"Pichón", por Carlos Moore

sexta-feira, agosto 31, 2018 Sidney Puterman

Na Cuba da primeira metade do século passado, jamaicanos e haitianos eram apelidados de urubus. O epíteto, pouco elogioso, era uma referência às hordas de desempregados geradas pela Depressão de 1929: trabalhadores emigrantes zanzavam por toda Cuba fuçando lixo e catando restos para alimentar a família. Como em Cuba o filhote de urubu era chamado pichón, os filhos destes emigrantes eram pejorativamente chamados assim. Pichón. Charles Moore, ou melhor Carlos Moré, ou, ainda, Carlos Moore, pichón, escreveu um dos mais impactantes livros sobre racismo e discriminação racial que tive o privilégio de ler - e, de quebra, abriu uma avassaladora janela sobre o regime castrista, as relações internacionais de Cuba e os grupos ativistas pró-independência dos países africanos. A epopeia que é a simples transcrição da inacreditável experiência de vida deste cidadão cubano supera em muito as limitadas páginas da edição. As peripécias deste morador de Cuba, Flórida, França, África e Bahia são contadas numa toada que não nos deixa largar o livro sobre a mesa. Ele já começa jogando na cara a estratificação racial cubana, sua realidade de moleque: no topo do topo, as elites norte-americanas, que viviam no setor branco da cidade e tocavam a economia. Ao lado deles estavam os criollos, brancos nascidos em Cuba. Eram seguidos pelos gallegos, espanhóis metidos a besta, gente da mesma categoria dos turcos - uma denominação que açambarcava judeus, árabes e, efetivamente, os turcos. Essa elite vivia em bairros nobres e arborizados, cercados por algumas famílias pardas, que, no dizer do autor, "queriam se passar por brancas". No degrau abaixo delas vinham os chinos (chineses nascidos na Ilha), e, abaixo destes, os guajiros, cortadores de cana brancos, trabalhadores rurais que eram tidos como o lixo branco. Abaixo de todos, vinham os negros. Mas o contingente negro tinha também suas prateleiras: os mulatos mais claros ficavam acima dos mulatos mais escuros, que, por sua vez, estavam acima dos Negros. Depois destes, vinham os negros imigrantes caribenhos anglófonos, os yuma, e os haitianos, os piti-piti. Moore nasceu no penúltimo degrau, filho de pais jamaicanos falantes de inglês (idioma do qual se envergonhava, guri). As aventuras do pichón nos bairros pobres de Central Lugareño, um pequeno lugarejo onde ficava o barraco da família Moore, nos revelam uma Cuba ignorada e nos apresentam aos dois caudilhos que a dominariam pelos próximos três quartos de século: um era Fulgêncio Batista, El Mulatón, a esperada redenção negra que jamais esteve perto de acontecer; o outro, deixo que Carlos nos apresente: "Em julho de 1953, um advogado de classe alta, ex-seguidor de Chibás e apelidado de Esperança Branca pela elite do país, liderou um sangrento putsch contra o ditador. Mas Fidel Castro Ruz, o advogado golpista, acabou sendo impiedosamente derrotado pelo recém-integrado exército. Foi capturado e encarcerado; os negros tinham permanecido leais a Batista." Não deixa de ser curioso ver aquele que se tornaria uma lenda ser definido de forma tão prosaica. Antecipo aqui que, por se tratar de Cuba, é logicamente uma narrativa política; mas a única bandeira política que moverá Carlos Moore será a da igualdade racial. Moore nunca aceitou um milímetro a menos, que é o que constatamos na leitura da sua instigante biografia. A infância e adolescência de Carlos têm tintas dickensianas, salgadas pela mãe que lhe tirava o couro e atenuadas pelo pai, ignorante, mas sábio, por todos respeitado. Os patrões o "aprovavam" tanto que diziam que Victor Theodore Moore era um preto "com alma de branco". Os desentendimentos entre pai e mãe, a propósito, culminaram na separação do casal, com a saída de casa da mãe. Pouco tempo depois, Theodore casou-se - por correspondência - com uma cubana emigrada, que trabalhava nos EUA como doméstica. Às vésperas do fechamento da fronteira cubana, foram todos para a América, para deslumbre do jovem Carlos, que, sabe-se lá como, aos 17 anos, recém-chegado a um país do qual não sabia nada, já havia se envolvido com os principais movimentos jovens, culturais e políticos dos Estados Unidos do fim dos anos 50 - e, para sua enorme surpresa e deleite, comendo um monte de garotas brancas, que eram o seu maior sonho de consumo. Do inferno ao paraíso. Os costumes estavam sendo virados ao avesso e a América era a protagonista desta revolução. De início, Moore se deslumbrou com a riqueza dos negros locais - nada a ver com a miséria em que eram confinados em Cuba. Nos EUA os negros tinham programas de TV, belos carros e vestiam-se como artistas - em Cuba não tinham nada e vestiam-se em andrajos. A proibidíssima relação sexual inter-racial em Cuba era, aos olhos dele e pela já referida experiência própria, liberadíssima nos States. Uau. Mas esta primeira impressão de eqüidade racial logo revelou-se superficial e Moore iniciou sua descoberta do verdadeiro racismo americano. Daí para aderir aos entusiastas do movimento black power foi um pulo - ao mesmo tempo que Cuba, recém tomada pelo guerrilheiro Fidel Castro, ocupava as manchetes dos jornais americanos, fascinando os jovens. Corajoso, inteligente e inquieto, Carlos não perdia uma. Estando no lugar certo, na hora certa, Carlos Moore, este jovem negro cubano, passou a ocupar um local de destaque nos eventos raciais e políticos, mesmo sem que tivesse estofo para tanto. A simbologia pesou a ponto de, na visita de Fidel Castro ao Harlem, a assessoria do ditador cubano ter pinçado o