"Pornopopéia", por Reinaldo Moraes

segunda-feira, dezembro 07, 2020 Sidney Puterman


Um aguaceiro. Uma chuva torrencial, daquelas que parecem o fim do mundo. Você vai dormir com o barulho da água chapoletando nas telhas de amianto, sabendo que vai acordar com a estiagem. Mas não. Você acorda e se depara com o mesmo temporal cobrindo tudo, como se fosse um mar, que ninguém sabe onde vai parar. Este é o fôlego da prosa de Reinaldo Moraes. Não tem fim. Engole tudo. Um tema único (três, vá lá: sexo, drogas e a rasa escrotidão do personagem), onde uma frase emenda na outra, um parágrafo no outro e dá-lhe piaba, ninguém respira. Demorei muito mais do que devia para puxar esse livro. Levava fé, mas vacilava. Pegava o livro pra ler, largava de mão, sem nem abrir. Optava por outros e outros. Até que me rendi, "empurrado" pela portuguesa Alexandra Lucas, falando maravilhas do cara no seu "Vai, Brasil" - além de ter trombado com uma enxurrada de escritores metidos a besta babando o livro. Não à toa, nada do que Moraes escreve presta. No pior dos sentidos. "Tem dia que de noite é foda." A frase vem antes do início, encimando a folha de rosto, na minha já amarelada edição de 2008. Se apresenta o personagem, o Narrador. O livro é escrito em primeira pessoa por um tal de Zé Carlos, que, acaso dos acasos, vende o mesmo peixe que eu (o peixe que eu vendia, né, porque baixei o toldo, encostei a porta e só pesco por encomenda). Publicitário - e ainda encaixa que eu sou mó cu-de-ferro, que nem o Zuba, dedurado pelo Narrador. "O Zuba prefere perder uma bola do saco a furar o deadline acertado com o cliente." Pois o Zuba passou um job pra produtora do Zé Carlos - ou seja, para o próprio, doravante denominado Zeca -, a quem cabe montar um roteirinho básico prum vídeo institucional de embutidos de frango da Granja Itaquerambu. Esta singeleza seria o mote do livro, se o mote do livro fosse outro que não a dura rotina de comer uma vagaba atrás da outra, como sintetiza o Zeca. "A alma, como se sabe, é um organismo arcaico com três órgãos: miolos, estômago e genitália." Os miolos ele não tem vocação para empregá-los na labuta. Sobre a tal, cita Rimbaud: "J'ai horreur de tous les métiers." Reclama do profissional de atendimento do cliente ("fico dois, três meses sem pegar um job, e quando volto à ativa já não entendo metade do que esses caras falam, tão rápido se renova a porra do marquetês"), mas a única coisa que ele quer, além da mulherada que ele logo vai enfileirar - com uma performance que nem um coquetel megaturbinado de viagra seria capaz de sustentar - é cheirar carreiras em sequência. Em qualquer das páginas numa eterna fissura, está invariavelmente atrás da dita cuja, em incursões urbanas ou aguardando a entrega em domicílio - nem sempre de forma discreta. "Traficante que buzina na porta do cliente é o fim da picada." Era o Miro (que, pela partida súbita, iria protagonizar com sua encorpada ausência o terço final da obra), de quem ele se queixava à vera, não poupando sequer a mulher. "Madame Miro devia estar manobrando umas pirocas na rua pra sustentar o salafra." Pensava, mas não dizia, porque o sujeito estava sempre armado. Pior é que apresentava um pó malhado, que era o que o Zeca podia pagar, na sempiterna pindaíba. Um saldo tipicamente de publicitário, embora isso de profissional da propaganda tenha sido uma puxada de sardinha. Ele mesmo se intitulava cineasta. Um pôster com uma pilha de crânios cambojanos enfeitava a sua porta: "KHMER VideoFilmes - uma produtora, muitas cabeças". Na prática, rodava filme pornô. Pois o priápico personagem-diretor vai narrando de forma contínua suas relações carnais com meia São Paulo, levando o sujeito-leitor a rir como um retardado, o que é péssimo, pois as pessoas olham para o sujeito rindo, vêem que ele está lendo, dão um close na capa do livro - com "Pornopopéia" em letras garrafais - e retorcem um muxôxo de desaprovação, como se você fosse um tarado gorgolejando lascivamente no metrô. E nem sempre o que provoca o riso é a deslavada putaria, embora há vezes que sim, sim. Ressalvando que, de acordo com a minha vasta prole, eu rio de muita coisa sem graça - mas "o assento ainda guardava o calor da bunda autêntica da falsa loira", "um vento encanado de congelar cu de pinguim" e  "a mulherada tá mandando vê hoje em dia, elas cheiram, ficam muito loucas e querem ser comidas dez vezes seguidas, e não necessariamente pelo mesmo cara nem pelo mesmo orifício" me faziam rir sozinho. Talvez eu seja só meio abobado. É que as desventuras do Zeca, participante entusiasmado de