"Petrobras, uma história de orgulho e vergonha", por Roberta Paduan

segunda-feira, dezembro 14, 2020 Sidney Puterman


Embora os números estratosféricos nos levem a crer tenha sido a maior malversação de recursos da história do Brasil, foi, na execução pueril, um reles crime doméstico. No big deal. Alguns diretores com poder, uma presidência da companhia conivente, comparsas habilidosos e presidentes da nação distraídos - que cortavam faixas e olhavam para o outro lado na hora em que empurravam o vigia ao mar. Tão simples, na condução cotidiana, que nem se deram ao trabalho de esconder as pistas. A partir do instante, porém, em que se puxou o fio da meada, os rastros estavam evidentes - como pegadas sujas de petróleo em uma grande plataforma imaculada. Agiram como se não houvesse amanhã, como se pensassem que ninguém jamais iria se importar com o flagrante do batom na cueca. Ledo engano. Não só os policiais e procuradores se importaram, como uma significativa parte dos responsáveis foi julgada, condenada e presa. Foram também obrigados a devolver parte do que desviaram. "Petrobras: uma história de orgulho e vergonha" conta esta história. Nos túneis abertos pela investigação, o livro esmiúça os maiores golpes aplicados. Revela os organogramas e percorre o caminho do dinheiro. Destrincha as relações internas. Disseca as licitações. Discrimina as etapas e o valor de cada projeto, cada aditivo e cada pagamento de propina, confessados no âmago de delações que reduziram as penas e encurralaram participantes ocultos. Mesmo com tudo o que já sabíamos pelo noticiário, os valores embolsados e a natureza dos personagens surpreende. Não é segredo para ninguém as cifras dos casos de corrupção envolvendo a Petrobras durante o governo petista. Sua descoberta foi o início do fim para o partido e também o pântano onde germinou o movimento bolsonarista (falsamente antagônico na sua cruzada de araque contra a corrupção). A Petrobras foi condenada nos Estados Unidos a uma multa de quase 2 bilhões de dólares pelos danos causados aos acionistas. No Brasil, um dos gerentes envolvidos na tramoia devolveu, no acordo de delação, R$ 97 milhões. Este valor é somente a fração incontroversa do que Pedro Barusco teria desviado. E, pasme, Barusco era apenas um dos funcionários subordinados ao primeiro escalão da empresa. Estes é que ficavam com a parte do leão. O livro de estreia da jornalista Roberta Paduan traz em minúcias os resultados da operação Lava Jato dentro da Petrobras, que flagrou crimes de dez dígitos. Este desvio bilionário do caixa da companhia inspirou o título escandaloso, que narra uma estória que oscila entre orgulho e vergonha. O livro vai aos primórdios da estatal e acompanha seu crescimento. Sua transformação em uma das maiores companhias do mundo no setor. E, como consequência, a gula que despertavam seus números astronômicos. A pesquisa recupera malfeitos antigos e presidentes corruptos de outras eras. Passa pelos governos militares e pelo período Sarney, quando aconteceu o primeiro grande escândalo de corrupção dentro da Petrobras. Se valendo das altas taxas de rendimento de uma aplicação conhecida como overnight (só possível em tempos de inflação obscena, ela proporcionava ganhos de 1% em uma única noite, daí o nome), um grupo de funcionários da BR Distribuidora, em conluio com uma rede de pequenos bancos, fraudava datas de recebimento para abocanhar parte do rendimento proporcionado pelo valor aplicado no vácuo entre a entrada real do dinheiro no banco e seu lançamento na conta-corrente da empresa. O jornal O Estado de São Paulo denunciou e a diretoria da BR foi demitida. O presidente da BR, general Albérico Barroso Alves, foi acusado de estar por trás do esquema, mas José Sarney teria se recusado a demiti-lo, quando então cunhou a frase "eu não demito amigos" (eis aqui o protótipo do homem cordial de Sérgio Buarque de Hollanda). Não obstante, aceitou a demissão do general, que dali foi ocupar a presidência da subsidiária de fertilizantes. Com a eleição do caçador de marajás, Fernando Collor, a escalada da corrupção se tornou mais agressiva. O primeiro presidente indicado, Luiz Octavio da Motta Veiga, não tolerou sete