"Bismarck", por Jonathan Steinberg

domingo, outubro 14, 2018 Sidney Puterman


Bismarck, o chanceler de ferro. Bismarck, o homem que unificou a Alemanha. Bismarck... Não sei você, mas eu já li centenas de menções entusiasmadas sobre Otto von Bismarck. Como não integro o clube dos eruditos que sabem tudo e conhecem a história de cabo a rabo, me mordia de curiosidade cada vez que o bendito nome do chanceler de ferro aparecia. O último desaforo que levei para casa foi no Musée de l'Armée, em Paris, vendo alas sem fim dedicadas à Guerra Franco-Prussiana (maior conflito bélico europeu no último terço do século XIX), vitória germânica atribuída ao gênio do chanceler. OK, um colosso. Mas exatamente o que fez o Bismarck? Deve ter sido um puta general, guerreiro matador, um Átila teutão. Fiquei com essa ideia vaga. Não sei se você, que me lê, deita cátedra sobre a trajetória de Bismarck; eu não sabia. Aí por esse tempo li no jornal um comentário de uma biografia esplêndida sobre o dito cujo, elogiada por ninguém menos que Simon Sebag Montefiore, fenomenal biógrafo de Stalin e que também escreveu uma obra estupenda sobre a cidade de Jerusalém (veja ambas aqui no blog). É? juntou a fome com a vontade de comer. Não perdi tempo. Encarei. Um tijolaço, amigo. Coisa pra segurar ponta de barraca. Então. Dei início ao desfrute. Porém... o buraco era mais embaixo. Não era uma biografia dessas tatibitati que a gente tá acostumado. Era coisa das internas. Nada daquela descrição enciclopédica, narrando como cada evento aconteceu, quem fez o quê. Não. Era como se tudo já fosse sabido. Manja a Copa de 70? Imagina uma biografia do Carlos Alberto, o capita, que fala da entrada dele no Lee e o escambau, mas sequer dá o placar do jogo e contra quem era. A toada é assim. O autor pensa que você já sabe tudo e não perde tempo com banalidades tipo onde, como, o que e porquê. O foco é na personalidade do Chanceler de Ferro e a narrativa vai no estômago de cada questão. Os fatos, ao redor (pele, gordura, casaco etc), são circunstâncias que envolvem o personagem - então eles estão implícitos, boa parte do tempo. O autor só escarafuncha as passagens mais herméticas. Isto fez com que eu apanhasse muito, até me adaptar. Engoli a frustração. Não, não era este o livro que eu procurava para fazer a minha iniciação à Prússia pós-napoleônica. Mas - como faço sempre - segui em frente. Sábia e oportuna decisão. Pois que, setecentas páginas depois, posso dizer que o livro é soberbo. Fica claro que não dá para interpretar o século XX sem entender a Alemanha montada por Bismarck. Porque as duas guerras mundiais que reconfiguraram o mundo moderno foram provocadas pelo Reich alemão. E Bismarck foi o sujeito que inventou o Reich. Poderia, neste instante, voltar à minha versão ignorante. O chanceler teria conduzido as tropas contra... Não, como eu já dizia acima, aí é que tive que rever minhas formulações. Bismarck não era militar. Não???? Mas como, se ele foi o conquistador, arquiteto de um país que ele mesmo criou e em todas as suas imagens ele aparece fardado? Pois é. Uma simbologia estimulada pelo próprio. Embora tenha tentado escapar ao serviço militar obrigatório, ele até pertenceu ao Exército, mas por pouco tempo. Abandonou a carreira. A Alemanha, antes inexistente, que ele erigiu, foi feita na política. Mezzo parlamento mezzo conchavo. Mezzo guerras mezzo diplomacia - e, nesta última, temos a essência de Bismarck, com a diplomacia da traição, da mentira e da porrada. No dizer do próprio biógrafo, que descreve como Otto von Bismarck foi um dos maiores de todos os tempos, Bismarck era na verdade um grande filho da puta. Um sujeito escroto até o último fio do bigode (caça-títulos, desfez um acordo de casamento ao saber do nascimento ilegítimo da noiva). Mas genial - o que ele fez, no tabuleiro da política, ninguém conseguiu engendrar, desfazer ou continuar. As nuances da política alemã lembram um butantã de nós de marinheiro. Mas, antes, falemos do seu berço. Steinberg mostra as raízes familiares de Bismarck. Sua origem junker. Seu enorme problema com a mãe dominadora e indiferente. Sua incomensurável insatisfação com tudo e com todos. Suas frustrações como filho de um latifundiário prussiano. Deprimido, quase se matou (ameaça que fez diversas vezes ao longo da vida). Porém, quando descobriu a política, Otto encontrou sua razão de viver. Era talhado para o ofício - e moldou a Alemanha como nós a conhecemos. O autor disseca o biografado, sua circunstância e o