eventos carnais São Paulo adentro ("Decididamente, aquele dedo no meu cu não estava no roteiro. Mas suruba é assim mesmo."), eram um pouco além da medida para o meu convencionalismo burguês. E nem tudo era piada. Como todo machista inveterado, o escroto Zeca era avesso aos sentimentalismos. "Invoco com mulher que chora depois de gozar. A coisa descamba pro patético, fica tudo intenso demais, estraga a sacanagem." Depois de uma primeira metade urbana, o Narrador se escafede rumo ao litoral, onde não parou de comer as demais personagens gostosas, de variadas idades, dos 20 aos 60. Enfurnado numa aldeia praiana, catava como ninguém a prosódia das minhocas da terra. Buscando uma beijoca da guria da barraca, ela, tentando segurar os arfe, beija-não-beija, ainda caçoou: "Depois, quem leva fama de vaca cerquêra sou eu". Só não pense você que esta profusão de brejeirices, putarias e que tais é no improviso, uma tiração desprovida de técnica. É o que mais tem. É a placa do circuito integrado. A gente só vê os pixels, as sacanagens, mas o safado, ops, o venerando autor tem tudo sob o mais rigoroso controle. Inclusive a impossível veracidade do relato é fingida crível por um recurso do argumento. Nele, o Narrador tem por interlocutor o Leitor Primeiro, que, por sua vez, é o Autor. É este quem vai hipoteticamente receber a resma de laudas computadorizadas, com todos os casos aqui relacionados e oitocentos outros, para editar, publicar e virar cult. O recurso é o seguinte: o Zeca escreve o texto no seu note, um HP, parceiro inseparável que o acompanha até o seu paradeiro final (no caso, a pousada "Paraty-Amar", que ele, em vias de ser passado nos cobres, rebatiza de "Paramy-Fuder"), e o envia para o heróico Leitor. Em meio às reminiscências, flashbacks, confissões e hai-kais, ele conversa com o receptador anônimo que abrirá o texto, sacanamente antecipando o grand finale: "Acho que não vou esperar pelo epílogo dessa história pra te passar o arquivão. Pensando bem, a história pode muito bem acabar aqui. O personagem sai do palco antes que se cumpra o seu destino, feito um herói trágico que dorme até mais tarde na cama duma hetaira gostosa, acorda de ressaca de hidromel, dá uma mijada, uma cagada, toma um jarro dágua, chuta o cachorro, come a bunda da hetaira e embarca de novo no sono lembrando vagamente que tinha uma porra qualquer pra fazer". Após a apoteótica digressão, ele orienta o Leitor missionário: "Então, cumpadre, presta atenção. Você vai receber esse arquivão logo mais, certo? Vou mandar pro imeio da tua editora, que eu tenho aqui. Se tu não me conhece, dá um Google que vai aparecer alguma coisa sobre mim e o meu filme (...). O que eu gostaria que você fizesse é o seguinte, se não ouvir mais falar da minha pessoa nos próximos seis meses, ou se bater nos teus ouvidos a notícia de que fui em cana ou abotoei o paletó de madeira. E o seguinte é o seguinte: leia isso tudo de cabo a rabo (e olha que não falta rabo aqui, hahahá...), dê uma boa guaribada no texto, e pense num jeito de publicar o negócio. Em livro, de preferência. (...) Mas ó: NÃO BOTE O MEU NOME NESSA PORRA! Invente um pseudônimo. Ou tasque seu próprio nome, se quiser." Mas isso foi na altura de dois terços do livro, ainda tinha umas mulher pro Zeca comer antes de entregar os pontos, ou seja, as laudas (entre as donas comidas, ele incluiu uma lula - morta, para sorte desta -, numa homenagem gosmenta ao fígado do protagonista judeu de "O complexo de Portnoy"). Bem, nos mantendo no reino animal, mas lula fora, sabe a vaca cerquêra que algumas linhas acima se auto-denominava? Pois ela se chamava Josilene, ou melhor, Jôsi, e foi ao redor (e dentro) de quem a trama ganhou seu fim sorumbático-divinal, com o presumido passamento do Narrador, ostensivamente im(ex)plícito. Se no Blade Runner original aquele cavalo branco cruzando a tela era o enigma da coisa, aqui os três (ou quatro) Corsas pretos passando são o atestado de óbito do Zeca, que dá um couro no Macunaíma. Se você gosta de rir, de um puta texto e de mulher (foda-se a ordem), não ler é um desperdício de alfabetização. A capa é uma merda e o livro é ótimo. 

Editora Objetiva, 475 páginas

P.S.: Também não faço a menor ideia de que capa iria bem com esse livro. Sem contar que, como dá pra ver na foto, combina com a bagunça do quarto-de-empregada-que-jamais-teve-uma, mas que tem de livro (centenas) a pepino acridoce em rodela (atrás da anchova marinada). Então, parceiro, tá perdoado.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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