"Jogo do Senta", por Paulo Cezar Guimarães

quinta-feira, abril 16, 2015 Sidney Puterman

Divertido. Provocador. Na semana em que os 4 grandes clubes do Rio estão envolvidos na disputa das semifinais do Campeonato Carioca, a leitura do "Jogo do Senta", do jornalista, blogueiro e professor de jornalismo Paulo Cezar Guimarães é ainda mais saborosa. Listando memoráveis controvérsias envolvendo os principais clubes do Rio e do Brasil (além de Botafogo, Flamengo, Vasco e Fluminense, são personagens também o Bangu, América, Atlético Mineiro, Santos, São Paulo, Cruzeiro e outros mais), o meticuloso trabalho de pesquisa do professor PC espicaça, tempera e azucrina. Os dois principais protagonistas são os rivais Botafogo e Flamengo, e no livro há quem atribua o início dessa rivalidade a um jogo disputado em setembro de 1944 - ano em que o scratch rubronegro se sagraria tricampeão carioca, com um timaço que tinha Domingos da Guia e Zizinho. O jogo, título e principal tema do livro, ficou conhecido como o "jogo do senta", pois o Flamengo, aos 31 minutos do 2o tempo, ao se ver goleado por 5x2 pelo Botafogo, com 2 gols de Heleno, sentou em campo e se recusou a levantar para continuar jogando. Segundo os jornais, o time obedecia às ordens do seu dirigente Alfredo Curvelo, que esperneava, pois no quinto gol alvinegro a bola não teria entrado (alegação não corroborada pelos jornais da época). Sobre a polêmica orientação, o benemérito Francisco Menezes teria escutado de Zizinho que "a ordem veio de fora do campo, pois o Botafogo estava fazendo gols além da conta e que o Flamengo não sabia aonde aquilo ia parar". O noticiário, as fotos e os depoimentos sobre essa partida "inaugural" da rivalidade são caudalosos e ocupam significativa parte da obra, mas o livro passeia por dezenas de outros jogos e causos. Importantes confrontos e conquistas são destacados, como o primeiro Brasileiro vencido pelo Flamengo, em 1980, e o primeiro Brasileiro vencido pelo Botafogo, em 1995; o título carioca de 1966 ganho pelo Bangu e o de 1971 vencido pelo Fluminense; o de 1981 vencido pelo rubronegro e os títulos cariocas do Botafogo de 1948 e 1989; as Taças Guanabara de 1968 e 2008 (ambas disputadas entre o Botafogo - que venceu a primeira - e o Flamengo - que venceu a segunda); a razão do Rio-São Paulo de 1964 ter sido dividido entre o Botafogo de Garrincha e o Santos de Pelé; e diversos outros grandes jogos e polêmicas. Mas que não se engane quem veja essa relação multiclubística e conclua que os times são fraternalmente contemplados. O livro do professor Paulo Cezar Guimarães é essencialmente sobre o Botafogo - e é veemente. Seu "Jogo do Senta" é contundente, fundamentado e lava a gloriosa alma alvinegra. Outrossim, faz brotar o "chororô" do seu mais popular adversário, o Flamengo, que, segundo o bem-humorado professor, tem o choro mais antigo do Rio (em nota oficial, publicada nos jornais da época, a diretoria do C.R.F. justificou a "sentada" do elenco, dizendo "não querer desmerecer ou empanar a vitória do digno adversário, mas foi uma consequência natural e irreprimível decorrente do juiz marcar um tento criado pela sua incompetência"). Confesso que o ato de sentar como consequência natural e irreprimível foi a primeira vez que vi... Noves fora e chororô à parte, circunstanciando a obra nos dias de hoje, em que tantos culpam a corrupção pelos males do País, o "Jogo do Senta" é um autêntico libelo pela lisura no esporte (ao menos no que tange aos erros cometidos contra o Botafogo...) Não só: pela sua devoção à memória do futebol carioca, os capítulos são leitura agradável para os apreciadores do futebol brasileiro