"Os últimos dias de Stefan Zweig", por Laurent Seksik

domingo, setembro 20, 2015 Sidney Puterman

Como um asno curioso fitando o palácio, sou um admirador do sofisticado ambiente cultural em que Stefan Zweig brilhava. Foi por meio da preciosa biografia sobre ele, escrita por Alberto Dines ("Morte no paraíso", resenhada aqui nesse blog, há quatro anos), que tive acesso ao mundo ao qual pertencia e ao seu trágico desmoronamento. A Europa da última década do século XIX e do primeiro quarto do século XX transcendia sensibilidade, refinamento e cultura. Zweig era um dos seus expoentes. Foi o autor mais publicado, vendido e traduzido do seu tempo. Escreveu contos, biografias, romances, poemas, libretos de ópera, discursos - e em tudo o que fazia era incensado. Austríaco, tendo por idioma a língua dos pensadores - o alemão -, era cultuado não só em sua pátria, mas em todo o continente. O escritor Stefan Zweig era uma celebridade. Nesse cenário onírico, surgiu um sério inconveniente, no entanto. Zweig era judeu. E ser judeu não era uma característica desejada na Europa dos anos 30. Atento aos primeiros sinais do ovo da serpente, Stefan se antecipou ao Anschluss (a anexação da Áustria pelo Reich nazista), às expropriações e aos campos de concentração, abandonou o Österreich e se tornou um fugitivo. Picou a mula. Sendo ele um nome universal, foi aceito em países - por ser o famoso Stefan Zweig - onde os demais judeus não eram aceitos. Assim foi nos Estados Unidos e no Brasil (cuja política getulista, de fechamento das fronteiras ao Povo do Livro, foi flexibilizada para que Stefan entrasse e ganhasse condição legal). Admitido aqui, na condição de personalidade mundial que se rendia aos encantos tupiniquins, publicou "Brasil, um país do futuro" - também resenhado nesse blog -, obra imediatamente acusada de ser peça de propaganda do Estado Novo de Getúlio Vargas. A intelectualidade brasileira, avessa ao ditador, repudiou o antes venerado Zweig pela sua aparente submissão ao regime. Hostilizado do outro lado do planeta (aqui), deprimido, Stefan Zweig veio parar em Petrópolis (mais aqui ainda), onde pensava escapar à sanha genocida de Hitler. Nem na longínqua cidade serrana, entretanto, neste autêntico fim de mundo (para quem vivia nos altos círculos sociais e culturais de Viena, Berlim, Londres e Paris), encontrou paz de espírito. Em fevereiro de 1942, numa casinha singela logo acima das Duas Pontes, Stefan e sua segunda esposa, Lotte, tomaram veneno e se deitaram para morrer. Abraçados. É sobre esta história que o romancista francês Laurent Seksik se debruça, com delicadeza e profundo conhecimento da obra de Stefan Zweig. Se apoiou em uma farta bibliografia para dar consistência ao que imagina teriam sido os últimos dias do autor. Seu texto é bom. Não lhe faltam o lirismo e a melancolia. A angústia e a desolação. A erudição e a imaginação. Com estas matérias-primas, Seksik recria os diálogos que supõe ter acontecido e os trajetos que cogita teria feito o casal Zweig. Sua recriação é dividida em seis capítulos, nominados de setembro a fevereiro; os últimos seis meses de vida de Stefan Zweig. O palco é Petrópolis, em relação à qual estende as pinturas de fundo que simulam intimidade com a cidade. É aí que Laurent tropeça e evidencia quão frágil é a recente onda do romance histórico. No afã de romancearem personagens reais e lhes atribuindo situações imaginárias supostamente próximas ao realmente acontecido, os autores do gênero cometem gafes imperdoáveis para quem se pretende testemunha espiritual da verdade. Seksik condena os protagonistas a zanzarem em uma Petrópolis que se restringe à Avenida Koeler. A casa em que moram (hoje um museu dedicado à memória do escritor, como na placa fotografada que abre este post) é trocada de lugar e a ladeira é trocada de tamanho. Stefan e Lotte passeiam por uma cidade imperial nos anos 40 onde os garçons falam inglês, os restaurantes servem pato ao molho de amoras e os quiosques sucos de açaí. Descreve um carnaval carioca com lanternas, archotes ardendo e rituais tribais, onde mulheres seminuas dançam, possuídas, pelas ruas do centro do Rio. Equívocos assim não teriam importância numa obra assumidamente ficcional. Mas quem se propõe a ser intérprete mediúnico da história tem por obrigação não errar em minudências que qualquer caboclo sabe de cor e salteado. Por essas e outras, o carinhoso livro de Laurent pode servir como canapé introdutório à verdadeira biografia de Stefan Zweig - mas qualquer coisa além disso seria pretensão descabida. Para os fãs de canapés, porém, recomendado. Laurent tem classe.

Editora Gryphus, 162 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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