"James Brown", por R.J. Smith

sábado, janeiro 07, 2017 Sidney Puterman

Ladies and gentlemen, the Godfather of Soul, James Brown! Muita marra, ehm? Mas o negão aí da foto podia. Ele era o cara - e não é de hoje que me convenci disso. Meu espanto frente a James Brown vem da primeira vez que o vi no palco, possuído. Pasmei: "De onde veio esse sujeito?" Este fascínio, na verdade, já borbulhava no sangue, muito antes de saber que Brown, o Music Box, existia: moleque, eu imitava Toni Tornado, cujos movimentos cantando "BR-3", nos festivais da Record, eram uma pálida sombra do ex-crooner dos Famous Flames. Pensando assim, ao topar com uma biografia de James Brown, não pensei duas vezes. Comprei. Pelo excesso de livros e falta de tempo, o tijolo mofou nas prateleiras, até que, zapeando na TV, caí num filme sobre Brown e não resisti. Corri pra estante. E vou lhe dizer uma coisa: o tal R.J. Smith, o biógrafo, entende de música. Porque ele escreveu um livro sobre música. Sobre o "Um" (o compasso mágico onde Brown marcava o tempo da sua banda). Assim, por mais que fale da vida de Brown, o livro fala mesmo é de música. E do cenário musical e fonográfico dos EUA, dos anos 50 aos 90. Não que ele não cubra a vida do astro - ele começa bem antes, fala do Sul escravagista que moldou a cultura da região. Fala da miséria da família Brown, da mãe que apanhava do pai e optou pela prostituição, da vida do guri entre puteiros, reformatórios e igrejas. A música de James Brown vem deste gueto em Augusta; mais que tudo, das igrejas negras, onde o gospel, muito antes de ser conhecido, era como os negros rezavam, cantavam e gritavam. As performances, teatrais, desta versão negra de adoração a Deus, engrossaram o caldo que entornou na música de James Brown (e, na formação do soulman, ainda descobri que, entre suas principais influências nos tempos de Barnwell, havia uma inesperada, o cabo-verdiano Marcelino Manuel da Graça, o pastor Sweet Daddy Grace). O que Smith nos conta é que James Brown sempre se virou. Moleque, chegou a lutar boxe de olhos vendados, para diversão dos soldados e para faturar uns trocados. Já na estrada, depois do tempo de cadeia por roubo, num show pré-fama, chegou a se passar pelo cantor Little Richard - mais uma vez pelos trocados - e quase tomou uma sova da platéia. O caminho do cara que inventou o funk era sempre assim: movimentado, contraditório, limítrofe (segundo seu parceiro Charles Connor, do Flamous Flames, "funk é imaginação, você pode ver uma mulher gorda andando, com sua bunda enorme balançando para lá e para cá como se estivesse transando - você olha e tira o ritmo"). No primeiro teste de gravação do rei do funk, o dono da gravadora chegou com a música rolando e, aos berros, não escondeu sua opinião: "Que merda é essa?" O dono era Syd Nathan, a gravadora era a King e Brown ainda ia se tornar dono dela. Estava só começando. Com uma visão raivosa da separação entre brancos e negros nos EUA, foi com surpresa que se viu quase linchado, quando os ônibus da Freedom Rides, promovendo uma ainda inusitada integração racial, passaram pela cidade em que se apresentava. A caipirada branca local não só não concordava, como queria descer o pau - o que acabou sobrando para os Famous Flames, que nem sabiam o que acontecia. Na verdade, Brown tinha uma conduta que era só dele, e os discursos que fazia pela causa dos negros não me pareceram convincentes - sua única causa era ele mesmo, James Brown, com suas próprias (e algumas vezes, esquisitas) convicções. Quem vê a imagem do artista em início de carreira vai estranhar o penteado engomalinado bolo-de-noiva - se fosse a loura e voluptuosa Feiticeira, tudo bem, mas Brown tinha uma baita carapinha. Para ele, cuidar do cabelo era tudo: "James Brown gostava mais do seu cabelo do que das suas mulheres", dizia seu assistente-cabelelereiro