"As duas faces da glória", por William Waack

sábado, setembro 05, 2015 Sidney Puterman

Esse aí de cima é o meu tio. A foto (com dedicatória para a tia Lili, minha avó) foi tirada no Coliseu romano, em 1945, quando os pracinhas brasileiros deram uma coça nos nazistas e venceram a Segunda Guerra Mundial. Bem, ao menos esta é a versão dos generais brasileiros, adotada na maioria dos livros sobre o assunto e também em filmes como "Senta a pua" (Erick Castro, 1999). Outros vão na contramão, como o documentário "Rádio Auriverde" (Sylvio Back, 1992), críticos quanto ao ufanismo que caracterizou boa parte do publicado sobre nossa participação na Segunda Guerra Mundial (distorção que acusei em "O inverno da guerra", de Joel Silveira, comentado também aqui nesse blog). Dois de meus tios lutaram nela - e também deixaram relatos díspares, ainda que ambos legítimos. Voltando ao Back, por atacar o mito da tomada brasileira de Monte Castello, seu longa-metragem foi alvo de forte reação dos militares, que tentaram proibir a exibição. Essa polêmica de quase um século parte, a meu ver, de um pressuposto equivocado - que é se a performance da Força Expedicionária Brasileira foi 1) Gloriosa, 2) Irrelevante ou 3) Vergonhosa. Quem, em sã consciência, pretenda que um país como o nosso, que desconhece a guerra (nosso último conflito contra uma outra nação foi a Guerra do Paraguai, no século XIX, onde nossas tropas eram formadas por escravos descalços), tenha um alto desempenho como combatente ou é um beócio ou está mal intencionado. Mais ainda quando o rival (mesmo esfacelado e mendigando tropas e munição) é a Alemanha, que nos últimos sete anos havia posto grande parte da Europa de joelhos. Por parceiros, tínhamos a Inglaterra e os Estados Unidos. Os britânicos têm tradição guerreira milenar e os americanos eram não só o país mais rico do mundo, como foram determinantes no resultado da Primeira Guerra. Estas três nações, ao lado de França e Rússia, foram as protagonistas no conflito de 1914-1917; seus oficiais sobreviventes estavam todos envolvidos no novo conflito mundial. No popular, briga de cachorro grande. Como crer que nos ombrearíamos a eles? Não é razoável. É como mandarmos um time de esquiadores do Ceará para uma campeonato de salto na neve nos Alpes suiços e achar que vamos disputar medalha. Apesar do disparate dessa expectativa, foi o que tentaram fazer descer goela abaixo da opinião pública os militares de então, que, de 1945 em diante, em carretilha, elegeram um presidente, Dutra; gestaram uma sucessão de golpes natimortos ao longo dos anos 50; no início dos 60 vetaram Jango, ao verem o trapalhão Jânio Quadros renunciar; e, três anos depois, depuseram o próprio Jango, ficando por inaceitáveis 21 anos no poder e encerrando aí um ciclo de 40 anos de influência e intervenção das Forças Armadas na política. Dessa forma, a narrativa da atuação brasileira na Itália foi modelada por esse camarote militar, com óbvios interesses pessoais e partidários. Com isso, perdemos todos, pois ao arquitetar uma versão deformada que fazia do tacanho oficial brasileiro um expert em estratégia e do nosso soldado raso e despreparado um combatente de elite, que afirmava que os Aliados admiravam nossas tropas e que o inimigo nos temia, a História foi jogada na lata do lixo. A versão vendida trazia o carimbo "me engana que eu gosto" - mas o fato é que quem preza o conhecimento não gosta nem um pouco de mistificações. O que se deve questionar não é a "coragem" do brasileiro, e sim sua capacidade num teatro de guerra em que era um calouro sem formação. Assim, quando li que William Waack havia escrito, ainda na década de 80, um livro com a visão dos oficiais americanos e alemães sobre a nossa presença, fui atrás da obra. Para minha decepção, porém, em vão. A 1a edição estava esgotada e não havia sinal dela nos sebos. Anos depois, ao saber que uma 2a edição seria lançada, não perdi tempo para comprá-la - e, ao lê-la, constatei que valeu cada minuto de espera. O livro já começa bom, com uma pertinente introdução à nova edição. Waack, figurinha diária na TV, apresentador do Jornal da Globo, foi nos anos 70 correspondente de guerra. Esteve em boa parte dos conflitos do Oriente Médio, comendo areia e vendo bala chispar. Nos anos 80, foi por cinco anos correspondente do finado Jornal do Brasil na Alemanha e na Inglaterra, ocasião em que teve acesso a muitos dos arquivos da guerra. Foi então que lhe ocorreu se valer dos relatórios oficiais (e por muito tempo sigilosos) e das entrevistas que logrou fazer com aqueles que estiveram não só ao lado, mas também contra os soldados brasileiros. Mais do que uma coleção de pontos-de-vista, o autor buscou montar o panorama tático da batalha travada nos Montes Apeninos e na luta por