"Heimat", por Nora Krug

segunda-feira, abril 29, 2024 Sidney Puterman


"Eu deveria ser considerado um mero mitläufer", escreveu, em uma carta para o promotor público de Karlsruhe, o cidadão alemão Willi Rock, em 10 de setembro de 1946.

Mitläufer: uma pessoa sem coragem ou estatura moral.

A definição é da autora, a alemã Nora Krug. Willi Rock é seu avô materno. Ela não se envergonha de expô-lo. Na verdade, expor os familiares é a principal razão do livro - cujo subtítulo é o mais genérico "ponderações de uma alemã sobre sua terra e história".

Não são ponderações superficiais. Nora nasceu em 1977 e passou a juventude no país natal. A ocultação do passado e o sentimento de culpa foram circunstâncias recorrentes na sua adolescência. Como muitos outros alemães da sua geração - que herdaram esta culpa -, o passado tenebroso do nazismo era uma sombra negra, e viscosa, sobre sua cabeça.

A maneira que ela escolheu para expiá-la (ainda que ela não tivesse que) é sui generis. Se dedicou a investigar o passado da sua própria família, alemães humildes de vidas corriqueiras. Escreveu um livro contando o que descobriu - minudências banais que, à luz da História, distribuem suspeitas e mancham reputações.

Eu, que leio muito, sei que a sua família não foi a primeira a ter a reputação manchada quando o assunto é guerra. Os riscos são grandes, o pânico grassa e as atitudes são extremas.

Curioso é que "Heimat" é um livro elaborado como se fosse um trabalho escolar. Colagens, desenhos, retratos, rabiscos. Difícil classificá-lo; nem vou tentar. Mas é fato que as verdades duras que ele esmiuça ficam atenuadas pela forma como são contadas.

O estratagema funcionou. Não falta talento a Nora Krug. Sobra obsessão perfeccionista. Porque escrever uma história é uma coisa; desenhar e diagramar cada página dessa história é outra, bem mais exigente. Ela se saiu super bem. A história da sua família alemã é graciosamente revelada em um formato pseudo-infantil. O que inclui a perseguição e o assassinato de milhões de judeus.

Aí vale observar que Nora Krug não é uma alemã qualquer. Ela casou com um judeu. Então tudo nela é mais misturado do que na receita original. Não é uma judia falando dos alemães, ou uma alemã falando dos judeus. É alguém na fronteira entre estes dois mundos. Entre os gatos e os ratos. E querendo descobrir a cota de responsabilidade dos seus ancestrais na perpretação do genocídio.

E, nessa busca, ela não aliviou para nenhum dos lados da família. Da soturna história do pai, Franz-Karl, nascido vinte anos depois de seu irmão (também Franz-Karl), que havia morrido na guerra dois anos antes que ele nascesse.

Ou do enigmático Willi, pai de sua mãe, chofer e mecânico, que teria tido sua escola de direção financiada por um antigo patrão judeu, deportado e morto. E cuja mãe (avó de Nora), Luise Anna, teria sido, ela própria, judia. 

Os antepassados da autora envergaram o uniforme da Wehrmacht. Mas até onde teriam sido apoiadores do nazismo? É esta resposta que ela procura, escarafunchando os arquivos alemães do pós-guerra, entrevistando anciães que teriam convivido com seus avós e poderiam lhe contar um pouco sobre eles.

O pouco que ela descobre é bastante. Revela muito sobre a gente comum da Alemanha durante um período corrupto da História. 

E deixa claro que não houve inocentes.

Editora Schwarcz, 1a edição, 2019 | Copyright 2018 | Tradução André Czarnobai

Título original: "Heimat: a Germany family album"


 

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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