"O que é isso, companheiro?", por Fernando Gabeira

sexta-feira, setembro 28, 2018 Sidney Puterman

Guri, sempre tive esse questionamento. Como é que pode a vida estar tão amena para uns, enquanto, àquela mesma hora besta, outros sofrem implacavelmente? Me lembrei desse pensamento de criança nas últimas páginas do livro do Gabeira. Ele, preso, escutava a estreia do Brasil na Copa de 70. Eu, nove anos recém feitos, estava no chão da sala, em Teresópolis, de olhos vidrados na TV preto-e-branca. Como eu podia estar tão alheio ao sofrimento humano, que acontecia naquele mesmo minuto, em um mundo que desconhecia? Pois é. Como desconhecia, comemorei os gols, principalmente os do Jairzinho, o que me fez doravante torcer pelo Botafogo. Mas isso é outra estória. Daquele Gabeira que estava preso, só vim a saber muitos anos depois. À época, pareciam muitos. Mas até que são poucos, vistos daqui, da posteridade dos velhos. Aos dezoito anos, eu fazia faculdade em Niterói e uma das minhas leituras de barca, então, foi o livro de Fernando Gabeira. Lembrei disso agora, porque há duas semanas a turma da minha antiga faculdade se reuniu para comemorar os 50 anos do Instituto de Comunicação Social, na Lara Vilela. O IACS. Confirmei presença, os amigos agendaram cruzarmos a baía juntos, como nos velhos tempos. Mas deu ruim e não pude ir. Meio que para compensar, tirei da prateleira uma reedição do antigo livro de Gabeira (aquele tal exemplar que li, já não sei, dei, perdi). Era um jeito de recuperar a barca perdida, relendo, trinta e tantos anos depois, um velho companheiro da travessia Rio-Niterói. Mero retorno às utopias de juventude? Ou estes novos tempos pirotécnicos, de ignorâncias inflamadas, me fizeram buscar o ponto de partida, onde tudo começou? Porque "O que é isso, companheiro?" foi exatamente isto: um início. Um portal de entrada no mundo dos subversivos e dos exilados, para mim um passado povoado de enigmas e escasso em explicações satisfatórias. Confesso que via o relato do repatriado com um pé atrás: aquele magricela aviadado de sunga de crochê era um terrorista que desafiou a ditadura? Eu era cético em tempos politicamente incorretos, onde se fumava no elevador e se chamava os outros de viado. Passado remoto. Hoje os viados foram extintos. Talvez em breve nos tornemos hermafroditas, ou ambicionaremos ser. Enquanto este breve tempo ainda demora, sigo lendo os contemporâneos (viados ou não). Se quando li pela primeira vez a narrativa das prisões da ditadura eu era um néscio, agora já acumulei alguns relatos. Vão se tornando repetitivos - afinal, torturadores e meganhas não tinham compromisso com a originalidade -, mas sempre se aprende alguma coisa. Juntando aqui e ali, vamos montando uma visão abrangente e entendendo o mecanismo. Então, nesta minha releitura, a narrativa de Gabeira perde em surpresa e contundência, mas permanece rica em conteúdo. Até porque Gabeira tem uma prosódia que é só dele. Um ritmo único, sereno, envolvente, que te cerca não como uma tropa, mas como um riacho se imiscuindo na ramagem ribeirinha. O tom doce nos distancia do olho do furacão e reduz as importâncias supremas, evidencia o ridículo das circunstâncias. Como quando o Cabo Afonso comemorava que estavam descendo a porrada nos socialistas e foi advertido por um tal Zé Maria: "Cabo, os socialistas somos nós." (Quase ia escrevendo Cabo Daciolo, este inacreditável candidato a presidente que virou personagem semanal da coluna do Gabeira de 2018.) Ou o pobre japonês que alugou uma casa que havia pertencido à Embaixada do Peru e que era invadida, todos os dias, por gente pedindo asilo, até que o já desesperado nipônico pediu asilo ele mesmo na embaixada certa, a do Japão. Ou acordar no aparelho subversivo sem a gostosa e ao lado de um enorme boneco do Tio Sam. Ou o azarado flamenguista amigo do Razek, que foi reclamar da tigrada da repressão, achando que eram guardas de trânsito, acabou preso e passou um mês no pau-de-arara. Ou o Amazonas, o jornalista ajudante de terrorista que sumia sempre que se precisava dele, e que, quando entrou na garagem da casa em que o Embaixador americano foi sequestrado, viu a Kombi deixada pelos colegas e pensou: "Ué, esta Kombi é minha." Na verdade, a compra do veículo utilizado na ação tinha sido no nome dele, e ele a reconheceu de bate-pronto. Amazonas virou-se para o colega fotógrafo e disse: "Amigo, vai tirando as fotos que eu vou na esquina telefonar." O Amazonas, esperto, só