mundo à sua volta. E constrói suas teses. Uma delas a da prevalência junker na política alemã que teria viabilizado a chegada de Adolf Hitler ao poder, muitos anos depois (o líder conspirador Papen, um junker, convenceu o presidente Hindenburg, também junker, a indicar o cabo austríaco para a posição que um dia foi de Bismarck - a de chanceler). Mas isso foi o futuro - catastrófico - do passado que Otto ainda estava por erigir. E ele demorou até achar seu lugar nele. Não obstante, quando iniciou a ocupar um espaço na política provinciana, já destoava. Sua enorme capacidade de impor a própria vontade, confrontando e articulando, levou-o da pequena política à antessala do Imperador. E aí, na verdade, começa sua história. Porque o homem mais poderoso da história alemã - esqueçam Hitler, este foi apenas o maior criminoso -, Otto von Bismarck, nunca foi, na verdade, o dono do poder. Ele apenas o tinha emprestado. Porque foi a sua engenhosa estratégia para se tornar o escolhido do Imperador e, a partir daí, o seu imprescindível representante, que lhe conferiu o poder que utilizou para construir a Alemanha moderna. Após anos de participação parlamentar, ao obter - enfim - a indicação para se tornar o chanceler alemão, Bismarck iniciou seu arrendamento da vontade do Kaiser. Durante um período inicial, o Imperador se incomodava com aquele chanceler briguento, centralizador, colecionador de inimigos. Mas o cenário mudou da água para o vinho quando Bismarck manipulou para eclodir a guerra pelo Schleswig-Holstein, tomando para Frederico o pedaço de um reino dinamarquês e emparedando o governo austríaco. Foi seu primeiro grande passo para a construção do Reich, com a Prússia se impondo ao Império Austro-Húngaro e iniciando a costura que levaria os pequenos reinos germânicos a se unirem em uma confederação sob a liderança prussiana, do Imperador Frederico e de sua águia - Otto von Bismarck. O salto que proporcionou a ele assumir, de fato (mas não de direito) a condução de um inédito império alemão foi a provocação, em premeditada vantagem, da Guerra Franco-Prussiana, deixando a França de joelhos e engolindo uma gorda costela do território francês. Sua crueldade e falta de escrúpulos, a serviço de uma intuição genial, foram a tônica da sua complexa diplomacia externa, sempre se equilibrando em acordos sensíveis com Rússia, Inglaterra, Áustria e França. A Europa se curvou a Bismarck, a contragosto. Entrementes, dentro da nação que alinhavara, o combate era sem trégua. Segundo Steinberg, o grande Bismarck queria cuidar de cada ínfimo detalhe, da emissão dos selos postais aos escriturários de província. Não havia briga pequena demais que ele não quisesse encarar. Qualquer mínima oposição à sua vontade era razão para odiar o (a) imprudente até o últimos dos seus dias, se vingando da maneira mais torpe que pudesse encontrar. Tal temperamento o tornou odiado, pelos seus iguais, nocivo, para sua própria saúde, e incompreendido, pelos seus contemporâneos. Para Steinberg, o que Bismarck fez em apenas nove anos - de 1862 a 1871, com a vitória acachapante sobre os franceses - foi "a maior conquista diplomática e politica de qualquer líder nos últimos dois séculos". Segundo o autor, Bismarck fez isso "sem comandar um único soldado, sem dominar a vasta maioria no parlamento, sem o apoio de um movimento de massa, sem qualquer experiência de governo anterior e diante de uma repulsa nacional a seu nome e sua reputação". Vale esmiuçar que foi determinante a sua capacidade de manipular o rei e de neutralizar a família real, levando a discórdia ao palácio; ter se imposto aos militares, à exceção de Moltke, com quem culminou por fazer uma trégua; ter minado e destruído o poder de príncipes soberanos de estados alemães e por fim simplesmente ter abolido estes estados. Ao fim da vida e de incontáveis vitórias políticas - colecionando também alguns reveses -, acabou provando do próprio veneno, ao ser esvaziado e posto fora pelo neto do Imperador, a quem subestimara. Um capítulo à parte do livro - ainda que não literalmente - é sobre os judeus. Bismarck e os judeus, a Alemanha e o judaísmo. Para Steinberg, uma onda de antissemitismo público surgida no fim dos anos 70 "colocou um ponto final na era liberal e deu início a outro estágio da história alemã, que terminou com o Holocausto". Bismarck, como cabia aos junkers, odiava os judeus e a Kulturkampf. Mesmo os poucos a quem "aliviava", por seu brilho, eram desprezados. Como o compositor Richard Wagner, um