entusiasmado Carlos na multidão, para que ficasse no palanque ao lado de Fidel - afinal de contas, toda a entourage cubana em visita a Nova York era branca, e o regime apregoava a si mesmo como proponente da emancipação racial dos negros em Cuba. Um cubano negro no palanque dava um mínimo de legitimidade ao discurso de Fidel. Carlos exultou. De deslumbrado pelo american-way-of-life se tornou um ativista engajado pela causa cubana. Fazia discursos nas ruas e praças. Se aproximou dos representantes das nações africanas. Tentou imigrar para a África, em adesão à causa local (foi dissuadido). Arquitetou um atentado a bomba na embaixada belga, que por um triz não se consumou, com ele (e a bomba) já lá dentro. Organizou uma manifestação em frente à sede das Nações Unidas, em defesa do regime cubano: "A Revolução, que trouxe dignidade para os negros, está ameaçada pelos 'Ku-Klux-Kubans' de Miami, pelos linchadores do Mississipi e pelos imperialistas brancos de Washington que assassinaram Lumumba!" discursava, ao que era respondido pela multidão: "Fidel! Fidel! Cuba si! Yanqui no!" Depois de aprontar algumas, cheio que estava de orgulho pela emancipação negra de Cuba e já saturado da sociedade wasp, resolveu - sob veementes protestos do pai, na última vez em que se viram - retornar à ilha natal, para se apresentar como soldado da revolução. Carlos não tinha ainda 18 anos! Sua nova temporada cubana nos leva ao âmago do regime (até o fim do livro, Moore defenderá a Revolução - mas não poupará a ditadura). Ao por os pés na Ilha, para sua surpresa percebeu que, a despeito de toda a mudança na ordem política, ele continuava sendo o mesmo negrinho de antes. Todo o prestígio que ele ingenuamente pensara ter acumulado com seus discursos pró-Cuba na América, sua vinda deliberada e espontânea para o país (na contramão dos que fugiam), sua momentânea proximidade com Fidel, não proporcionou a ele a dignidade esperada. Cuba continuava tratando os negros como seres de segunda categoria. Ofereceu-se para servir à causa, mas foi deixado à margem. Se queixou que estava há três meses à espera de uma função qualquer, foi esbofeteado e preso. A amizade que fizera com alguns intelectuais cubanos, que souberam da sua prisão e pediram por ele, serviu para livrá-lo desta primeira passagem pelos calabouços do regime (ficou em uma cela infecta e apinhada de prisioneiros por 29 dias, onde diariamente alguns presos eram substituídos por recém-chegados - atentando que os recém-saídos não o eram por terem sido liberados, mas sim levados para o patíbulo da execução). O relacionamento com Robert Williams (líder norte americano do movimento pelos direitos civis, então exilado em Cuba) e com os pensadores negros Marc Balin e Walterio Carbonell proporcionou não somente um passe para a liberdade, mas também um emprego de tradutor. Quando, porém, abordou seu "velho conhecido" Fidel em um inesperado encontro na rua, e pediu o favor de uma audiência - visava "alertar" o caudilho de que o racismo em Cuba permanecia inalterado -, caiu em uma armadilha que o levou para um campo de concentração, fadado ao trabalho escravo nos canaviais. Depois de meses de trabalhos forçados e um ferimento à bala ao tentar apartar uma briga, seus providenciais bons contatos evitaram que ele morresse no meio do nada - foi transferido para Havana, para cuidados médicos. Após seu restabelecimento, conseguiu remissão de pena e, graças ao esquecimento da burocracia, recuperou seu cargo de tradutor. Ao cruzar nos corredores do prédio do governo com o coronel que o mandara preso anteriormente, entretanto, foi reconhecido e recebeu uma súbita nova ordem de prisão. Aproveitando que o oficial foi chamar a vigilância, abandonou a repartição e correu até a embaixada de Gana, onde pediu asilo político, fiado mais uma vez nos contatos que mantinha, desde o seu período nos EUA, com as representações diplomáticas africanas. Aí... Bem, aí, vamos parar por aqui. Peço ao valente leitor que me acompanhou até agora meio minuto para uma confissão pessoal: não tenho por hábito descrever o roteiro dos livros que leio. Falo mais das minhas impressões. Minhas resenhas são apenas uma reverência ao livro e ao seu conteúdo. De tal forma me deixei tomar pela narrativa de Carlos, porém, que, quando me pus a escrever, comecei a reproduzir sua trajetória, passo a passo. Paro por aqui, com Carlos ainda molecão, decidido a correr até a embaixada e dali fugir de Cuba. Percebi que estava quase que a fazer um resumo da obra, o que nem de longe era meu objetivo, quando comecei a escrever sobre sua biografia. Caso a estória lhe interesse, procure por "Pichón". Eu mesmo penei dois anos para conseguir um exemplar. Meu mérito foi não ter desistido. Só agora, livro lido, é que descobri que Carlos Moore atualmente mora no... Brasil! Parece um sósia do Claudio Adão, atacante que jogou por Santos, Flamengo e Botafogo. Seu atual physique-du-role o credencia para preto velho da Umbanda - equivalente à santeria cubana que o regime de Castro sufocou e que nossos evangélicos-do-dízimo também tentam se apropriar e extinguir. Vou ficar atento às próximas palestras de Moore. No youtube há diversas palestras dele no país. Seria uma enorme satisfação escutá-lo ao vivo. Ah, o livro? Se lhe restou alguma dúvida sobre o que penso sobre o texto e o autor, posso sintetizar em uma palavra, que apliquei para algumas poucas dezenas dos milhares de livros que li. Fenomenal.

Editora Nandyala, 422 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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