Frank McRae. Quanto às mulheres, elas eram muitas, e com curvas ("Se for uma magrinha, só pode ser minha irmã") - e Brown não era assim um primor de cavalheirismo e doçura. Certa vez, quando namorava a cantora Tammi Terrell, viu que ela tinha colocado no bolso do casaco de arminho que ele lhe dera um frasco de molho de pimenta. Indignado (onde já se viu colocar molho de pimenta no bolso do casaco?), parou o carro, puxou Tammi para fora e lhe deu uma baita surra. O molho de pimenta era apenas um agrado da moça, para atender à mania do cantor por asas de galinha sempre apimentadas (a meiga e espancada Tammi morreu alguns anos depois, aos 24 anos, por conta de um tumor cerebral). Um nome de mesmo som, mas com outras letras, foi quem deu a grande virada na trajetória de Brown: o T.A.M.I Show (Teenage Music Awards International). Era 1964, e o show era para arrecadar fundos para bolsas de estudo. Grandes nomes da época se apresentariam, cabendo aos Rolling Stones fechar o espetáculo. James era até então praticamente desconhecido do público branco do Norte. Talvez alguns já o tivessem escutado; uns poucos, o visto; dançando, nem um mísero um. Naquele dia, souberam - bem - quem ele era. Coube a Brown a penúltima apresentação antes dos meninos ingleses. E quem viu jamais esqueceu (confira em https://www.youtube.com/watch?v=09qbhwcpA6A). São dezoito minutos de música e dança em um estilo único. O estilo James Brown. Paradas súbitas, contratempos, gritos e... o número da capa. Uau. Que isso, mermão. Brown é daqueles caras que inventaram uma linha musical só dele, reunindo tudo o que viram, todos os espelhos que conseguiram juntar, numa catedral ímpar (o número da capa, a propósito, era um frenesi semi-religioso, em que o cantor, aos berros, apoplético, era coberto com uma capa mística, para amansá-lo, mas que ele logo fazia voar, gritando e dançando, como se reincorporado). A partir daí, Brown começa a enfileirar um sucesso atrás do outro, que Smith descreve mais que tecnicamente ("a batida afastava-se um pouco do velho shuffle e se aproximava de padrões mais regulares de colcheias, colcheias sem tercinas, colcheias retas").  O dinheiro jorra. De músico, James Brown resolveu se tornar um homem de negócios, dando um lustro a mais em uma série de atributos que ele já trazia desde cedo: violência e desonestidade. Com Brown, a sacanagem sobrava para todo mundo - a única opção disponível era aceitar o que viesse e dizer "Amém, Mr. Brown". O que Smith conta é que James Brown era um sujeito que poderia ser bem escroto, e em outras vezes também. Ele não gostava de pagar o que devia. Ele não gostava de valorizar ninguém. Ele não gostava de premiar ninguém, nem tinha consideração pelos que estavam ao seu redor. Ele assumia posições controversas, sobre política, guerra ou direitos civis, desde que parecessem beneficiá-lo. E no meio de tudo isso, Brown era um gênio. Não o tipo de gênio que ele pensava ser, se metendo em dezenas de negócios (restaurantes, emissoras de rádio, gravadoras, motéis). Era um gênio da música. Escute "Cold Sweat", a música que subvertia a música, sempre em linha reta. Mas não vá na sua própria auto-descrição - como em tudo que não seja música, ele é pouco confiável. Como ao explicar a dança James Brown: "Combine o passo applejack, o dolo, que é um deslizamento, quase como o skate, e o scallyhop, que é uma variação do lindy hop, acrescente uma técnica de controle dos nervos que faça o corpo todo tremer, e você tem a dança James Brown." Agora vá dançar... O estilo Brown de negociar é bem retratado pelo célebre show no Boston Garden, quando, devido ao assassinato do líder negro Martin Luther King, houve o receio do show de Brown se tornar um levante racial. A ideia da prefeitura era cancelar o evento, mas James defendeu que seria mais perigoso cancelá-lo