aquele que se tornou a maior conquista militar brasileira nos últimos 140 anos, o Monte Castello. Ao mesmo tempo em que rende homenagem às centenas de brasileiros mortos no conflito, Waack procura identificar o verdadeiro valor estratégico do Monte Castello, na análise dos registros e depoimentos alemães sobre o cenário na região. Alguns arrazoados são essenciais para o entendimento desta ofensiva aliada contra a ameaça (já combalida, à época) nazista. As divisões alemãs envolvidas eram formadas por veteranos e soldados feridos em outras frentes, vindos do hospital e do resguardo. Os armamentos eram basicamente refugos e tomados de inimigos derrotados, bem como os veículos. Para deslocamento pessoal, a tropa nazista contava com asnos e bicicletas, em boa parte roubadas dos moradores. Se o oponente era uma ruína, o terreno era sem prestígio e equivocado. No front, a cadeia mais alta de montanhas nos Apeninos tinha por situação mais importante o Monte Belvedere (o mais citado de memória nos depoimentos de antigos soldados alemães). O famoso (entre nós) Monte Castello, mais baixo, na verdade não poderia ser tomado sem que antes o Belvedere caísse - o que se confirmou na prática, com a vitória da 10a de Montanha americana. Só então, com o Belvedere caído, o contingente brasileiro pôde avançar sem estar sob fogo de cobertura alemão e aí sim tomar o Castello, até hoje a glória das glórias do nosso exército. Quanto ao inimigo, mesmo 40 anos após a guerra, era motivo de surpresa para muitos dos oficiais alemães que enfrentaram as nossas tropas saber que lutaram contra o Brasil. Se não fosse Waack a entrevistá-los, a maioria morreria desconhecendo que combateram brasileiros nas montanhas do norte italiano. Nossa presença era mesmo inusitada. Em um gesto sobretudo de composição política, fomos para a Itália como coadjuvantes na ocupação de montes sem o menor significado para a guerra em curso. Assim, cruzamos o oceano, com dezenas de milhares de brasileiros embarcados e inocentes, mas subordinados a um contexto cujo objetivo mor estava voltado para a política interna brasileira. Ao contrário de desmerecer o nosso pracinha, o ótimo livro de Waack rende tributo ao deslocado soldado brasileiro, que, despreparado (sob qualquer ótica que se analise), foi enviado como bucha de canhão para ser figurante e vítima em um conflito alheio às suas possibilidades. Nossas infantaria, artilharia e corpo de oficiais não eram qualificados para a guerra - sequer nos exercícios nos saíamos bem. Os relatos secretos dos oficiais americanos - que continham expressas observações de que seu conteúdo não poderia ser repassado aos brasileiros - são veementes e ratificam nossas deficiências. Contêm também observações pouco elogiosas (mas coerentes, até hoje) sobre a desorganização, atraso, falta de planejamento, registros inexistentes, mau trato dos equipamentos e ausência de higiene dos contigentes brasileiros - nada que nós mesmos não critiquemos no (mau) comportamento usual da nossa população, ainda hoje, 70 anos depois. Por esse aspecto, não há nada há ali que surpreenda. Por outro lado, nada há ali também que sustente minimamente as versões auto-elogiosas e historicamente falsas que nossos generais deram sobre a atuação da Força Expedicionária Brasileira. É fato que o mito da nossa participação havia de ser lustrado. As Forças Armadas nos custam fortunas e não têm inimigo, retrospecto, currículo ou função (embora fosse possível dotá-la desta última, patrulhando de forma efetiva nossas fronteiras e impedindo o tráfico que alimenta a guerra nas dezenas de Monte Castellos que são nossas favelas). Assim, uma participação na última das grandes guerras do mundo têm enorme importância para quem não tem nada mais o que contar. É esta manipulação da verdade histórica que "As duas faces da glória" desnuda, trazendo à luz a verdadeira movimentação de tropas aliadas e inimigas nos Apeninos, no período de novembro de 1944 a março de 1945. Infelizmente, diante da escassa curiosidade popular pela História e pela verdade, a obra de Waack interessou mais aos militares do que aos cidadãos. Coube àqueles atacá-la e a estes ignorá-la. Por fim, faço aqui a minha reverência aos tios pracinhas que citei na abertura desse post: meus admiráveis e inesquecíveis tios Felipe Mayer e Werther Cardoso. O primeiro eu perdi ainda menino. Me deixou dezenas de livros, a mania das anotações nas margens, o gosto por suco de tomate e muitas boas lembranças. O segundo, o galã da foto, eu amei como a um pai. Me deixou afeto, exemplos e saudade. Se estivesse ainda nesse plano, faria aniversário justamente hoje, 12 de setembro. Parabéns, tio. Você vai ser sempre meu herói.

Editora Planeta, 310 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: