"Van Gogh - A Vida", por Steven Naifeh e Gregory White Smith

quarta-feira, julho 29, 2015 Sidney Puterman

Vincent Van Gogh, o grande pintor holandês, morreu em 1890 (justamente hoje, 29 de julho, faz 125 anos da sua partida) e suicidou-se em 1950. Foi quando... Opa. Há algo errado nessa frase. Não pode alguém morrer no século XIX e suicidar-se 60 anos depois. Só que, com Vincent, foi quase assim. Vou explicar melhor. Porém, antes de mais nada, vale a pena falar um pouco do cara - um personagem que é mais conhecido pela orelha, ou melhor, por ter cortado a própria, do que pela obra. Injusto. Vincent foi um dos maiores artistas de todos os tempos. Pode ser uma afirmação subjetiva (e é!), mas tem a ver com o impacto que sua obra causou no mundo da arte e no planeta civilizado. Vincent, súbito, logo após sua morte, depois de uma abominável vida de escárnio, estupidez e indiferença, passou a ser admirado - e desde então seu prestígio nunca parou de crescer. Ano após ano, seu nome foi se tornando maior. Os quadros com a assinatura "Vincent" valiam cada vez mais. Sua arte fascinava a cada instante um número maior de mortais embasbacados. O traste desdentado, repulsivo e mal cheiroso se tornou o grande Van Gogh. O planeta se curvou ao seu valor. Assim, os museus e espaços dedicados a ele vêm sendo, décadas a fio, sucessivamente renovados e ampliados. Por tudo isso que disse, conhecê-lo um pouquinho não é mau negócio. O louco e tido por suicida Vincent Van Gogh era maluco. Pancada da ideia. Assim que nem o Jobson. Era instável, temperamental. Obsessivo e obcecado. Mas, se doido, suicida não era. Somente nos anos 50 essa versão do gênio louco que tirou a própria vida ganhou vulto, com o filme "Sede de Viver". Kirk Douglas fazia o papel do holandês e arrebatou multidões. A partir daí, a fama de Van Gogh começou a transcender o espaço da pintura. Eu, moleque, quando vi o filme, fiquei vidrado (vi o filme já na TV, na Sessão Coruja da Globo, em meados dos anos 70). Vincent era um dínamo. A intensidade do pintor me lembrava mais o lutador Roberto Mano-de-Piedra Durán do que um artista. E o mito do artista incompreendido que, em mais um rasgo da forte personalidade, deu cabo de si mesmo, fez do personagem uma lenda, conhecida e repetida por todos. Seus quadros e sua pintura única, soberba, se tornaram um pormenor. O estereótipo se sobrepôs ao conteúdo. Van Gogh é, numa primeira citação, o cara que cortou a própria orelha. Tudo o mais é secundário. Mas, voltando ao guri fisgado pelo filme, toda vez que via uma foto de um quadro dele me lembrava do poço de energia e vitalidade com que Kirk Douglas (pai do Michael Douglas, galera, que fez "Wall Street" e "Atração fatal") o representou. E passei a prestar atenção nas telas dele. E aí vi "Noite estrelada" - e nunca mais fui o mesmo. Eu vejo "Noite estrelada" e choro. Vejo "Noite estrelada" e fico hipnotizado. E "Os Ciprestes". E "O Quarto". E... Van Gogh sempre me fascinou. Quando fui ao Museu de Arte Moderna, em Nova York, há 20 anos, era atrás dos quadros dele que eu estava. Sentei e fiquei olhando. Não lembro se chorei. Mas eu e o quadro permanecemos um frente ao outro por um longo tempo. Depois disso, comprei umas réplicas, emoldurei, pendurei. Confesso que, na azáfama dos dias, já não recordava o quanto ele me impressionava. Há coisa de dois anos, contudo, soube que lançaram uma nova biografia dele, super elogiada. Eu, que nunca tinha lido nenhuma das escritas sobre ele, não resisti. Comprei. Uma beleza. Um tijolo de mais de 1.000 páginas. Lindo. Com um auto-retrato na capa dura. Não obstante, ficou na estante. Tinha outros trezentos livros na frente. Então, no início desse ano, resolvi ir à Holanda. Pensei: se não ler agora, quando? Então peguei o bruto e comecei. Rapaz, vou te falar: que livro lindo. Absurdamente bem escrito, com base em uma pesquisa pterossáurica, compilando centenas de cartas pessoais e nos permitindo ocupar um pequeno espaço dentro da mente perturbada desse gênio único. Uma biografia que é uma obra-prima, narrando a história de um louco. Um desajustado. Um iracundo.  