"O dono do morro", por Misha Glenny

quarta-feira, setembro 28, 2016 Sidney Puterman

A vitrine aí não apetece. Auto-ajuda, ficção vampírica, elocubrações pseudo-eruditas, nada disso me atrai. Mas o livro no canto inferior direito tem seus fundamentos. Fala da favela da Rocinha, como comunidade e como entreposto do tráfico. Revela quem manda (as transições de comando), a subordinação às associações criminosas (a quem o dono do morro tem que responder) e a interação com o poder oficial (para onde vai a propina). Quem assina este relato não é um nativo do local - como fez Paulo Lins, com seu brilhante "Cidade de Deus" - e sim o britânico Misha Glenny, veterano repórter de zonas de guerra. Para contar esta estória, Glenny voltou ao surgimento das organizações da droga e seu crescente domínio das favelas. Ele esmiúça também o Comando Vermelho, sindicato de bandidos nascido no presídio de Ilha Grande. Figurinha repetida no roteiro dos filmes que abordam o período, o Comando e seus congêneres foram produto de um governo militar que reuniu terroristas, ladrões e assassinos na mesma cadeia - onde se deu que a bem concatenada estrutura dos presos políticos foi assimilada pelos presos comuns, que, nos anos 70, exportaram o novo formato para os morros da cidade (assunto bem dissecado em "Os porões da contravenção", de Otávio e Jupiara, resenhado aqui neste blog, em março último). A partir daí, Glenny costura duas décadas de movimentação da bandidagem nos morros da cidade. Seu fio condutor é Nem da Rocinha, apresentado como pacato distribuidor de revistas de TV a cabo, bom pai, bom filho e bom marido, que se transformou no chefe do morro. Não há dúvida que Misha é tolerante com o ex-manda-chuva do pedaço, embora eu não tenha como qualificar o quanto isso influiu no relato. O autor visitou Nem mais de dez vezes no seu presídio no Mato Grosso, onde criou afinidade com o presidiário e colheu material para a sua narrativa. Nem, bandido famoso e por isso com apelo comercial para alavancar a vendagem da edição, ganhou até mesmo um adesivo amarelo aplicado na capa, em solução de última hora. Eu, do meu livro, arranquei fora o splash redondo - preferi o projeto gráfico original, que já não era nenhuma maravilha. Bom que Glenny vai além do relato da rotina do morro e suas quadrilhas. Ele também destaca as atuações dúbias do governo local e estadual e desvenda o fim que teria levado Amarildo. Por tudo isso, mesmo sem ser vibrante ou generoso em revelações inéditas, a obra do jornalista inglês vale a pena ser lida. É um registro sócio-urbano representativo do Rio dos últimos 20 anos. Só isso já o credencia para um lugar na estante.

Companhia das Letras, 336 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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