"Congelados no tempo", por Owen Beattie e John Geiger

segunda-feira, janeiro 01, 2018 Sidney Puterman

A Expedição Franklin está para a Inglaterra como a Copa de 50 está para o Brasil. Que leviandade essa minha, ehm? porque um trauma esportivo pela perda de um jogo não pode se comparar à perda de vidas. 129 delas, para ser mais exato. Mas esta comparação, despropositada, sobre episódios traumáticos, conta muito sobre os dois países e facilita o nosso entendimento sobre a dimensão do que foi para os ingleses a trágica história dos navios Terror e Erebus (que se deu 102 anos antes da nossa lamentada derrota para o Uruguai). A frota era composta por navios construídos com a nata da tecnologia da época, preparados, detalhe por detalhe, para permitir que seus capitães fossem os primeiros, na história da humanidade, a descobrir a passagem Noroeste entre o Pacífico e o Atlântico, em meio ao infinito emaranhado de gigantescos blocos de gelo do Polo Ártico. À época, era o derradeiro bastião inexplorado do planeta a ser conquistado. Não desta vez, porém. O minucioso livro de Beattie, o cientista, e Geiger, o jornalista, publicado há mais de 30 anos, descreve cada etapa da montagem da expedição que partiu de Londres em 1845 - e seu destino macabro. Nenhum dos tripulantes voltou ou deixou registro do que se passou. Até a publicação do livro, em 1987, os navios jamais tinham sido encontrados. Por anos sucessivos o desaparecimento de Franklin e seus 128 comandados dominou as manchetes dos jornais britânicos. A expedição criada para desbravar o polo havia sido sugada pelo desconhecido. A milionária Lady Franklin, esposa do capitão, tornou-se lendária pela sua incessante busca do marido, financiando viagens, visitando gabinetes, oferecendo prêmios. Motivadas por razões financeiras, patrióticas e científicas, inúmeras outras expedições partiram, em sequência, visando desvendar o mistério do desaparecimento dos navios Terror e Erebus. Uma delas, ao se deparar com nativos inuítes (os esquimós), foi guiada a túmulos de alguns dos tripulantes. Estórias arrepiantes foram contadas pelos nômades caçadores locais e ao menos uma autópsia foi feita. O que descobriram confirmou as suspeitas: após terem entrado em um labirinto de geleiras que se fechou para não mais se abrir, todos estavam mortos, vítimas de escorbuto, tuberculose e inanição; pelo menos, era o que se acreditava. Para consternação dos que encontraram ossos avulsos pertencentes a membros da expedição, havia fortes evidências de canibalismo. O mais estarrecedor: tudo levava a crer que alguns marujos foram atacados, ainda vivos, pelos próprios colegas. O impacto da descoberta sepultou as expectativas por um improvável desfecho glorioso. A ansiedade pública foi substituída pela contrição e por uma cerimoniosa conformação. Não obstante, o peso do acontecido no imaginário inglês foi tal que, mesmo passado mais de um século, novos grupos de estudo se dedicavam ao caso - até que, nos anos 80, o antropólogo Owen Beattie, que já vinha apresentando resultados relevantes na investigação de causa mortis baseado em resíduos ósseos, se interessou em exumar os cadáveres congelados da Expedição Franklin, em busca de respostas para o que verdadeiramente aconteceu com os 129 marujos. Um pormenor se destacava: 24 óbitos, taxa inusual, ocorreram antes dos navios ficarem presos no gelo ártico. Destes, os três primeiros a morrer estavam enterrados na Ilha Beechey. A obra reconstitui com perfeição as pesquisas científicas empreendidas e como foram obtidas as conclusões que mudaram a história oficial. Como o fato é uma verdade histórica, e não um enredo ficcional, não há por que se evitar o famigerado spoiler. O Brasil perdeu a Copa e os tripulantes da Expedição Franklin foram vítimas da solda de chumbo das latas de carne. A contaminação por chumbo lentamente os adoeceu e incapacitou, mas não os mataria, não tivessem ficado eles presos na Ilhas Rei Guilherme. Por outro lado, outros navios também passaram o inverno presos em algum ponto do Ártico, e nem por isso seus marujos morreram em profusão - muito menos a trágica marca de 100% dos homens de uma gigantesca expedição. Nas entrelinhas percebo a suspeita dos autores de que a nossa velha conhecida letal, A Corrupção, tenha tido enorme parcela de responsabilidade no lento assassinato da tripulação. O fornecedor da comida em lata, Stephen Goldner, já havia sido vetado anteriormente, por fornecimento de carne contaminada. Como um fornecedor banido por entregar carne estragada se habilitou para participar da licitação de mantimentos para a maior expedição ao Ártico jamais empreendida? A gente por aqui tem cinco séculos de experiência em como essas coisas acontecem. Quando hoje, no Brasil (o país que para perder duas Copas em casa construiu inúmeros estádios desnecessários, embora precisando de hospitais), se diz que A Corrupção mata, deveríamos recorrer a exemplos inequívocos como este, inconfundíveis como um iceberg. A leitura de "Congelados no tempo" me fez percorrer planícies geladas, escuras e inóspitas e imaginar a coragem e o desespero dos homens que se lançaram neste desafio. Demonstra também como a paixão pelo conhecimento move a nossa espécie. O livro, apesar do assunto mórbido, é empolgante pela minúcia com que descreve a expedição dos cientistas e antropólogos, 140 anos depois. Tudo isso me caiu às mãos em meados de outubro, ao navegar pelos sites dos museus londrinos, preparando a viagem que faria em algumas semanas. Ao verificar a programação do Maritime Museum, vi o link para a exposição "Death in the Ice" e me interessei. Fucei na internet em busca de mais informações e soube do livro, lançado aqui em 2001 e já esgotado. Achei um exemplar num sebo virtual, por R$ 20,00, e embarcamos ambos, eu e o livro, para o Reino Unido. Apesar de quase barrado na Escócia, alcancei a exposição em um domingo, abaixo de zero. Vi imagens dos navios submersos, feitas há dez anos e um achado impensável na época em que o livro foi escrito. No mundo atual, em algumas horas se atinge lugares que estes aventureiros do século XIX levaram meses para percorrer. Nenhum deles voltou à pátria. O trajeto que fizeram, porém, foi o fio condutor que levou as expedições seguintes à passagem Noroeste. Através dos milênios, nada resistiu à compulsão humana pelo conhecimento. A Expedição Franklin pagou com a vida, mas seu feito permanece na memória do povo inglês. Reverencio estes valentes 129 desbravadores e me curvo ao  seu sacrifício. Humanos que somos, navegamos juntos neste mesmo esquife. Inquietos e ambiciosos, queremos sempre saber mais. É o nosso impulso e o nosso destino.

Editora Record, 208 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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