meses: se demitiu e saiu atirando. Denunciou as tentativas de Paulo César Farias (que dois anos depois seria um dos estopins do impeachment de Collor) de forçar a Petrobras a emprestar 40 milhões de dólares ao dono da Vasp, Wagner Canhedo, que já há tempos rolava uma dívida de 6 milhões com a companhia. O pleito era dar ao mau pagador um empréstimo sete vezes maior que o ora devido, sem juros e para quitação em dez anos. Diante da proposta indecorosa, Veiga resistiu ao assédio de PC e à pressão do cunhado de Collor, Marcos Coimbra. Saiu do governo, denunciou a tentativa na mídia e melou de vez o negócio. A narrativa se estende pelos pormenores da longa gestão de Joel Rennó (mais longevo que ele no cargo, somente José Gabrielli), que iniciou sua gestão no começo do governo Itamar Franco e permaneceu durante todo o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. Apesar de controverso (após ter feito carreira na Petrobras, de onde saiu sob suspeita, devido a uma contratação questionada de US$ 1 bilhão em serviços de empreiteiras), com uma passagem nebulosa pela Interoil, prestadora de serviço que conseguiu reunir, em uma mesma lista de pagamentos escusos, caciques do governo Collor e José Dirceu, Rennó era um político hábil (e vaidoso das suas pretensões literárias, como eu mesmo testemunhei, no JB). O principal escândalo da sua gestão foi a Marítima Petróleo e Engenharia, de German Efromovich, que, a partir de 1996, ganhou contratos que superaram US$ 2 bilhões, na maior parte das vezes assumindo operações que não tinha estrutura ou experiência para conduzir - mas repassando a quem tinha e mordendo uma gorda parte do pagamento. A incapacidade técnica levou fornecedor e Petrobras a um litígio, três anos depois, que custou caro para a companhia. Rennó, desgastado, se demitira meses antes, após oito anos e meio no cargo. A rescisão com a Marítima se deu já na presidência do francês Henri Phillipe Reichstul, que aplicou na Petrobras aquilo que hoje chamamos "choque de gestão". Apesar de competente e bem intencionado, e ostensivamente avesso à política - gerando problemas internos no próprio PSDB, partido do presidente Fernando Henrique, que fora quem conduziu Reichstul ao posto -, o francês foi vitimado por graves acidentes ocorridos durante o seu período na presidência. Não obstante, as modificações que ele implementou conduziram a empresa a um novo estágio de competitividade. Embora o já relatado comprove largamente que sempre houve aproveitadores de ocasião rondando os cofres da empresa, a sanha cupinzeira que aportou na madeira de lei da maior empresa do Brasil teve início na gestão petista - que já avisava, ainda na campanha para a presidência da República, que seus planos para a Petrobras eram outros. Ninguém pode acusar os petistas de terem sido lentos no aparelhamento da companhia. Pularam na jugular assim assumiram o governo. E a pesquisa de Paduan foi particularmente reveladora. E cirúrgica. Embora revolva as vísceras da empresa e relacione dezenas de atos criminosos ocorridos dentro da estatal, o esmerado livro-reportagem se deteve mais profundamente em quatro grandes projetos milionários de desvio de dinheiro: o Gasoduto Urucu-Manaus, a Refinaria de Pasadena, a Sete Brasil e a Refinaria Abreu e Lima. Ainda que esta última também tenha seu protagonismo - mais que merecido, ela que sangrou a nação em mais de R$ 20 bilhões de reais -, sua operação tem menor destrinchamento que as três primeiras. Mas nem neste caso, nem em nenhum outro, o leitor, seja ele isento ou tendencioso,  poderá reclamar da ausência de detalhes bem-fundamentados neste inestimável livro de Roberta Paduan. Que obra de entrada da jornalista. Ela, já no primeiro capítulo, faz a biópsia do assalto coordenado pelo governo do PT, em associação adúltera com o PMDB e adornado com a participação muito bem remunerada do PP e de outros partidos nanicos - mas nem por isso menos gulosos. A abordagem técnica da autora me causou deveras boa impressão. Já li outras boas obras que mergulham no mesmo esgoto, como "Lava Jato", de Vladimir Netto, e "O Príncipe", de Marcelo Cabral e Regiane Oliveira, ambas resenhadas aqui no blog. Mas nenhuma delas esmiuça como se deu o roubo sistemático da companhia de forma tão meticulosa como faz a jornalista. Convido aqui os defensores ideológicos do assalto para no singelo livro se familiarizarem com os nomes, contratos e esquemas que transferiram os bilionários recursos da Petrobras para a conta particular da quadrilha de corruptos. Roberta dá o nome de políticos, funcionários públicos, empresários e meliantes profissionais, o que fizeram, quando fizeram e para que conta transferiram o dinheiro roubado. Chega a ser vexaminoso (caso alguém aqui tivesse vergonha de ser pego roubando). É o teste de DNA de um estupro que fatiou cada setor da empresa em nanoquadrilhas de ataque a um mesmo cofre. As digitais estão lá - o dinheiro foi para a conta dos corruptos e os chefes se mantêm em negação. O país parece fadado a esta sina. Isto posto,  vamos ao varejo da obra. Paduan nos capítulos seguintes nos conta um pouco da fundação da empresa e da carência do país em encontrar uma fonte de energia petrolífera que reduzisse sua dependência dos grandes produtores. Após os prolegômenos, a autora nos oferece um descritivo suculento no décimo capítulo (e que conta muito do que a empresa viria a se tornar): a eleição de Lula e a chegada do PT ao governo em 2003. A autora nos recorda os partidos que integravam a base de Lula no segundo turno da eleição de 2002. À esquerda, PCB, PCdoB, PSB, PPS, PV e PDT. À direita, PL, PGT, PMN, PSDC, PTB e alguns setores do PPB (atual PP), encabeçados por Paulo Maluf e José Janene, além do clã Sarney. Com a eleição do ex-sindicalista confirmada por um esperançoso povo brasileiro, Paduan nos relata o tour-de-force que foi para a direção petista a distribuição dos cargos públicos para acomodar tantos apoiadores. Eram, à época, 22.000 cargos federais passíveis de nomeação em todos os estados da federação (ao longo dos anos seguintes, os governos Lula e Dilma elevaram esse passivo para 30.000 cargos públicos). O primeiro escalão ficou à cargo de Lula e de José Dirceu (que dois meses depois desabafou: "Nunca mais quero participar da montagem de um governo") e os segundo e terceiro escalões ficaram a cargo de Silvio Pereira, o Silvinho, que - os mais jovens certamente desconhecem o sujeito e o fato - ganhou fama há 15 anos pela Land Rover recebida "de presente" (o generoso mimo proporcionou apelidá-lo de Silvinho Land Rover). Mas isto foi depois. No momento da montagem, Silvinho, fundador do partido e que havia sido o gerente operacional de todas as campanhas políticas de Lula, era o dono da primeira sede do partido em Osasco, que funcionava nos fundos da sua lanchonete "Cebolinha". O petista João Paulo Cunha, que anos depois chegou à presidência da Câmara e foi preso por pagar uma conta particular com dinheiro de suborno rastreado, elogiava o envolvimento de Silvinho: "Ele passava o dia vendendo cachaça e quibe no balcão do bar e de olho no que acontecia no partido". Com o amigo eleito, Silvinho queria ser presidente dos Correios, mas não conseguiu o emprego (enquanto Delúbio queria ser presidente do BNDES, emprego também negado por Lula, que alegou que Delúbio queria "um cargo maior que ele", enfurecendo o companheiro). Ao invés disso, foi encarregado da criação de um cadastro geral de filiados ao partido (com e-mail e telefone de mais de 400.000 petistas) e de um portal na internet denominado SGI (Sistema Geral de Indicações), onde recebia currículos de candidatos a participar do governo. Na ficha, um campo de preenchimento obrigatório era o nome do padrinho político do candidato, um petista de alto coturno que desse peso à contratação. Este foi o processo sui generis pelo qual dezenas de cargos públicos do país foram preenchidos a partir de 2003 - incluindo a maior das empresas estatais, a Petrobras. Silvio Pereira, auxiliado por um amigo particular do ministro da Casa Civil, José Dirceu (o advogado Fernando Antonio Guimarães Hornaeux de Moura), foi também quem decidiu os nomes que passariam a integrar os disputados cargos da companhia. Foi o mimo que viria a apelidá-lo, dado pela empreiteira GDK, que complicou Silvinho no caso do Mensalão: o Land Rover presenteado a ele pela prestadora de serviço da estatal não cabia nem