reapareceu na Suécia. Tem também filosofia digna de para-choque de caminhão, como quando diz que "antessala de cadeia é como trem partindo: não dá pra começar assunto novo, nem dá pra completar os velhos". O best-seller de Fernando Gabeira tem uma primeira metade que vai bem nessa toada - livre, novidadeiro, pronto pro que der e vier. Gabeira conta como saiu da vida de jornalista e caiu na clandestinidade, como foi o cinematográfico e lendário sequestro do embaixador, como os grupos de esquerda eram primários e desarticulados. Sobretudo, carentes de mão-de-obra. Depois do AI-5, a fonte humana secou, os terroristas não conseguiam sangue novo, as aquisições aconteciam apenas quando trocavam de grupo, por conta de querelas ideológicas. Reciclagem estéril. O próprio grupo do sequestro de Charles Elbrick se chamava MR-8 aproveitando o nome de um antigo grupo MR-8, do Paraná, que havia caído todo. Ou seja, era o MR-8-2. A segunda metade do livro tem uma levada mais reflexiva sobre os problemas da esquerda e os próprios problemas de Gabeira como preso. Ele havia sido capturado após, na fuga, levar um tiro nas costas. Dali foi para o Hospital do Exército e, subsequentemente, para as mais variadas prisões de Rio e São Paulo. Ressalta que sua experiência como torturado (incluindo choques no pênis e invasões anais) foi muito tímida se comparada a de dezenas de outros subversivos. Acredita que foi salvo pelo tiro - que o fez passar mais de um mês no hospital, impedindo que os torturadores o apresentassem a todo seu arsenal inquisidor. Na parte teórica, Gabeira condena a tentativa de proletarização dos intelectuais e desnuda a farsa da esquerda, carente de trabalhadores que legitimassem seu discurso ("um operário para vinte trotskistas"). Não poupa, já no ano em que o Partido dos Trabalhadores estava em gestação (PT do qual Gabeira é fundador), os "burocratas de esquerda": "Num certo sentido, foi bom não termos tido uma grande faixa de poder ao nosso alcance, pois os erros iriam liquidar nossas esperanças por muitos anos." Não só aqui - mas também aqui -, Gabeira, lúcido e corajoso, foi premonitório. À Gabeira não falta a suprema coragem de expor a própria covardia, ou seja, a racionalização de riscos, como quando discute com Lúcio Flávio (assaltante de bancos que se tornou lendário por ser boa-pinta e articulado, protagonista, nos anos 70, na pele de Reginaldo Farias, do sucesso nacional de bilheteria "Lúcio Flávio, o passageiro da agonia") a conveniência ou não de fugir. O larápio fugiu de todas as cadeias, Gabeira nunca tentou. De certa forma, Fernando Gabeira é um elo inestimável da civilidade que a todos conviria priorizar e que, ousado, trafegou pela barbárie que todos deveríamos intuir - e evitar. De proeza em proeza, antes de serem todos presos e/ou assassinados pela ditadura, o embaixador alemão foi sequestrado e Gabeira entrou na lista dos que deviam ser libertados (vida dura a dos embaixadores naqueles anos psicodélicos no Rio de Janeiro, ehm?). Gabeira voou para seu exílio ao redor do mundo e eu soube da sua existência na dia da volta, em 1979, na foto de capa do JB, que celebrava o retorno de mais um exilado. "Exilado? De onde?", eu me perguntava, encafifado. Aí ele lançou o livro, eu, curioso, comprei, e aí voltamos ao início desse relato. A estranheza que era unir sua figura andrógina ao seu histórico guerrilheiro, quando eu era adolescente, foi se transformando, através dos anos, em reconhecimento e admiração. Para mim, Gabeira é como o sábio da montanha, aquele cara que vive no alto do morro, dentro de uma caverna, em êxtase - somente interrompido quando um discípulo em busca da redenção vai até ele ouvir a verdade da vida. Fernando Gabeira, pequeno verbete da história brasileira, é o exemplo acabado de como não sabemos aproveitar os nossos melhores (a sabotagem desleal da sua campanha a prefeito do Rio, em 2008, ainda está entalada na minha garganta). Sina bananeira. Fiquei feliz ao saber que o Hotel Quitandinha faz parte das suas memórias de infância, dos tempos de menino em Juiz de Fora. É um pedaço das minhas reminiscências de moleque também, em Petrópolis. Foi lá que ele viu, pela primeira vez na vida, mulher fumando e, ainda por cima, de calças compridas. Fosse duas décadas depois, podia ser minha mãe, correndo atrás de mim.


Editora Estação Brasil, 237 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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