"A Clínica", de Vicente Vilardaga

segunda-feira, agosto 08, 2016 Sidney Puterman

Tenho uma certa tendência mórbida que me faz gostar de ler sobre aberrações. O doutor libanês tarado, personagem principal de "A Clínica", é um deles. O livro é bem amarrado. Lá pro final tem um excesso ou outro, mas, no mais, é rigoroso. O texto é o registro dos crimes do ex-médico e hoje prisioneiro de Tremembé Roger Abdelmassih. O "Turco", como os poucos amigos o chamavam, é um preso-celebridade. Os crimes que o fizeram conhecido (e perseguido) foram os sexuais. E, para seu azar, as investigações aos seus ataques a pacientes e funcionárias trouxeram à  tona crimes ainda mais graves, cometidos no exercício da sua atividade médico-empresarial. O criminoso de jaleco, considerado pela elite paulistana o "médico das estrelas" e o "mago da assistência reprodutiva", era inescrupuloso. Sua rotina deveria ser a de auxiliar casais com dificuldades na geração dos próprios filhos. Não raro, entretanto, os desgraçava, ao trocar propositalmente o material genético dos clientes, de acordo com a conveniência comercial da clínica (substituía o pai por um outro mais fértil, para aumentar a possibilidade de uma gestação). Pior: incontáveis vezes utilizou o seu próprio sêmen para inseminar as clientes que lhe pagavam 30 mil dólares pela oportunidade de engravidar - mas o imaginavam do próprio marido. Esta excrescência moral durante mais de uma década foi figurinha regularmente festejada nos programas vespertinos, aquelas baboseiras televisivas mais adequadas a cérebros em estágio atrasado. Ria a gosto e pespegava seus beijos babados nas apresentadoras e convidadas. Lógico que Amaury Jr, Hebe Camargo e o Comando da Madrugada (além de outros do mesmo gênero e quilate) o tinham com assiduidade nos estúdios, tratando-o como sumidade. Depois de anos dessa discutível "glória", à medida em que ia sendo denunciado e descoberto seu modus operandi, os aduladores passaram a evitá-lo. De instrumento divino se tornou um priápico do inferno. A maldição sobre sua figura abjeta chegou a tal ponto que seus próprios filhos trocaram de nome. Mesmo parentes distantes, constrangidos, resolveram riscar dos registros o nome de família. Publicamente passaram a assinar Abdel, mutilando o nome, no afã de passarem despercebidos. É o prontuário deste fascínora, exemplarmente caçado pelas suas próprias vítimas (que criaram uma rede investigativa que logrou descobrir seu esconderijo no Paraguai), e que envergonhou para sempre os seus, que Vicente Vilardaga nos apresenta. E de forma amplificada, pois provê diversas narrativas dentro de uma só. Fez o retrospecto da história da reprodução assistida no Brasil e o desenvolvimento dos principais centros de pesquisa; dissecou a trajetória de Abdelmassih e seu desempenho profissional; listou as centenas de ataques sexuais denunciados e as práticas pusilânimes de sua clínica; descreveu como suas vítimas se organizaram em seu encalço; e, por fim, fez reflexões pontuais sobre o falho processo de formação de médicos no Brasil. Vilardaga tem um tocada justa. Comedida. Mas não se exime de opinar. Se foi fiel na evolução midiática do personagem e também na transcrição do noticiário, deixou claro no epílogo não só o quanto abomina e despreza o criminoso que biografou, como também o quanto sua existência revela do ambiente putrefato das escolas e conselhos de medicina. E, nas entrelinhas invisíveis entre a dedicatória e as páginas iniciais da sua obra, me permitiu suspeitar que o autor que registrou para a eternidade a natureza sórdida do estuprador (que se auto-intitulava, hipocritamente, "Doutor Vida"), era, também ele, um bebê de proveta. Será? Talvez eu tenha visto vírgula onde era ponto. Não vem ao caso. O que importa é que sou fã do jornalismo com lombada, feito para ocupar lugar nobre na estante dos curiosos. Histórias de exceção que são contadas porque precisam ser sabidas. Vilardaga é destes peregrinos que as fazem. Já eu sou daqueles enxeridos que as lêem.

Record, 349 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: