"O ato e o fato", por Carlos Heitor Cony

sexta-feira, abril 10, 2015 Sidney Puterman

Dia 31 último eu disse que era o aniversário do golpe (ou da revolução). Mas não era. Era golpe. Golpe, treta, zoação. O golpe mesmo foi em 1o de abril, no Dia da Mentira - o que quer dizer que eu menti na véspera. Não importa. Foi um golpe confuso. Ou frouxo. Já a data foi só uma ironia da História. Porque o Ato Institucional número 1, que impetrou a ditadura (suprimiu as liberdades públicas e aboliu o Direito), foi promulgado, de fato, no dia 10 de abril - e aí o ato, documentado, vale como uma certidão. Quem quiser confirmar, que vá às bibliotecas ou ao "O ato e o fato", de Carlos Heitor Cony: o livro traz seus artigos publicados no extinto "Correio da Manhã", não só no mês de abril, como também ano afora. Nos textos se vê que Cony encarou o ocorrido com malicioso bom-humor. Dia 2, dia seguinte ao ato, ele conta como a filha o havia chamado para ver a movimentação na praia de Copacabana. Descreve que desceu à portaria, assuntou e soube que estava em curso uma revolução. Surpreso, foi até a calçada, na esquina da Avenida Atlântica com a Joaquim Nabuco, acompanhar de perto o teatro de guerra. Havia um general empilhando dois paralelepípedos, dizendo que eles (a "gloriosa barricada", segundo a definição da também extinta TV Rio) deteriam os tanques do I Exército. Apesar do ceticismo do jornalista, o estratagema funcionou, porque logo depois os tanques aderiram aos golp... aos rebeldes revolucionários. Sem mais emoções. Passou-se uma semana e as filhas do Cony participaram de outras crônicas. Como quando atenderam o telefone e escutaram impropérios e ameaças de morte. A pouca graça que havia se foi. O sarcasmo virava asco. Naquela manhã o jornal publicara "Revolução dos Caranguejos", onde Cony apontava: "Isso não é uma revolução. É uma quartelada." Mesmo sob ameaça, com a tentativa de invasão da sua casa por quatro sujeitos armados, se limitou a enviar as filhas para um abrigo seguro e no mesmo lugar ficou. Em seguida, publicou: "Dou um recado aos que me ameaçam, por carta ou telefone: sou um homem desarmado. Não tenho guarda-costas nem medo." No dia em que o Alto Comando Militar - autor sem rosto do golpe - indicou o presidente que enfim assumiria, Cony ainda estava esperançoso: "Temos o homem. Até então, tínhamos amigos e inimigos caçados como feras, acuados em seus lares. Homens no opóbrio das prisões sem julgamento, das sevícias manipuladas pelos apetites que a facilidade da força bruta desencadeou e não sabe como fazer parar." Atente que havia apenas duas semanas de governo militar. Duas. No dia seguinte, o jornalista prosseguiu: "Acredito que só os histéricos queiram levar até o fim aquilo que o Alto Comando, repetindo nazistas, fascistas e comunistas, chama de expurgo. (...) Que adianta vencermos os corruptos e nos tornarmos corruptos?" Dilema tristemente atual. Por falar em temporalidade, já há meio século atrás o jornalista criticava a propaganda, hoje matéria prima basilar do discurso político: "Sabe-se que alguns técnicos em propaganda estão bolando uma campanha destinada a popularizar aquilo que insistem em chamar de Revolução. (...) Nunca se viu uma revolução precisar de popularidade. Se qualquer movimento precisa popularizar-se é óbvio que o movimento em causa não é popular." Carlos Heitor Cony era um ilhado Dom Quixote em sua cruzada contra o recém-instalado governo militar. Solerte, denunciou a rápida e perversa mudança de rumo do novo governo: "A deposição do sr. João Goulart foi realmente reclamada por grande parcela das classes médias: era uma situação caótica, insustentável. Mas a continuação do golpe militar que depôs o governo, o Ato Institucional, a perseguição, os expurgos, as delações, as caçadas humanas - isso não apenas o povo não aprovou, como está repelindo." Cony, ao mesmo tempo que revelava seu desapreço pela práticas de Brizola, acusava o governo de ser indigno ao esculachar o inimigo derrotado. E o que mais fazia o jornalista vociferar contra os militares eram as prisões e humilhações impostas à torto e à direito: "O controle da atual situação pertence a verdadeiras quadrilhas." Quem tem o Poder, tem o dinheiro. Cony já acusava, com um mês das Forças Armadas no Planalto, os militares de auto-favorecimento: "O aumento dos militares foi apressadamente votado, sem que o equivalente civil esteja ao menos estruturado. As listas de promoção enchem as colunas dos jornais." O escritor viu companheiros sumirem, canalhas delatarem, inocentes serem presos e espancados, mas não se mostrou intimidado: "O Brasil foi transformado metade em quartel, metade em colégio de freiras, onde a delação é incentivada e premiada." A reação do governo, estupefato pela determinação acusatória do jornalista, foi processá-lo, ao que ele reagiu com a altivez costumeira - fato é que, se tivesse o Brasil cem brasileiros da estirpe e do bestunto de Carlos Heitor Cony, o país seria outro. Não temos. Paciência. Olvidemos o que não nos é possível e, por mínimo, aprendamos com o passado. Sugiro aos amigos a leitura dessa coletânea histórica. Por 40 reais, a edição impressa está disponível nas boas livrarias da internet - e é entregue em casa. Tudo nela é um assombro: o país, a política, o povo, o medo, a inércia, a covardia - e do outro lado, de dedo em riste, um jornalista que não se rende e enfrenta, com sua máquina de escrever, um golpe de estado. Em 10 de maio de 1964, ele encerrou assim sua crônica: "Os medíocres estão solidários. Qualquer que fosse a situação, quaisquer que fossem os vencedores, os medíocres estariam solidários: é uma qualidade estrutural da mediocridade. Pois eu não estou solidário com nada disso. Nem com os vencedores, nem com os vencidos. Os vencedores porque são idiotas demais. Os vencidos porque estão acovardados. Quem não roubou que atire sua primeira pedra. Eu atiro a minha."

Editora Record, 192 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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