em geral. Estão ali todas as artimanhas que caracterizaram um período cujo glamour é reforçado pela fartura de craques e pela carência de registros audiovisuais, que o infatigável Professor PC compensou com seu pendor de alfarrabista. Revelações já perdidas no tempo, como um dos primeiros tira-teima da TV na final do Rio-São Paulo de 64, um Botafogo x Santos, em uma bola defendida por Manga; que Zico foi o segundo maior artilheiro do clássico Botafogo x Flamengo, com 16 gols, superado somente por Heleno de Freitas, com 22; fala das 52 partidas invictas consecutivas do Botafogo de Mendonça em 77/78 (duas partidas pelo Carioca/77, 8 amistosos e 42 pelo Brasileiro/78) e as do Flamengo de Zico em 1979 (19 amistosos e 33 partidas pelo Carioca/79, que teve duas edições), "empate" que culminou num jogo entre os rivais pelo Carioca, com vitória do Botafogo de Borrachinha e quebra da invencibilidade rubronegra, diante de 139.477 espectadores. Eu era um deles. Há, ali e acolá, pequenas derrapadas, geralmente um depoente traído pela memória, como PC Caju, que minimiza a embaixadinha que fez no jogo contra o Vasco, em 71, que terminou em pancadaria generalizada; ou o autor Ivan Alves, citado no livro, que diz que em 1946 o "grande" Nilton Santos defendia o Botafogo (quando, na verdade, ele somente estreou no futebol e no Botafogo em 1948 - começou vencendo e acabou campeão, batendo o vascaíno Expresso da Vitória, partida que também é assunto na obra). O livro tem diversos pecados: diagramação pobre, índice de capítulos inexistente, organização manca, ausência de índice remissivo. Mas é um lauto banquete para a torcida botafoguense, que come e se lambuza diante da descrição de tantas e deliciosas vitórias. Eu garanto que me diverti. Só não dei a volta olímpica porque me lembrei do Onça, lateral-direito do Flamengo e personagem do livro, que, em 1968, eufórico após um 0x0 com o Botafogo no Maracanã, e bastando ao rubronegro empatar na rodada seguinte com o fraco Bonsucesso para ser campeão, tirou camisa, calção e chuteiras e jogou tudo para a torcida, comemorando antecipadamente o título e saindo de campo, após sua solitária volta olímpica, coberto apenas por uma minúscula sunga. Mas - azar dos azares - o Bonsucesso bateu o Flamengo por 2x0 e o Glorioso, redivivo, no jogo-extra contra o Mais Querido para decidir o campeão, goleou o Flamengo por humilhantes 4x1. PC Guimarães, sempre generoso, conta a história e ainda dá o link (http://goo.gl/NI4o6N) para quem quiser assistir a matéria da ESPN sobre a partida. Ficou a lição: volta olímpica, só com título assegurado (está aí o Nova Iguaçu para reforçar a afirmativa). Se em 1944 a torcida alvinegra cantou "senta para não apanhar de mais", 24 anos depois, em 1968, exigiu que o time do Flamengo desse uma volta olímpica de marcha-ré, para "pagar" a volta mal dada do Onça. A torcida foi bem, também, em 1972, quando, após vencer o Flamengo no Maracanã por 6x0, parodiou Jorge Ben e entoou "Flamengo Maravilha, nós gostamos de vo-seis..." (essa goleada, por não ter tido polêmica, não está no livro, mas permanece insuperável na minha memória de guri). O livro de Paulo Cezar Guimarães "preenche uma lacuna" e provoca o sorriso de milhões de alvinegros. Mais: faz do autor um artilheiro da Estrela Solitária. Sua indispensável obra o transforma no segundo grande craque alvinegro chamado Paulo Cezar (e frisemos que esse, o escritor e jornalista, só vestiu uma camisa, ao contrário do outro, que vestiu todas). Com esse "Jogo do Senta", Paulo Cezar, com "z" de Zorro, simbolicamente traça um "Z" sobre o manto rubronegro e entra para a história do Botafogo. Ave, Cezar.