dos maiores propagadores do antissemitismo, Bismarck não admitia os judeus como alemães. Wagner, anti-capitalista, via os judeus como "a personificação da vida comercial", corruptores da moral e da cultura por meio do dinheiro. Sua pregação foi massa fértil para a formatação do discurso nazista de supremacia racial. Chamava o banqueiro Nathan Meyer Rothschild de "rei dos judeus". Acusava os judeus de falarem errado o alemão nativo, a ponto de criar uma palavra, "mauscheln", que hoje os dicionários traduzem por "balbuciar", mas cuja definição real é falar como judeu, soar como iídche. Wagner inventou o antissemitismo moderno: "O judeu fala a língua do país em meio ao qual habita geração após geração, mas fala sempre como um estrangeiro. A produção judaica dos sons da voz é estranha e desagradável, um chiado, um zumbido, um fungado. Quando ouvimos esse judeu falar, nossa atenção volta-se involuntariamente ao aspecto repulsivo, e não ao significado do que intrínseco." No entendimento de Steinberg, Wagner foi o primeiro profeta do preconceito contra os judeus, porque, como Nietzsche, a classe junker e Bismarck, rejeitava "a razão, o livre comércio, a propriedade privada, o capitalismo, o comércio e a mobilidade social". Fazia coro com o antissemitismo de Wagner o romance "Soll und Haben", de Gustav Freytag, de seis volumes, talvez o maior sucesso editorial do século na Alemanha. Nele o herói é o jovem honesto e humilde Anton Wohlfahrt (cujo nome significa "bem-estar", em alemão) e o anti-herói é o judeu polonês Veitel Itzig, vulgar, servil e manhoso. Estes textos seriam considerados hoje propaganda nazista - e buscavam atingir um elemento destoante da sociedade em que viveu e na qual acreditava Otto von Bismarck, chanceler, mas em essência um nobre latifundiário deslocado no tempo. Na Alemanha em que Bismarck morria, na última década do século XIX, os judeus eram 4,8% da população. Mas eram 8,6% dos jornalistas e escritores, 25,8% dos envolvidos com o mercado monetário e 46% dos atacadistas, varejistas e transportadores. Entre os universitários, 10% eram judeus. Uma medida trazida pelo autor que mostra a desproporção de ganhos assinala que, em Hamburgo, em 1871, 43% dos habitantes ganhava menos de 804 marcos, enquanto apenas 3,4% dos judeus estava neste grupo. Em todo o Reich, em 1908, das 29 famílias com mais de cinquenta milhões de marcos, nove (31%) eram judaicas. Ou seja, um em cada 20 alemães era judeu; mas uma em cada três das famílias mais ricas do país era judaica. Estes números dão a dimensão do incomensurável e tentador butim que havia por trás do maníaco discurso antissemita dos seguidores de Adolph Hitler. Voltando a Otto von Bismarck, a imbatível nação que ele deixou como legado era ainda socialmente atrasada, semifeudal, hierárquica, arredia ao voto popular (Bismarck usou o sufrágio masculino universal para minar o poder dos príncipes, mas ameaçava anulá-lo quando lhe convinha) e contrária ao liberalismo que eclodia - e os judeus alemães eram protagonistas desta revolução liberal. Contrários a ela, políticos como o barão Carl Constantin von Fechenbach buscavam construir uma aliança antissemita de católicos e protestantes. Ludwig Windthorst, o maior parlamentar da geração de Bismarck, se opôs na Câmara dos Deputados da Prússia contra a Petição dos Antissemitas, em um grande debate sobre a questão judaica ("die grosse Judendebatte"), que tomou de 20 a 22 de novembro de 1880. O popular romancista Bertold Auerbach, que ouviu o debate, escreveu ao irmão: "Vivi e trabalhei em vão. O conhecimento do que vive em peitos alemães, passível de explodir a qualquer momento, não pode ser erradicado." Eça de Queirós, em Berlim na época, não conteve seu espanto: "Isso deixa a colônia judia desprotegida para encarar a raiva da grande população alemã." Na véspera do Ano Novo de 1881, uma passeata antissemítica invadiu lojas pertencentes a judeus aos gritos de "Juden raus!" (fora, judeus!). Toda esta algaravia rascista não era em nada estranha à política de Bismarck, o ditador. Tanto que, na reabertura do Landtag, Eugen Ritcher ligou este àquela: "Os momentos começam a subir pelo casaco do príncipe Bismarck e, por mais que ele os rejeite, eles se aconchegam junto a ele e o chamam como crianças barulhentas cercadas por seu pai." A metáfora, bela como a época (quem hoje em dia faria metáforas deliciosas assim?), expõe a estreita ligação entre o chanceler e o antissemitismo crescente e ostensivo. Por ocasião do Judendebatte