"A farra dos guardanapos", por Sílvio Barsetti

sexta-feira, setembro 14, 2018 Sidney Puterman

Hoje, 14 de setembro, faz nove anos que Paris sediou o banquete que entraria para a História - mas por razões muito diferentes das imaginadas à época. Com "A farra dos guardanapos", Silvio Barsetti conta em pormenores o passo-a-passo da concessão da medalha das medalhas, a Légion d'Honneur, a um político carioca. Na descrição, o autor se inspira em uma outra festa, longínqua, mas memorável: o baile da Ilha Fiscal, o último baile do Império. Se o paralelo procede ou não, pouco importa, porque Barsetti se dedica mesmo é ao ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, e à sua movimentada trajetória política. Acima de tudo, a tudo que o desmerece (o que não é pouco). Antecipo que, pela forma com que os fatos são narrados, não fiquei convencido ver no autor uma genuína paixão pela história; achei mesmo um livro mais casuístico, com um lado bem definido. E, cá pra nós, um livro com lado, cujo tema é a política atual, é um livro que deve ser lido com certa dose de reserva. Se é esperado que todo autor tenha seu propósito, entendo que nem todo propósito é adequado: o registro jornalístico combina melhor com a isenção. Com a busca do controverso. Mais ainda um livro-reportagem, que tem a vocação do documento histórico. Pois é. Adianto logo que, a meu ver, a pauta é inquestionável. Não há quem duvide que a tal farra foi um escárnio. Uma agressão ao cidadão-eleitor, que não deve perder a chance de se inteirar sobre o acontecido. Por isso, reitero, comprei o livro. Considerei um gesto relevante de cidadania. É um livrinho pequeno, com uma capa feia, provavelmente resultado da necessidade de uso da foto escandalosa, um flagrante amador. Sem maiores problemas. Muitos bons livros têm péssimas capas. O tema central é um momento nada enaltecedor da nossa história recente: uma festa em Paris para condecorar Sergio Cabral com a tal medalha, com a presença entusiasmada de ampla comitiva (boa parte dela financiada com dinheiro público). À época, setembro de 2009, pouco ou nada se falou. Mas tudo veio à tona três anos depois, quando o blog do ex-governador Anthony Garotinho divulgou as imagens clandestinas do evento. As fotos surpreenderam a população, pela falta de decoro, mau-gosto e atrevimento. A festa ficou conhecida como "A farra dos guardanapos", pelos flagrantes non-sense em que integrantes do governo e empresários vencedores de licitação celebram, às gargalhadas, com guardanapos na cabeça. Por maior que seja o insulto ao "povo", porém, o livro é ralo. Falta informação relevante. Então, empurrando a farra para o canto da mesa, o livro tem que ser tomado pelo que é: uma reportagem crítica aos governos Cabral e à sua conduta política e pessoal. Pior é que as tintas fortes derramadas na cabeça do ex-governador - atualmente cumprindo pena por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, com uma condenação que, somada, monta a 170 anos e 4 meses de prisão - poupam outros protagonistas da cena política fluminense. Isto traz um desconforto para o leitor atento. Dá um ar de orquestração política à publicação. Pena. Fora de dúvida que esta possível parcialidade narrativa não inocenta Cabral, pois os fatos comprometedores descritos são de conhecimento público. Mas deslustra a obra e torna suspeita sua motivação. Mais: além de poupar nomes graúdos, que têm sabida ligação com o governador condenado (e alvos também de denúncias e investigações), aqui e acolá o texto parece outorgar um atestado de correção a certos envolvidos no esquema denunciado - o que, novamente, desmerece sua qualidade jornalística. Como disse alguém em algum lugar, "jornalismo é sempre contra; jornalismo a favor é propaganda". Bem, ao livro. Ele faz uma pequena digressão sobre a infância e juventude de Cabral. Fala de algumas das denúncias de corrupção. E revela detalhes das inúmeras viagens do ex-governador a Paris, misturando-as todas com a festiva noite que acabou com fornecedores do Estado do Rio e os secretários deste mesmo estado dançando, bêbados, com guardanapos na cabeça. Ausência sentida na boca livre, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva é citado frequentemente como aliado, parceiro e apoiador, além de amigo íntimo. Barsetti contextualiza o momento fantasticamente positivo de ambos. Publicações de expressão mundial - como a inglesa "The Economist", a norte-americana "Newsweek" e o francês "Le Monde" - exaltam os dois políticos. A própria farra do título se deu uma semana depois da visita de Lula a Paris, onde o brasileiro acertou com o presidente francês Nicolas Sarkozy a compra, pelo Brasil, de US$ 20 bilhões de dólares em equipamento militar da francesa Dassault (a transação deu com os burros nágua, pois a Dassault foi trocada pela sueca Gripen, e ainda assim o negócio gorou, face às as denúncias de favorecimento e corrupção; hoje a quase-venda foi transformada em ação penal que apura o pagamento de suborno a Lula e a um dos lulinhas, acusação reforçada esta semana pela delação do ex-ministro e chefe da Casa Civil Antônio Palocci, que reafirma que Lula