Editora Livrosdefutebol.com, 161 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

2 comentários:

  1. Êpa... o certame ganhou esta alcunha após todos os jogadores rubro-negros sentarem no gramado e se recusarem a continuar jogando devido à percepção do FLAMENGO que teria sido ROUBO da arbitragem (árbitro Aristides "Mossoró" Figueira).

    Apesar disso, o FLAMENGO se sagrou o CAMPEÃO desse ano.

    Esse jogo quebrou uma sequência de 6 jogos sem vitória do Botafogo neste confronto no Campeonato Carioca.

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  2. Caro Marco, obrigado! É isso mesmo! Você e o autor, PC Guimarães, defendem igual ponto de vista: o Flamengo deu início ao primeiro chororô do campeonato carioca, não se conformando com a marcação do juiz. O Flamengo se sentiu roubado no QUINTO GOL do Botafogo e sentou em campo, por ordem do seu diretor. O rubronegro publicou uma nota (parte reproduzida acima) acusando o juiz. A Federação multou o Flamengo, que teve que pagar a multa e devolver a renda, por abandono de campo. O clube fez de tudo para nem devolver o dinheiro da renda, nem pagar a multa. O diretor Alfredo Curvelo disse que mandou o time sentar por ordem do vice-presidente Francisco Abreu. Então o vice, Abreu, disse que indenizaria o clube e se demitiria do cargo de vice. Ao fim, fizeram uma vaquinha, com os associados rubronegros Raul Dias Gonçalves e Marino Machado assumindo a responsabilidade da arrecadação. Enquanto isso, o Flamengo ameaçava recorrer à Justiça comum, por sugestão do Nelson Hungria. Desistiu. Recorreu à Federação Metropolitana, em 29/9/1944, e, em 6/10/1944, a Federação encaminhou o recurso para a Confederação Brasileira de Desportos, ficando sob responsabilidade da Comissão de Legislação e Consultas da CBD, com o relator Professor Ferreira de Sousa. Em 17/10/1944 o recurso foi rejeitado e o Flamengo teve que devolver os Cr$ 30 mil cruzeiros da renda, acrescido de uma multa de Cr$ 1.000 cruzeiros. A única coisa que o Flamengo conseguiu para "se vingar" foi suspender o juiz por 60 dias (à época, os juízes de cada jogo eram decididos por sorteio, e eram sempre 5 os indicados para participar do sorteio de cada jogo; os 4 primeiros foram vetados, 2 por cada time, e só sobrou o Mossoró). Os jornais da época em sua maioria afirmaram que a bola tinha entrado, com base nos repórteres e nos diversos testemunhos. Alguns poucos deram margem à dúvida, sem afirmar peremptoriamente que havia sido gol. Nenhum afirmou que a bola não entrou. Os jornais também foram unânimes em afirmar que um dos gols do Flamengo havia sido ilegal, mas o Botafogo não reclamou. Quanto ao gol final do Botafogo, os jogadores de ambos os times seguiram pela mesma linha: boa parte afirmou que o chute do Geninho tinha sido gol e uns poucos - inclusive o autor do gol - disseram não ter como ver de onde estavam. Um único jogador rubronegro não sentou: Jayme de Almeida, pai do Jaime que recentemente foi técnico do Flamengo. O técnico foi entrevistado para o livro e disse que o pai não só se recusou a sentar, como sempre teve vergonha desse jogo e não gostava de falar do assunto. Durante muitos anos, nas décadas de 40 e 50, a torcida do Botafogo cantou para os rivais "senta para não apanhar de mais". E o mais divertido é estarmos falando disso, de um jogo de setenta e um anos atrás! A graça do futebol é essa... Abração!

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