"Reparação", por Ian McEwan
É subir uma montanha fresca e íngreme, com um lago de cinema no sopé, onde a gente se deixa cair - relaxado - e desaba. Talvez seja isso que eu tenha sentido ao ler a ficção de Ian McEwan. O autor conduz o leitor como se fosse um acrobático dançarino de tango - inebriado, você se permite levar, mas incapaz de antecipar o próximo passo, sempre refém dos meneios do escritor. O coração da estória se passa em um único dia, quando acontecem os fatos que repercutirão até a última linha da derradeira página. Em uma tarde quente de 1935, uma família do interior recebe parentes. Um dos familiares é uma menina que sonha ser escritora - e vê a irmã em uma cena constrangedora com um agregado da casa, o já não tão modesto filho da empregada. A partir daí, a habilidade com que McEwan se detém no pensamento dos personagens dá foros de protagonista a cada integrante do núcleo; desta forma, Cecília, Briony, Betty e Robbie rodopiam diante de nós com um detalhismo excessivo, mas ao qual sucumbimos, ciceroneados pela exuberância das descrições. Súbito, em meio ao bailado, o fato detonador da trama desmonta qualquer suposição prévia, ou mesmo a ausência delas. O andamento lento e idílico da narrativa é varrido para baixo do tapete e uma nuvem de Zyklon-B irrompe do livro, não nos dando chance de respirar. O rio que vinha em curso, cada vez mais caudaloso, agora despenca em catarata. Para deleite do leitor, McEwan não oferece desdobramentos óbvios às cenas tensas e o ápice da tensão vai na direção oposta ao dramalhão. Há plácidos momentos de rotina - mas que são palco de cataclismas íntimos, enquanto as situações de confronto são secas e rápidas. O cenário histórico da pequena tragédia dos Tallis são os momentos que antecedem a Segunda Guerra Mundial e, depois, via Dunquerque e Canal da Mancha, a fuga dos ingleses da França ocupada. A imersão na época é digna de faro de cachorro - se você não soubesse que o autor nasceu alguns anos depois das situações que descreve, você juraria que ele viu tudo aquilo acontecer. De cabo a rabo, é livro para se fazer uma mesura à passagem. Ressabiado - como sempre, antes de uma ficçãozinha -, eu comecei a lê-lo alguns dias antes de viajar para a Inglaterra. O livro se passa na Inglaterra, eu vou para a Inglaterra, gosto dessas redundâncias turístico-literárias. Mas engoli o livro e logo restavam apenas meia centena de páginas. Maçada, eu sabia que leria o que faltava ainda no vôo - e depois passaria duas semanas arrastando o livro pra cima e pra baixo no Reino Unido, com direito a nevascas úmidas. Resolvi deixar o livro nos trópicos. Na viagem, entretanto, volta e meia pensava nele. Assim voltei, retomei o danado, para o dito cujo, em represália, me dar um coice na página final. Sem queixas. Fez seu serviço de me desconcertar.Companhia das Letras, 269 páginas
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