"A diferença invisível", por Mademoiselle Carolline e Julie Dachez

domingo, abril 21, 2024 Sidney Puterman


Mais desenhos por aqui. Agora que embalei, vamos em frente. Há muita coisa boa nas prateleiras.

Em "A diferença invisível", os traços de Carolline sobre o roteiro de Dachez ilustram com delicadeza a atmosfera que exala de Marguerite, a tímida protagonista. Introvertida, antissocial, articulada e cheia de manias, ela encarna aquela personagem que todo grupo tem.

Eu, particularmente, me identifiquei bastante com ela. Também sou esquisitão.

E gostei do estilo. Me vi bem representado nas cores e no arranjo minimalista das imagens. A leitura é agradável e a abordagem gráfica proporciona aconchego e empatia.

A protagonista é fã de pãezinhos de espelta. Nunca tinha ouvido falar. Dei uma googlada e descobri que são pães de fermentação natural. Também adoro. Único inconveniente é que são caros.

Nem tudo são flores ou pãezinhos, porém. Há uma série de restrições a serem feitas na proposta da autora. Uma das que faço ao roteiro de Julie Dachez é o viés egocêntrico - a de que pessoas de rotina reservada sejam foco da observação contínua dos demais.

Ela se sente assim. Observada e julgada. E este talvez seja o ponto recorrente do livro, ao redor do qual a história e a própria Julie reiteradamente se posicionam. Convém refletir.

No ambiente social padrão, as pessoas flutuam. São mariposas atraídas pela luz. Circulam e disputam atenção e espaço. Na ânsia pela luz, simplesmente ignoram quem está na sombra.

A ideia de quem opta por estar à sombra (ou seja, de quem se abstém de competir) de que justo aqueles que competem pelos holofotes estejam "incomodados" pelos que estão à margem é despropositada. Revela uma vaidade descabida para quem se proclama do lado de fora.

Ora, o diferente prefere estar de fora por não ter empatia com quem está dentro. Mas alguém que está de fora e se preocupa todo o tempo supondo o que pensa quem está dentro é um sujeito menos diferente, na essência, e mais deslocado, no comportamento; falta interação e sobra insegurança.

E mais, nos remete a uma linha divisória - entre os que se põem à margem porque se sentem bem em uma rotina de mais privacidade e introspecção, de um lado, e aqueles que estão à margem por timidez, e que adorariam, na verdade, integrar diversos grupos e serem populares, do outro.

O que potencializa uma narrativa farta em exemplos contraditórios. Chamaram minha atenção.

Em uma das passagens, o diretor da companhia chama Marguerite para dizer que ela trabalha muito bem. Ressalva, porém, que ela deveria sair para almoçar com os colegas e participar das festas "de pijama". Ora, não me parece que o personagem reflita um gestor real. A experiência geral aponta que, nas empresas privadas, gestores anseiam por produtividade. Tudo o mais é periférico.

Creio que até mesmo apreciam os funcionários mais isolados, aqueles que "ficam na sua". E, cá para nós, todo ambiente "animado" se alimenta da energia dos que o promovem, e não da presença dos "desanimados". Estes só são chamados quando se precisa de quorum.

O mesmo vale para a festinha à qual Marguerite vai com o namorado e da qual resolve sair mais cedo, fazendo com que os participantes da festa a critiquem e fiquem com "peninha" do namorado. Caramba, imaginar que os participantes de uma festa se ressintam porque alguém introvertido sai mais cedo é uma pretensão pouco racional.

A galera não tá nem aí.

A edição é repleta destes exemplos ingênuos. De forma estereotipada, as idiossincrasias do temperamento da "heroína" são rotuladas como sintomas de uma doença específica. Um comportamento fora da curva se torna patológico. Este é o meu ponto.

Porque aí vale uma pequena reflexão: se para cada nova doença tivermos uma literatura, uma academia, um conjunto de especialistas, uma farmacologia, o que estamos fazendo, visto de cima, é uma acumulação de riqueza. Um fluxo financeiro é canalizado para o recém-formado nicho da doença. Nada de novo. Assim funciona a economia. Cria necessidades que fomentam demandas.

E faz parte do jogo. As ciganas que lêem mãos são somente competidoras ultrapassadas dos terapeutas e livros de auto-ajuda. O faturamento das ciganas caiu porque não se modernizaram.

A edição é também uma publicação de nicho e se insere no mercado. "A diferença invisível" está à venda por R$ 69,80 na Livraria da Travessa e por R$ 59,44 na Amazon (um exemplo de porque o mercado livreiro se insurge contra a gigante norte-americana do comércio eletrônico).

A Amazon também oferece o kit  "Viva a diferença" por R$ 159,50. O texto do produto nos informa que são "Três histórias autobiográficas para celebrar a vida - e nos marcar para sempre".

Voltando à estória, Marguerite, incompreendida por todos ao seu redor, sai à cata de psicólogos e profissionais congêneres que possam lhe ajudar. Mas todos exibem o mesmo padrão de não-entendimento da doença, produzindo diagnósticos obsoletos e sugerindo tratamentos ultrapassados.

Ela enfim é direcionada para profissionais modernos, que diagnosticam correntamente sua personalidade e dão um nome para sua condição. A partir daí, ela se reúne com outros que receberam o mesmo diagnóstico. Aí, dentro da sua própria tribo, reproduzem as interações sociais de outros grupos: conversam, trocam ideias, se ajudam mutuamente, estabelecem vínculos.

Sem a abordagem dualista com que os demais personagens até aqui foram tratados, todos ásperos, ou mal-intencionados, ou egoístas, ou sem capacidade de empatia, os novos personagens, "doentes", são todos empáticos, contributivos, acessíveis. Saudáveis entre iguais. A fina flor da espécie humana.

A protagonista estabelece uma rotina pessoal, profissional e social equilibrada. Mantém suas idiossincrasias e transforma sua história em um produto que vai abastecer o mesmo filão.

Marguerite agora é feliz e bem-resolvida, e pode vender sua mini-bio ilustrada para centenas de milhares de pessoas, que se identificarão com suas desventuras e estarão convictas de que o diagnóstico correto será também para elas a abertura dos portões da felicidade.

E aí? Não sei. Talvez uma boa síntese seja "me diagnostique uma doença... e eu serei normal".

Editora Nemo, 192 páginas  |  Copyright 2016  |  tradução Renata Silveira
Título original: "La difference invisible"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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