no seu salário de dirigente petista, nem nos proventos que recebia do botequim. Condenado por corrupção, o arquivo vivo da maior negociação de cargos do país teve a pena convertida em trabalhos comunitários (aos quais não comparecia, como denunciado pela imprensa) e voltou a vender seus quibes. Já a Petrobras foi alvo da partilha do novo ocupante do poder: Francisco Gros passou a presidência a um político inexpressivo, José Eduardo Dutra, ex-senador do PT por Sergipe, derrotado na eleição de 2002 e desempregado. Como o próprio Dutra candidamente afirmara ao Projeto Memória Petrobras, rodado em 2003, "eu nunca havia tido um cargo executivo. Eu nunca tinha sido presidente de uma empresa". Dutra havia participado da fundação do sindicatos dos mineiros de Sergipe e do sindicalismo fez a migração,  fisiologicamente natural, para a política. Cinco das seis diretorias-executivas da Petrobras foram substituidas por Dutra, e sua composição já antecipava o noticiário de uma década e meia à frente. Para a área de Exploração e Produção veio Guilherme Estrella, ex-funcionário da Petrobras e então responsável pela direção do PT de Nova Friburgo (seu discurso era nacionalista e recriminava a priorização do lucro: "Petróleo não é uma comodity, mas um bem estratégico e nacional"). Para a área de Gás e Energia veio o especialista em planejamento energético Ildo Sauer, com bagagem acadêmica relevante, mas sem experiência executiva. Comunista "de carteirinha" e firme nas suas convicções, não aceitou as práticas petistas de condução da companhia e acabou demitido em 2007. Para a diretoria financeira veio o fundador do PT baiano, José Sergio Gabrielli, membro auto-exilado da Ação Popular Marxista-Leninista e também sem experiência executiva. A área de serviços coube a Renato de Souza Duque, funcionário de carreira da empresa, mas distante dos níveis de direção (funcionários compararam a promoção de Duque à ginasta Daiane dos Santos: "Salto digno de medalha de ouro, um duplo twist carpado"). Muitos anos depois, soube-se que Silvinho Pereira entrevistara Duque, no Sofitel da Vila Mariana, a pedido de Moura e já com o valioso aval de José Dirceu - Duque e o Zé eram unidos pela pequena cidade mineira de Passa-Quatro, berço natal de Dirceu, da sua então esposa, Evanise, e também da esposa de Duque, que era natural de Cruzeiro, a 30km. Ê família, ê interiorzão. O já citado Sauer, diretor de Gás e Energia, era um quadro ideológico, mas extremamente reto no que dizia respeito à saúde da empresa. Um perfil inverso ao das diretorias de Serviços e de Negócios, sem histórico ideológico-partidário, mas com alto grau de descompromisso com a eficiência da companhia. Um exemplo de operação interna que bem demonstra esta dissociação de interesses foi o Campo de Urucu, na Amazônia. O foco destas duas diretorias estava em atender os interesses escusos do governo, que era o desvio de recursos. Vamos sair um pouco do genérico e focar nesta ação específica, para que o leitor possa avaliar o que foi feito e como o livro de Paduan o descreve (relato agora um resumido passo-a-passo de um dos golpes; o leitor impaciente pode saltar para março de 2014, quando jogaram poeira no ventilador). A implantação do Gasoduto Urucu-Manaus, em 2004, segundo ano do PT no poder, demandaria um alto investimento. A diretoria de Gás e Energia queria acompanhar o trabalho das empreiteiras na construção do gasoduto, para observar o cumprimento de prazos e evitar estouro de orçamento. O diretor de Serviços, Renato Duque, se opunha. Com isso, cada obra em andamento era alvo de embate entre as duas diretorias. A de Gás e Energia fiscalizando as empreiteiras e as empreiteiras solicitando aditivos - não recomendados pela área de G&E, mas autorizados pela área de Serviços, por Duque e seu auxiliar direto, Pedro Barusco. Quando a diretoria de Gás e Energia elaborou a planilha para balizar a concorrência do Gasoduto Urucu-Manaus, estipulou, como praxe, os valores mínimos e máximos que a Petrobras aceitaria pagar. A diretoria de Serviços fez a licitação, do qual somente participaram quatro empresas - Odebrecht, GDK e mais duas -, as quais, ainda assim, somente se candidataram a um dos