"Marcoré", por Antonio Olavo Pereira

sexta-feira, dezembro 07, 2018 Sidney Puterman

Um livro incomodoso. Um romance psicológico, passado numa cidadezinha imprecisa do interior paulista. Vidas comezinhas e um cotidiano banal. Descrição de duas décadas de observações triviais e amargas de um ocioso oficial-maior de cartório, sobre os personagens ao seu redor e sua pequena família. Em tempos do politicamente correto, o oposto. Narrado em primeira pessoa, o autor expõe seu juízo crítico sobre os que o cercam e confessa as suas atitudes humanamente egoístas. Seu núcleo familiar é pequeno e descompensado: ele e a esposa moram com o casal de sogros, dos quais é empregado no cartório. Seu casamento de dez anos é estéril. A sogra lhe é hostil. Fora dali, a mãe lhe é azeda. A ausência de um filho traz apatia ao rame-rame da sua vida, até que a súbita notícia da sua chegada lhe deixa cético sobre se o rebento temporão traria alegria ou desconforto. O autor é garimpeiro das palavras. Traz na bateia a cada página meia dúzia de pepitas. Na contagem total, são centenas, quiça milhares. Brejaúva, monjolo, gabiroba, mamangavas, bacupari, canjarana, sapucaia, sequilho, escaveirada, sabulho, sarilho, sanhaço, gata seca, cafarnaum, currilho, desoras, cumeadas, esparolada, curiango, marosca, um palavreado garboso. Mas o livro não é feito só de sabores sonoros. É recheado com um amargor cheio de minúcias, que o oficial-maior vai derramando no seu diário. As vidas vão se passando em lento torvelinho e ele tudo observa, dá nome, critica, confessa, expobra, se expõe. A erudita resenha de Antônio Houaiss no fim do livro elogia a madeira da obra e julga descabida a única quebra de monotonia de toda a história, a passagem órfã de mesmice e verossimilhança (te prepara que vai ter spoiler): o inusitado voto de castidade pós-parto de Sílvia. Tudo o mais no livro é banal, comezinho, cotidiano. Esta Silvia obstinada na renúncia ao sexo remete a Nelson Rodrigues - casta, beata, de uma fraqueza doentia. Houaiss citara a todos, de Machado a Graciliano, para explicar Antonio Olavo, mas ignorou Nelson. Já eu volto a Machado, à sua Capitu, para jogar uma sombra em Silvia, suspeita que ninguém teve: naquele casamento infértil, que súbito ganha um bebê já no seu declínio, não teria sido em sacrifício que Silvia se entregara a outrem, e depois recusara o próprio marido, casta que era, mas autocondenando o extremo a que fora, para iluminar a casa com um rebento? E (larga a resenha que lá vem o spoiler definitivo, o mata-livro) o abandono de Marcoré, nas páginas derradeiras, não renega o pai e reafirma que ele não o era? Não fora ele viver com o doutor parteiro, de quem o próprio autor se enciumava, de muito tempo? Bem, esta minha tese ousada e sacrílega não há quem esteja vivo para confirmar. O livro é de 1957 e eu teço caraminholas em 2018. Além deste conteúdo provocativo, uma linda capa. Mas enigmática. Quem é a mulher, surpreendida na beira da cama? Alheia ou pensativa? A cama e as coxas expostas, com o vestido-camisola arregaçado, denunciam a intenção sensual. Mas, por quê? As duas mulheres da vida do personagem narrador são a esposa, Silvia, e a amante, Emiliana - ambas sem protagonismo ou cuidado descritivo. São personagens corrimão, precariamente descritas. Se determinantes no roteiro - uma por não ir para a cama, a outra por ir em demasia -, não passam de sombras no relato cru do autor. Por que uma delas estaria na capa? Curioso, fui à ficha técnica da obra. O responsável pela capa era Victor Burton. Googlei e descobri que é um designer fantástico, com mais de 2.000 capas, com livros sobre o cara e tudo. Mas não me explicou nada. Voltei à ficha técnica e descobri que a imagem era um fragmento da pintura Morning Sun, do gênio americano Edward Hopper. A tela é belíssima. Uma senhora magra e sensual, sentada à cama, em um quarto desnudo, em frente à uma grande janela, de onde se entrevê uma fábrica monumental e o céu azul. Solidão e melancolia - tanto na tela, como no livro. Talvez não haja nenhuma razão, que não a beleza, para uma ilustrar a outra. Eis o paradoxo da arte: a beleza da obra vem da feiúra que destila. Ao me apartar do livro, me segue o rancor cruento de dona Ema, a sogra morta. Volta do túmulo para bicar o fígado de Olavo, semivivo.

Editora Arqueiro, 222 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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