de um ano antes, ele havia escrito ao seu ministro do Interior, Robert von Puttkamer: "Os judeus endinheirados tinham interesses em equilíbrios interconectados com a manutenção das instituições de nosso Estado e sem as quais não podemos viver, mas a judiaria sem propriedades, que prende-se a toda oposição política, devia ser esmagada." Ou seja, o preconceito de Bismarck, se enraizado em sua personalidade, era sobretudo oportunista. Um outro fenomenal parlamentar da geração de Bismarck, o judeu Eduard Lasker, e também seu maior adversário, considerado porta-voz dos direitos e da liberdade da Prússia e do Reich, escreveu, neste mesmo dezembro de 1881: "Nas eleições, o povo definitivamente rejeitou o antissemitismo de forma pavorosa e, em seu sujo conteúdo, tão completamente quanto se poderia desejar. Não seremos capazes de lidar tão facilmente com os outros elementos do poder reacionário. Bismarck não é um inimigo a se subestimar, mesmo quando comete erros e age passionalmente. No estágio atual da sociedade, muitos problemas existem, e quando um governo poderoso olha em volta em busca de programas populares, então eles podem encontrar alavancas eficazes, as quais, após muito uso, não os abandonará." Lasker considerava o antissemitismo artificialmente inflado pela elite, que o fazia parecer como se decorrente de um sentimento popular. As eleições tinham provado que não. Abro um parênteses aqui para me desculpar, por me demorar demasiado na questão judaica. Estou sendo desproporcional perante o espaço que ela recebe no livro. É que, mesmo não sendo judeu - apesar do nome, do nariz e de ser mão-de-vaca -, tenho ascendentes judeus, sou curioso sobre o assunto, e as revelações trazidas pela obra de Steinberg eu jamais havia deparado antes. Valiosas, demonstram o quão arraigados eram os sentimentos anti-judaicos na sociedade alemã, ainda que manobrados pelas classes ricas em direção às classes mais humildes. O próprio autor correlaciona a política imperial e antissemita de Bismarck como semeadora da ânsia coletiva por um chanceler como Hitler. Em suas próprias palavras, "o antissemitismo e seu veneno antiliberal entraram na corrente sanguínea da Alemanha, vindo a se tornar ainda mais virulento na atmosfera acalorada da Primeira Guerra Mundial e letal em seus desdobramentos. Isso também foi um legado de Bismarck." Estas idas e vindas no tempo são assíduas na obra. Mas, retornando ao momento em que assumiu o poder e se valeu da concessão do voto à população masculina como instrumento para minar o poder dos principados, Otto von Bismarck pavimentou não somente o caminho para a unificação como, sem saber, forjou o país que no fim do século XIX dominaria a Europa Central, com meios de transporte e de comunicação superiores (estradas de ferro, navios a vapor, telefones e telégrafos ), uma ciência superior (institutos tecnológicos, população alfabetizada, profissionais de excelência em medicina, física, química e engenharia), uma infraestrutura superior (indústria pesada, fábricas gigantes, minas, moinhos, hospitais modernos e portos prósperos) e um poder bélico temível (o melhor exército e a segunda maior marinha). Do outro lado, o sistema de propriedade da terra, da qual Bismarck era um expoente exemplar, se mantinha arcaico. Há quem diga que esta contradição entre modernidade e feudalismo foi importante componente na condução do país para duas guerras genocidas. Talvez. Mas impossível resumirmos em poucas páginas o horizonte espacial e temporal coberto pela obra. Uma reflexão final, entretanto, resta aos brasileiros do século 21: a relevância da política. A reformulação territorial da Europa foi uma obra política de Otto von Bismarck, que se valeu para isso de avanços e retrocessos, verdades e mentiras, alianças e conluios, traições frequentes e constante beligerância. Era o ocaso do regime monárquico. O sistema eleitoral era recém-nascido, mas a representação das câmaras, as artimanhas do poder e os conchavos para aprovação de leis e reformas já estavam lá. Ainda que nossos políticos sejam mais toscos do que sonharíamos, eles são instrumentos para a reformulação do país e da própria política. Bismarck mudou o curso da civilização ocidental, mas pouco mudou a si mesmo. Seria bom que lucrássemos na observação da rica e complexa trajetória alemã e aprendêssemos como mudar a nossa História. Se é que isso é possível; mas só dá para descobrir tentando.

Editora Amarilys, 705 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: