"Dentro do segredo", por José Luiz Peixoto

quarta-feira, outubro 05, 2016 Sidney Puterman

Qualquer assunto, por mais interessante que seja, pode redundar em um livro chato. Esta suspeita qualidade não pode ser negada à obra de José Luiz Peixoto. Há quem diga - entre elas minha esposa, que filou um trecho do livro, numa viagem em que o livro dela tinha acabado, e para evitar ler livro dos outros eu levo 4 - que o autor é chato. Não discuto. Ana é boa nessas avaliações. Mas não importa. Comprei, li, aprendi, acabou. Tudo tem seu lado bom. Mesmo se é para ler sobre o lado ruim. O absurdo da Coréia do Norte me interessa, ainda mais os relatos de visitantes casuais. Peixoto reforça o que já sabíamos: o país é um campo de concentração non sense. Um reality show escatológico, onde a população é o elenco e, no papel de plateia interativa, uma elite militar-familiar reina sobre a pantomima. A lavagem cerebral é coletiva, transformando milhões de famélicos em zumbis sorridentes e amestrados. Tudo isto está em "Dentro do segredo", verdadeira, mas arrastada, transcrição de uma viagem de turismo feita pelo autor. Não que vez por outra não nos divirtamos, como com o "Museu das Atrocidades Americanas", totalmente dedicado às torturas cometidas pelos ianques contra o povo local (não pense que com minha "diversão" eu seja um sádico, só que é impossível não rir com a criatividade macabra da mistificação norte-coreana, mais extrema do que a mentira ideológica tão em voga por aqui). No "museu", cada sala é dedicada a um tipo de tortura. Uma delas relata que os americanos enfiavam um prego na cabeça das grávidas e cortavam fora os seios; em seguida, arrancavam à faca o bebê de dentro da barriga das coreanas e os matavam (os ainda vivos, imagino, mas o autor não detalhou); o próximo passo era amarrar com correntes cada coreana retalhada em dois cavalos, com os ganchos de cada corrente enfiado nos buracos surgidos onde antes ficavam os peitos das mulheres (lembre que eles foram arrancados), atiçar os cavalos para correrem em direções opostas e dividirem, assim, as mulheres ao meio. É o que conta o museu. Mas a Coréia do Norte é pano de fundo, na verdade, para as aflições do autor lusitano, às voltas com a comida intragável e a ausência do celular - que ele chama de "telemóvel". Essa é outra graça do livro: a infindável quantidade de palavras em "português" que são diferentes das usadas no Brasil. O livro tem quase uma centena delas, o que me faz perguntar a finalidade do tal acordo lusófono, que só me deu trabalho e criou escritas estapafúrdias. O idioma de Peixoto tem altifalantes, controlo, connosco, montra, carruagem (para vagão), tejadilha, peluche, ecrãn (para tela do computador), chichi, camisola (para camiseta), planeado, papoila, sanita, alcatifa, Estaline (é o Stalin, gajo!), teledisco, cobardia, apitar (para buzinar), contacto, exacto, socalco, rebuçados, sujidade, berma, camião, carrinha, mota, autocarro, duche, equipa, agrafo, mulher-a-dias, recusas (para vômito), esbatida, muitas outras mais e o tal telemóvel, do qual ele chorosamente resmunga a ausência de três em três páginas. Assim, o livro me fez conviver simultaneamente com duas culturas e personalidades estranhas. A norte-coreana e a portuguesa. Ô pá.

Companhia das Letras, 189 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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