e como ele os encadeia. Fico, ao fim, com a passagem non-sense narrada por um viajante inglês, cruzando a fronteira russa, no início de agosto de 1914, que testemunhou o exército cossaco vibrando com o telegrama que anunciava o país em guerra. De início, os animados cossacos achavam que a guerra era contra a China, por ter "a Rússia avançado demais na Mongólia e com isso a China ter reagido", logo substituído pelo aviso de que a guerra era "contra a Inglaterra, contra a Inglaterra". Depois de quatro dias, com o exército já em marcha, chegou a notícia de que a guerra era contra a Alemanha. Mas, escaldados, os cossacos não acreditaram.

Companhia das Letras, 700 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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