Um homem retraído e sanguíneo, de difícil convivência. Raramente violento, mas que se auto-punia selvagemente. Que tentou ser muita coisa: professor, pastor, vendedor de quadros. Inequivocamente, um fracassado. Que, evitado e desprezado por todos - da família às prostitutas, passando pelos moleques de rua -, resolveu, já adulto, ser pintor. Percebe isso? Um cara que morreu jovem (37 anos), resolveu, aos 28 anos, virar pintor. Do nada. Um retratista. Mas, como nas demais atividades que tentou, só acumulou insucessos. Por mais que trabalhasse, com uma obstinação que era só sua, não tinha êxito. Para os pais e irmãos, uma vergonha. Para os tios, um peso morto. Para os cidadãos, um pária. Para os pintores, uma chacota. E, por incrível que pareça, essa descrição fala de Vincent Van Gogh, um dos maiores gênios da pintura de todos os tempos. Seus 37 anos de vida são contados em um livro alentado. Que desnuda um pintor feito de luz e rudezas. A figura de Van Gogh é prato cheio para os estereótipos. Estes são práticos. Reduzem qualquer um a dois ou três adjetivos. Mas "maluco", "gênio" e "incompreendido" estão longe de definir Vincent. As observações e descrições artísticas da primorosa biografia escrita a quatro mãos por Naifeh e Smith descortinam a paisagem de um ser humano ímpar, que carregava o fardo de suas tantas fraquezas e o lastro das suas obsessões. As mais de 700 cartas trocadas entre Vincent e Theo (seu irmão mais novo) e também com outros familiares e pintores ajudam os biógrafos a erigir um amplo painel da personalidade do gênio. O Vincent que eles esculpem é um gigante. Um cíclope apaixonado. Possessivo e manipulador. Um atormentado. É tal a força do personagem que os autores minuciosamente pincelam, que, entristecido, sofro de saudade ao chegar ao fim do livro. O artista me toma e não é fácil saber que, terminando a leitura, não mais poderei compartilhar a convivência com esse cara, que partiu há mais de um século, depois de uma vida de desajuste, sofrimento e dezenas de obras-primas que redefiniram a história da pintura. Algumas versões sobre ele se tornaram lendas, mas não procedem: dizem que não vendeu um quadro em vida. Vendeu. Vender suas obras era tudo o que queria, para poupar o irmão do peso de sustentá-lo. Mas, quando começou a vender, não acreditava que fosse o suficiente. O fracasso comercial, entretanto, não é o traço mais forte da trajetória de Vincent. E sim a compulsão pela repetição ilimitada, maníaca, que enfim desabrochou em uma obra absolutamente genial. Nunca li nada mais perfeito sobre Vincent do que o texto escrito por Albert Auriers, o primeiro crítico que percebeu a grandeza da obra de Van Gogh, muito antes de qualquer outro - inclusive o próprio Theo, que permanecia cético sobre o real talento do irmão. À época, o trabalho de Vincent era execrado - "o irmão louco do galerista Theo Van Gogh" - e ninguém se ocupava seriamente dele. Entretanto, faltando poucos meses para a sua morte, começaram a surgir comentários e resenhas positivas sobre "o talento do holandês que se mudara para o Sul da França e enlouquecera". Auriers, escrevendo sob o pseudônimo de Luc le Flâneur, buscando um mote que desse substância à revista que estava por lançar, fez uma apresentação soberba da obra de um pintor que, via de regra, era caçoado à primeira citação de seu nome: "Uma estranha natureza, verdadeira e quase sobrenatural, uma natureza excessiva em que tudo, seres e coisas, sombras e luzes, formas e cores, se subleva, se levanta numa vontade raivosa de gritar no timbre mais intenso... a natureza inteira retorcida de maneira frenética, elevada ao paroxismo, erguida aos ápices da exacerbação; é a forma se tornando o pesadelo, a cor se tornando labaredas, lavas e pedras preciosas, a luz se fazendo incêndio... atmosferas pesadas, ardentes, abrasadoras que parecem se exalar de fantásticas fornalhas, as assustadoras silhuetas em chamas... nunca houve nenhum pintor que apelasse tão diretamente aos sentidos." Esse foi apenas um trecho de uma extensa apologia à Vincent - que, pasme, leu a crítica e se resumiu a discordar. Se disse constrangido por alguém ver nele uma grandeza que sabia não possuir. Incomodava a ele o perfil de "selvagem" e de "artista em estado bruto" com que a apologia do jornalista o retratava, pois a mãe e a família já o viam sobremaneira bestializado - tudo o que ele não queria ser. Dias depois, se entusiasmou com a perspectiva de que aquela crítica ajudasse a vender os seus quadros, podendo a partir daí não mais sobrecarregar o irmão, que, doente, recém-casado e com uma criança pequena, passava também por dificuldades. Os meses seguintes, os finais da vida de Vincent, ele dedicou não ao novo status de artista reconhecido, mas prosseguiu na sua antiga ânsia de ser parte de uma família que o acolhesse. Nos últimos anos, a pintura só o interessava como válvula de escape das suas carências, complexos e fragilidades.  