trechos, abrindo mão dos outros dois que compunham a licitação. Pior: o valor apresentado para execução do trecho (R$ 666 milhões) era mais do que o dobro do máximo admitido pela Petrobras na planilha (R$ 293 milhões). A diretoria de Gás e Energia rejeitou a concorrência e pediu que a diretoria de Serviços realizasse uma nova licitação, aberta a mais empresas. Desta vez, catorze empresas participaram, mas os preços mínimos foram ainda mais elevados. Tudo levava a crer em uma ação orquestrada por parte das empresas, pois era notória a necessidade da Petrobras em concluir o gasoduto. Procurando alternativas, a diretoria de Gás e Energia chamou duas empresas argentinas, e depois sugeriu uma licitação internacional, visando a redução do preço. Duque e Barusco se opuseram: uma licitação internacional tomaria muito tempo e não fortaleceria as empresas nacionais. De nada valeu a argumentação de que o objetivo não era que as estrangeiras fizessem o serviço, e sim que sua presença levasse à uma adequação do preço a valores reais. A proposta foi novamente rejeitada. Gás e Energia propôs então que o Exército realizasse parte do trabalho, reduzindo o valor da despesa com as empreiteiras (o Exército já participara de outras obras do gênero na Amazônia). O Comando Militar da Amazônia e o comandante do Exército, general Enzo Peri, se mostraram interessados. Ildo Sauer levou a proposta ao presidente da Petrobras, José Sergio Gabrielli, que, por sua vez, a levou ao presidente da República, Lula. Afinal, seria uma parceria entre o Ministério das Minas e Energia e o da Defesa. Lula respondeu à Sauer via Gabrielli: "Pode esquecer essa estória com o Exército". Lula completou: "É concorrência desleal com as empreiteiras". Diante disso, voltou-se à exclusividade das empreiteiras. Em uma reunião com diversas diretorias, Gás e Energia se manteve defendendo a internacionalização da concorrência, Serviços exigindo restringir a obra às empresas locais. Presentes, os diretores de Abastecimento, Paulo Roberto Costa (o executivo que seria o ponto de partida para o novelo da Lava Jato), e da área Internacional, Nestor Cerveró, pediram a palavra para apoiar a posição de Renato Duque, que venceu. Ficou decidido que a licitação seria exclusivamente direcionada às empresas nacionais. O secretário geral da presidência da Petrobras, Hélio Fukijawa, procurou Rafael Frazão, da diretoria de Gás e Energia, para que ele retirasse as duas recomendações por escrito que fizera na abertura da reunião: a de cancelamento da licitação por preço excessivo e da realização do certame com abrangência internacional. Frazão se recusou a retirar o documento. Fukijawa o alertou que aquilo seria uma afronta. Dias depois, Gabrielli afastou Frazão da gerência que ocupava e o deixou sem função na empresa. Os valores máximos que a Petrobras se propunha a pagar pela obra subiram para o valor exigido pelas empreiteiras. Em 1o de junho de 2006, Lula foi à Manaus com a ministra das Minas e Energia, Dilma Rousseff, para a inauguração do gasoduto. O valor do primeiro trecho da obra ficou em R$ 780 milhões, com a Petrobras projetando um custo final de R$ 1,4 bilhão. Quando a obra terminou, a conta paga pela Petrobras às empreiteiras foi de R$ 2,4 bilhões. Ildo Sauer foi afastado e a diretoria foi entregue a Graça Forster, que, embora estivesse funcionalmente alguns níveis abaixo do cargo e não tivesse experiência para a função, era pessoa de confiança da ministra Dilma. O engenheiro Gézio Rangel de Andrade, desde o início responsável pela implantação do gasoduto Urucu-Manaus, e que comandara a construção de gasodutos de longa distância e de redes de distribuição de gás em diversas regiões do país, também foi afastado. Gézio integrava o grupo de Frazão - ou seja, contra a multiplicação sem embasamento técnico do valor da obra - e, ainda que à distância, permaneceu acompanhando o andamento da construção. Apreensivo com os aditivos que já dobravam o valor anteriormente combinado, enviou em 27 de fevereiro de 2008 um resumo da obra para o gerente executivo de Gás e Energia Alexandre Penna Rodrigues, e em seguida alertou-o que "com a realização de apenas 60% da obra e que deveria estar terminando