do que realizá-lo. O espetáculo aconteceu, a multidão iniciou um tumulto e James Brown o controlou, adicionando mais tempero à lenda. Apesar de amigo do ilustre assassinado e, em tese, ser também Brown um ponta-de-lança da causa negra, não teve acordo para o show antes que a régia quantia de 60.000 dólares fossem embolsada, em espécie, pelo cantor. Na ocasião, as manifestações populares pela morte de King foram registradas em 125 cidades, com um total de 46 mortos e 2.600 feridos. O fato de nada ter acontecido em Boston foi creditado a James Brown, sem que se pudesse realmente calcular o quanto ele contribuiu. O Godfather of Soul, entretanto, foi cada vez mais se aproveitando das brechas da política, assumindo posições ideologicamente dúbias, e inequivocamente oportunistas - em uma das vezes, a comunidade negra, já de costas para ele, passou a chamá-lo de "O Palhaço de Nixon". Brown, com isso? nem aí. Como não estava nem aí para os músicos que o acompanhavam, tratados a insultos e migalhas ("um Hitler negro", para seu baterista Ron Selico). Ou mesmo para os colegas de estrelato, "com quem só dividia o palco para roubar a plateia", nas palavras de Smith. Ou para os anunciantes das suas emissoras, que pagavam por flights que ele não veiculava. Cada vez mais enrolado, principalmente diante do surgimento da disco music, onda que jogou Brown para longe dos holofotes, os sucessivos empréstimos que financiavam a vida de esbanjamento do astro pararam de rolar. O fisco americano também bateu à sua porta, e os US$ 4 milhões de dólares que ele devia ao Leão americano viraram 17 milhões no fim da década (dizem que, quando um aeroporto negou liberar seu jato, ele, refém, ligou para o seu contador e o mandou cavar no quintal da sua casa, em busca de caixas com grana viva; a cada machadada, uma minhoca, tal era a fortuna). Suas trapalhadas com dinheiro lhe levaram à prisão, onde o business man disse não ser responsável por nada, culpando os advogados: "Eu sou apenas um negro tonto" (aqui também tem muita gente que "não sabia de nada", principalmente no noticiário político recente, mas deixa pra lá). O livro, que é bem bom, também dá suas derrapadas - ao falar dos brasileiros devotos da soul music no início dos anos 70, o autor fala de um orgulho racial e de uma periferia paulista com casas propositalmente construídas com quartos pequenos, para que a sala ficasse maior e a galera pudesse evoluir no soul. Forçou, ehm? Smith acompanha os anos em que James Brown deixa de ser músico e se torna uma lenda. O pastor que ele encarnou no filme "Blue Brothers" - reverendo Cleophus James - apresentou Brown a um novo público, que gostou do que viu - ou melhor, delirou. Os rappers enxergaram nele a raiz de tudo. E, depois de muitos anos de estrada, o público branco também passou a idolatrá-lo. Os anos 80 costuraram o manto real do astro unânime dos anos 90. Cultuado, celebrado, adorado - como ele sempre julgou merecer. Sempre ousado, como em um show na Rússia, em que se jogou, de botas, casaco e tudo o mais, dentro de uma piscina congelada, e quase que não é resgatado com vida. Nunca deixou de ser "o cara que mais trabalha no show business", como ele se auto-proclamava. E, para sempre, será o dançarino número um do passo James Brown. Neste último Natal fez 10 anos que James Brown partiu, depois de meio século em ação. A internet deu ao mesmerizante Brown a graça de ser imortal - e também o desprazer, para este incorrigível mercenário, de cantar e dançar de graça, para quem quiser. Atura essa, Mr Money. Este clipe, em delicada animação gráfica, ao som de "It's a Man's Man's Man's World", trata com carinho o ídolo irascível: https://www.youtube.com/watch?v=H77fRz1rybs. James Brown só existe um. Quer saber?
I feel good.

Editora Leya, 628 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: