"Um cavalheiro em Moscou", por Amor Towles

sexta-feira, setembro 07, 2018 Sidney Puterman

O livro em questão é a) uma obra plena de presença de espírito, elegância e erudição. Domínio absoluto do texto. Um passeio pela alma e pela história russa, a uma distância segura dos clichês. O prisioneiro e bon-vivant Conde Rostov é um personagem antológico; b) uma longa sucessão de capítulos melosos, onde não acontece absolutamente nada, exceto gansos correndo escada abaixo e harmonização de vinhos blasé. Um fraseado pretensioso, sob medida para quem não tem mais o que fazer, ou melhor, o que ler. Romancezinho água-com-açúcar. E então? Em qual das duas sentenças você apostaria exprimir melhor a personalidade deste best seller? A bem da verdade, "Um cavalheiro em Moscou" teria em ambas uma boa introdução. Com o selo na capa "mais de um milhão de exemplares vendidos nos EUA", já era de se esperar que não fosse bom - imaginava eu que fosse uma obra rasa (e é) e repleta de lugares comuns (né não). Porém, seja por qualquer prisma que se olhe, é um livro que agrada às boas almas. Uma estória simples, com aquela ingenuidade arrebatadora dos filmes de Frank Capra, onde os mocinhos são seres humanos exemplares - corajosos e altruístas - e os malvados são só uns sujeitos mal-humorados e mal-amados. O trio Aleksander, Emile e Andrei (que poderiam ser listados no zut como trios famosos, se é que você alguma vez já jogou o zut) parece a trinca de fadinhas da Bela Adormecida: Fauna, Flora e Primavera, com sua amorosa rabugice. Visto de um ângulo mais rigoroso, certamente é um livro que poderia esperar mais alguns vinte anos para ser lido - eu realmente tenho mais o que ler. Ele não faz a menor falta a ninguém. Mas dizer que ele não tem seu charme seria uma mentira descarada. Agora que li-lo, me afeiçoei. É ainda um livro bom para se dar de presente. Ressalto que lê-lo ou não lê-lo não fará muita diferença para o presenteado (ainda que as dezenas de irônicos exemplos sobre a vida comunista russa tenham seus encantos). E o que se passa na estória? Bem, sem spoiler, vou contar o livro em meia dúzia de linhas: um aristocrata russo é condenado e preso pela revolução bolchevique. Ao invés de ir para uma cadeia ou para a Sibéria, ele é autorizado a continuar morando no sofisticado hotel em que já morava (o Metropol, esse aí da gravura). Não poderia, entretanto, jamais sair do hotel. Ele deixa de ser hóspede/cliente e se torna garçon do Boiarski, o restaurante do hotel. Faz amizade com uma menina de 9 anos, também moradora do hotel, que parte, cresce, volta e lhe dá a própria (dela) filha para que ele a crie (dentro do hotel). A menina é o seu xodó e vira uma pianista talentosa. Ponto final. O fato desta estória ser contada com enorme graça e estilo faz com que seja uma estória melhor; mas o jeito de contar não poderia, ou não deveria, ser tudo. Atesto que o conteúdo tem suas curiosidades, como nos apresentar ao sistema de placas de cobre em relevo, pregadas no mobiliário: sem querer, delatavam que este pertencia a quem não os usava. Explico: a riqueza expropriada dos cidadãos mais abastados - casas, móveis, etc - revertia para a cúpula do partido soviético, mas as plaquinhas atestavam que o luxo confiscado pertencia ao povo, embora quem o desfrutasse fosse algum magnata do politburo (palavra não citada na obra, a propósito) ou seus apaniguados. Entre as dezenas de grandes frases do livro (ei, isso já não valeria essa leitura, ô mala?) há uma definição de "pai" que considerei uma obra-prima: "A responsabilidade de um pai não poderia ser mais simples: levar uma criança com segurança à idade adulta, a fim de que ela tivesse uma chance de experimentar uma vida com propósito e, se Deus permitisse, contentamento." Eu, que sou muitas vezes pai, amei. É isso. Acima de tudo, isso. Por fim, evitável a derrapada da tradutora Rachel Agavino, na página 410: "E, quando o Grão-Duque comentou com um amigo que, embora a condessa Chermatova fosse um 'deleite', seu filho era 'pouco confiável', Kemp saberia sem que lhe dissessem que, se um dos dois Chermatova aparecesse à porta (...)." Ora, qualquer tolinho sabe que o sufixo "a" nos sobrenomes russos é exclusivamente feminino. "Um dos dois", portanto, teria que ser "Chermatov". Tão óbvio que me espanta tenha escapado à revisão. Bem, sem ter muito o que dizer sobre um livro que, ainda que carinhoso, pouco me diz, me resta frisar que é um livro peculiar. Adamascado. Nas suas muitas citações ao clássico "Casablanca", quase um alter-ego, esconde-se talvez a "mensagem" do livro, uma doce e melancólica ode à liberdade - no que é primo também de filmes como "A vida é bela", de Roberto Begnini. "Um cavalheiro em Moscou" é uma obra sem rancor, plena de amor pela vida. Em termos de parentesco, um afilhado dos contos de fada, mas de smoking.

Intrínseca, 460 páginas

P.S.: Caso você não reconheça o negão estiloso em frente ao Metropol, é Aliou-Cissé, técnico da seleção nigeriana na Copa do Mundo da Rússia. Disparado o mais distinto cavalheiro em Moscou, este ano.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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