recebeu propina na negociação posterior com os suecos). Retornando à dupla poderosa, o autor, para dar a medida da proximidade de ambos, menciona as disputas de mexe-mexe - jogo de baralho que Lula e Serginho adoravam jogar - na mansão dos Cabral em Mangaratiba (a propósito, confiscada pela Lava-Jato e leiloada ontem por R$ 6,4 milhões, 20% abaixo do valor mínimo) e ressalta que houve 38 encontros, registrados em agenda, entre os dois políticos no biênio 2007-2008. No ano da farra, segundo o autor, Cabral teria dito: "Eu amo o Lula como um filho ama o pai." Espirituoso, Barsetti diversas vezes é sarcástico com o ex-governador. Já Eduardo Paes, aliado de longa data de Sergio Cabral e cuja relação era um apaixonado casamento de interesses, é preservado por Sílvio: em mais de uma ocasião o autor bate forte em Cabral e blinda o ex-prefeito do Rio de qualquer participação. Fato é que Eduardo Paes era um dos convivas presentes à farra. Segundo o autor, contra a própria vontade: "Definitivamente, o prefeito não queria estar em Paris. Mas não conseguiu dizer não ao todo poderoso comandante da política fluminense. Passou boa parte da noite tentando disfarçar sua contrariedade com cumprimentos protocolares e uma expressão menos sisuda." Ao comentar a eleição do alcaide, Barsetti não esconde o entrosamento dos dois, mas justifica: "O novo prefeito segue fielmente Cabral, antevendo uma série de investimentos para a cidade." Entretanto, quando da festa em Paris que condecoraria Cabral e se tornaria um escândalo, Paes, "ao receber o convite, faz corpo mole, se recusa a ir (...), sabe que vozes indiscretas do Palácio Guanabara tratam aquela viagem a Paris como um carnaval fora de época, com muito dinheiro público. Recolhe-se e comunica a Cabral a decisão de ficar em casa. O governador, irritado, exige que o prefeito esteja na homenagem." Não tenho acesso a nenhuma informação privilegiada, nem acompanho a rotina dos investigados (todos os políticos citados no livro, soltos ou presos, são ou foram alvo de investigação). Mas, em sendo necessário, se convocado a depor sobre este ou algum outro episódio futuro ou pretérito, Eduardo Paes sempre poderá usar o livro em sua defesa. Segundo o autor, aparentemente imbuído da missão de justificar a presença de Paes no regabofe, os apelos para convencê-lo a ir foram intensos: "O governador se encontra com seus amigos e pede que o ajudem a demover Paes. (...) Durante um dia inteiro são vários telefonemas para Eduardo Paes. Ele dá as mesmas desculpas e muda logo de assunto. Sob pressão, com tanta insistência do governador, acaba cedendo." O texto é tão cuidadoso com Paes que até mesmo a foto em que ele, Paes, três meses depois da farra, beija a mão de Cabral em Vila Kennedy (prova inequívoca de sua subserviência e adulação), é minimizada, como se a reboque de uma estratégia: "Paes sabia que a foto seria destaque na imprensa. O gestou soou como calculado." Retrocedendo ao evento de três meses antes, a tal farra em Paris, o ex-prefeito não deixava entrever que em 90 dias beijaria a mão de Cabral. "Paes hesita um pouco antes de cumprimentar seu chefe político. E quer saber quem são os homens que cercam e lisonjeiam o governador e acompanham com tanta atenção a tradução de Julio Lopes. Está curioso, olha para o grupo seguidamente e depois comenta algo com Pedro Paulo, como se estivesse impressionado com o glamour do evento e a presença de tantos franceses ilustres." Então voltemos à tal festa, onde foram feitas as tais fotos. A bem da verdade, o evento rende pouco como personagem. Barsetti fez um belo esforço de apuração, mas há pouca substância. Além da descrição em pormenores das mesas, do casal de dançarinos, da comida, dos garçons e das gafes, tudo se restringe a uma grande boca-livre financiada parte por dinheiro público e parte por empresas privadas com interesses escusos, e que ganhou dimensão por conta da divulgação de fotos ridículas. Um conteúdo assaz apetitoso para colunas sociais e para o jornalismo marrom. O que não impede que entre as páginas da obra possamos coletar curiosidades. Como ser informado que Adriana Ancelmo, a primeira-dama, recebeu em 2010 o Troféu Dom Quixote, do Supremo Tribunal Federal, "por se destacar na defesa da ética". No mínimo, divertido saber. Quem quiser fofocas sobre a vida de luxo do casal não poderá se queixar (como descobrir que a suíte dos Cabral em Montecarlo custou meros oito mil euros - por dia). Para encerrar, informo aos incautos que quem se interesse pelo desdobramento posterior da vida dos citados os encontrará na prisão ou no horário eleitoral (há até quem consiga estar em ambos os espaços ao mesmo tempo). E se alguém quiser saber por que, afinal, os distintos empresários e funcionários públicos colocaram os guardanapos na cabeça, a única resposta oferecida pelo livro é a do dr. Sergio Côrtes, secretário de Saúde no governo Cabral (atualmente preso, mas nunca se sabe): "Foi uma brincadeira. Falei na hora: 'vamos operar'. Estávamos operando."

Editora Máquina de Livros, 172 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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