Rejeitado pela própria família desde a mocidade - de forma compreensível, dado o seu mau gênio e comportamento assumidamente hostil - procurou, ao longo da sua trajetória, reparar essa relação tragicamente mal resolvida (sempre sem sucesso, piorando-a mais e mais a cada tentativa). Por conta disso, por inúmeras vezes tentou formar um núcleo que reproduzisse a família que lhe faltava, indo dos pintores às prostitutas. Fez isso via de regra de forma desequilibrada, sendo repetidamente rechaçado por eles e elas. Era esse sentimento de família o que buscava (mais uma vez com o próprio irmão, Theo, agora incluindo a cunhada Jo e o sobrinho Vincent), ao se mudar para uma pacata cidade próxima a Paris, Auvers. Lá foi seu derradeiro endereço: um dia retornou, andando, ao pequeno hotel em que morava, a Estalagem Ravoux, com um orifício sob as costelas. Sangrava. Era um mínimo buraco de bala, que ficara alojada em seu organismo. Perguntado sobre quem atirou nele, pediu "que não envolvessem ninguém nisso, que ele próprio se acidentara". Já com o organismo debilitado por tantos anos de maus cuidados, em menos de 48 horas morreu. Expirou na cama, silenciosamente, com o irmão ao seu lado - o único que veio de Paris para vê-lo. Ninguém da família compareceu ao enterro. Nem a mensagem passada pelo irmão para o seu vasto círculo de relacionamento fez com que os parisienses se dispusessem a enfrentar os meros 30 km que separavam a Cidade Luz do insosso município. As razões que levaram à morte permaneceram obscuras. Van Gogh nunca teve arma e, religioso, exprobava os sucidas. Não houve bilhete ou testamento. O tiro foi em uma região improvável para quem pretendia se matar. A arma nunca foi encontrada. Com a passagem dos anos e o lançamento da biografia "Sede de Viver", na década de 30, a hipótese do suicídio ganhou vulto. A filha do estalajadeiro passou a dar versões cada vez mais completas de hipotéticos relatos do pai sobre a morte do - naquela hora, 40 anos depois - internacionalmente famoso pintor. O filme estrelado por Kirk Douglas deu exposição mundial a essa tese. Agora sim, era inequívoco: o gênio havia se suicidado. Poucos deram atenção ao relato de René Secrétan, que teve uma entrevista publicada em 1956, desmentindo a hipótese do suicídio. René, então com 80 anos, havia convivido na adolescência com Vincent Van Gogh. Debochava dele. Pregava-lhe peças. Passava pimenta nos pincéis do pintor, que tinha a mania de levá-los à boca. O irmão de René, Gaston, era amigo de Vincent, que tolerava René em deferência a Gaston. René, de família rica, era obcecado pelas histórias de Bufallo Bill e se trajava como tal, de chapéu, colete de pele de gamo com franjas e... um pequeno revólver. Real. Que não somente atirava, como René jamais se separava dele. René não confessou nada, ainda que mais de 60 anos depois. Mas afirmou que Vincent não se matara. E o fato é que, estranhamente, logo após a morte de Vincent, René e sua família abastada haviam saído da cidadezinha, onde passavam anualmente as férias, para nunca mais voltar. A arma, repito, nunca foi encontrada. Vincent uma vez havia escrito: "Eu jamais me mataria - mas, se a morte viesse ao meu encontro, eu nada faria para evitá-la." Não há teorias que calcem a hipótese do assassinato. Mas a obra de Naifeh e Smith não se esquiva e expõe sua tese, atribuindo a Renê o ônus, acidental ou não, da morte de Vincent Van Gogh, aos 37 anos, em Auvers. Não obstante, a lenda superou os fatos. O pintor que havia cortado a própria orelha depois se matou. Não foi bem assim e agora isso nada importa. Ficou a arte imortal deste gênio atormentado. Arte extraída a fórceps das próprias entranhas e que lhe custou a sanidade. Hoje faço minha reverência a esse cara incomparável. E dou testemunho de que a obra-prima escrita por Steven Naifeh e George White Smith ergueu um gigantesco monumento à memória de Vincent. Ave, Vincent. Era verdade, você estava certo. Só você era capaz de ver o que ninguém via.

Companhia das Letras, 1.095 páginas

P.S.: Na foto, me deleito com a bio de Vincent, em Amsterdam, numa gelada Marnixstraat, meu endereço temporário. Repare a garrafa de vinho no parapeito. Quando eu era guri e meu tio Werther nos visitava em Petrópolis, ele sempre colocava uma garrafa de vinho do lado de fora da janela, para tomá-la no que ele chamava "temperatura ambiente". Ignoro se a crença é falsa ou verdadeira, mas repeti-lo é lembrá-lo. Saudades, tio! 

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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