agora em março, estão reivindicando novo prazo e novo aditivo, pasme, da ordem de R$ 400 milhões. O valor do contrato original do trecho A é R$ 340 milhões. O Aditivo I, que motivou minha saída, foi próximo a R$ 50 milhões, e tinha sido justificado para manter o término em março de 2008. (...) Toda a economia inicialmente esperada de quase R$ 1 bilhão ao ano na CCC (Conta Consumo de Combustível, contribuição cobrada na conta de luz de consumidores do país inteiro para subsidiar a energia de parte da região Norte do país) vai ser consumida no custo das obras". Em vão. As obras para construção do Gasoduto Urucu-Manaus, que, tendo partido de uma estimava inicial dos estudiosos da Petrobras de um valor máximo de R$ 296 milhões, e que antes já tinha chegado a inacreditáveis R$ 2,4 bilhões, como mencionei acima, agora batiam em estratosféricos R$ 4,5 bilhões. Só o trecho A teve 19 aditivos. O gasoduto foi inaugurado em novembro de 2009 e se revelou um total desperdício de dinheiro público. Encostado pela empresa e recebendo menos da metade do seu salário quando na função de comando que ocupava, Gézio continuou encaminhando e-mails denunciando malversação de recursos. Foi advertido pela diretora Graça Forster para que não lhe encaminhasse mais nenhum e-mail, sob pena de demissão. Em depressão, Gézio morreu em junho de 2012, por um súbito problema cardíaco. Não obstante, teve sua memória resgatada post-mortem, em março de 2014, quando seus e-mails denunciadores (chamados internamente de "pombos sem asa") vieram à público no Jornal Nacional, já no desenrolar inicial da Lava Jato (ainda desconhecida da população). A família de Gézio recebeu dezenas de telefonemas em homenagem à sua postura ética. Em novembro de 2014, o ex-gerente executivo da Petrobrás, Pedro Barusco, pego pela Lava-Jato, fez acordo de colaboração premiada com a Polícia Federal e o Ministério Público. Entregou planilhas detalhadas, onde o Gasoduto Urucu-Manaus aparece três vezes. Nos R$ 666 milhões pagos à Andrade Gutierrez e à Carioca Engenharia, há a anotação de propina de 1%, metade para o partido (PT) e metade para a casa (Barusco e Duque). A Camargo Correa, que recebeu R$ 427 milhões, declarou ter pago à Duque e Barusco R$ 2 milhões em propina, pelo contrato do gasoduto. A parte do PT fora entregue a João Vaccari, o Moch (apelido dado por conta da mochila em que recolhia os pacos de notas da propina), hoje reverenciado pela cúpula petista por ter permanecido preso, por longos 3 anos, sem dar com a língua nos dentes. Ainda na delação de Barusco há a propina destinada pela OAS, de 1% sobre o valor de R$ 342 milhões, paga diretamente ao PT. José Aldemário Pinheiro Filho, vulgo Léo Pinheiro, presidente da OAS, era o empreiteiro mais próximo do ex-presidente Lula, e foi quem gerenciou as obras do sítio de Atibaia, feitas em consórcio entre OAS e Odebrecht. Pinheiro foi também flagrado com Lula nas obras de reforma do triplex do Guarujá, fotografados pelo porteiro do prédio, com o próprio celular - uma prova que teve peso na condenação do petista. Pinheiro confessou que o triplex teria sido pagamento à Lula, que nega. O ex-presidente até hoje se diz decepcionado com a delação do ex-amigo. Uma outra operação meticulosamente desembrulhada por Paduan é a malfadada compra da refinaria de Pasadena. Uma falcatrua com uma linha do tempo bem documentada e com um prontuário repleto de impressões digitais (Dilma Rousseff logrou esvanecer a sua). Por uma carrada de razões, uma das mais vergonhosas armações em que a Petrobras se envolveu - uma pantomima de embrulhar o estômago mais resistente. Mas esta eu não vou escarafunchar aqui não: convido o leitor curioso a adquirir o belo trabalho de Paduan e conhecer a fundo a que ponto desceu a maior empresa da história dessepaiz. A debulhar os meandros de uma investigação que levou a Lava Jato aos holofotes e desnudou o enriquecimento ilícito de dezenas de indivíduos. A biografada, a Petrobras, a joia da coroa, foi palco e refém. O atentado contra a empresa a derrubou de um patamar que lhe custou décadas para atingir. A companhia, vítima da ação sistemática dos ocupantes do governo, teve seus estupradores desmascarados pela força-tarefa da Lava-Jato e apresentados ao público brasileiro em coletivas de imprensa espetaculosas. Não restou à mídia profissional nenhuma outra alternativa senão publicar e veicular. Os defensores do governo, na impossibilidade de negar a mensagem, satanizaram o mensageiro. A principal emissora do país (que, nos anos 60, se valera de relações espúrias com a ditadura para crescer) passou a ser chamada de "lixo" e de "golpista" pela estrutura partidária ligada aos acusados. A opinião da sociedade foi convocada à uma divisão pouco sutil, em duas fatias adversárias uma da outra, e o brasileiro aceitou o convite para integrar as claques. A política de negação do envolvimento nos crimes de corrupção se tornou um brado de guerra e ofereceu um discurso de inocência para a militância ignorante - mas não foi suficiente para convencer a outra metade da população. Desculpas esfarrapadas dos políticos flagrados se locupletando são sempre pouco convincentes. A conta foi eleitoral e chegou para o partido nas eleições de 2016. A apuração dos votos revelou que o PT despencou das mais de 600 prefeituras no país para menos de 300. Logo após, julgado por ser beneficiário oculto dos crimes, o até então intocável ex-presidente Lula foi condenado e preso. Em 2018 a revolta popular contra o PT (sentimento cultivado pela população que se julgou enganada pelo governo) propiciou o surgimento de políticos que catalisavam este sentimento - Jair Bolsonaro foi o principal deles. Com uma vitória acachapante no segundo turno contra um fraco candidato petista (um pedante ex-prefeito que sequer havia chegado ao segundo turno na sua tentativa de reeleição), o ex-militar boquirroto ocupou a presidência para por em prática um dos governos mais temerários que a América Latina já viu. Com uma conduta errática e biliosa, o novo presidente se tornou o inimigo número 1 do país - cujos cidadãos ataca diariamente desde então. Em reverberações ainda oriundas da implosão da Petrobras, nas eleições de 2020 a conta dos desvios continuou a ser cobrada ao Partido dos Trabalhadores. Das 256 prefeituras que lhe restaram na última derrota, o partido desidratou para 181, menos de 30% do que detinha oito anos antes. Monocórdio e reativo, o PT perdeu a hegemonia dos demais partidos de esquerda - até então burocráticas entidades satélites, com fantasias próprias mas desfilando no andamento da bateria petista. Hoje, dezembro de 2020, com o quarentão PT associado à ideia de desonestidade e corrupção, o país vive um vácuo ideológico. O proprietário exclusivo da legenda, Lula, livre, é uma pálida sombra do que foi. Perdeu o toque de Midas político e vem acumulando apostas erradas e decisões estapafúrdias. Seu interesse ignora sistematicamente os interesses do partido, na luta por absolvições técnicas que validem sua nova candidatura (já não é mais quem foi, mas falta no partido quem diga isto a ele). A Petrobras também perdeu sua aura, mas não o tamanho colossal. A petroleira, associada a um abecedário de fraudes, implementa novas estratégias de compliance na tentativa de reocupar o espaço perdido. Embora o orgulho ande fora de pauta, a vergonha é um sentimento parcialmente superado, com a reação da companhia em 2019. Mas as fraturas e cicatrizes do desmoronamento permanecem, como expõe a reportagem-auditoria assinada por Paduan. É uma leitura que prosseguirá sem prazo de validade, porque nos conduz ao imutável âmago oculto do país. Não esquecendo ainda que o seu pano de fundo, a operação que desencavou estes e outros crimes de desvio de dinheiro público, a Lava Jato, hoje definha. Pena. Moribunda, sucumbiu perante a artilharia político-jurídica de alto galardão. Noves fora minhas expectativas utópicas de um reles classe média, seu esfarelamento é até compreensível, em um país com o currículo do Brasil. Diante da desproporção de forças, espanta mais é que uma investigação desencadeada por um desconhecido juiz curitibano de primeira instância pudesse ter sido tão devastadora. A jornalista Roberta Paduan contou esta história e sua obra revela um divisor de águas profundas na investigação criminal no Brasil.

Editora Objetiva, 390 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: