"O negócio do Jair", por Juliana dal Piva

terça-feira, fevereiro 14, 2023 Sidney Puterman


Um livro didático. Recomendado para todas as facções. Bacana, sem dúvida, para os torcedores do ex-presidente, porque podem admirar em minúcias a trajetória pessoal do mito, e degustar detalhes exclusivos da sua intimidade. Quem não quer conhecer melhor seu ídolo?

É também de leitura proveitosa para seus haters, porque a narrativa discrimina os valores oficiais, declarações tributárias e os processos que tramitaram na Justiça contendo depoimentos do próprio Bolsonaro, respaldando números e destrinchando incontáveis dados contábeis.

Ou seja, tem tudo para agradar leitores gregos e leitores troianos. Pena que os leitores são poucos.

O texto encadeia, ops, alinha uma longa série de fatos e oferece uma linha narrativa consistente.

A autora, a diligente jornalista Juliana dal Piva, acompanha em minúcias a respeitosamente suspeita evolução patrimonial do cidadão Jair Messias Bolsonaro. Vai desde a sua saída do Exército (precocemente reformado) aos seus anos iniciais na política municipal.

A narrativa é cronológica (emoji de alívio). A relação de Jair com as suas esposas é esmiuçada - pois, mais que companheiras afetivas, se tornaram sócias de um negócio promissor e familiar.

Vemos que a família, tão evocada nos slogans bolsonaristas, ia além do parentesco que via de regra desemboca na administração compartilhada ou na sucessão geracional de um empreendimento comercial. No negócio do Jair, a família era a própria engrenagem do empreendimento.

Vale aqui um alerta: o livro analisa dois universos distintos. Um é o do Jair ex-militar, vereador e deputado; o outro é o do Jair presidente. São mundos que se fundem, mas são ecossistemas diferentes. E o primeiro é bem mais interessante, para quem curte negócios e literatura policial.

Isso dito, pulemos etapas. Porque fato é que, hipocrisias a parte, e dentro da mentalidade de 90% dos cidadãos brasileiros, o Jair, com sua inteligência prodigiosa, descobriu uma fábrica de dinheiro.

Na verdade, é fácil, requerendo mais engenho que tutano. Uma vez eleito, você pode instalar uma torneira de dinheiro diretamente no seu gabinete. E bem poucos entre os edis deixam de instalá-la.

Não tem nada de errado; exceto que se trata de dinheiro público, extorquido do contribuinte. Tá ok?

Vamos aos números. O mandato legislativo concede ao político uma verba mensal em salários destinada aos seus "assessores parlamentares". Hoje essa verba varia entre 150 mil e 300 mil reais por mês, o que, com os benefícios, pode gerar mais de 5 milhões de reais em um ano, totalizando vinte milhões em quatro anos, que é o tempo de mandato obtido com o sucesso eleitoral.

De posse de um mandato, você contrata os tais assessores, e combina com eles a devolução do salário recebido. Como os assessores não precisam sequer ir ao trabalho (a maioria nem sabe onde fica), não têm gastos decorrentes do emprego. No esquema, devolvem 90% do salário para o político contratante e ficam com 10%, sem precisarem fazer nada, apenas informarem o CPF.

Uma beleza. Muita gente entraria na fila para se candidatar aos 10% e ganhar esse dinheirinho fácil. Alô, Brasil, quem não quer entrar nessa lista do cabide? Sejamos honestos. Com trocadilho...

O problema é que, para o parlamentar, o risco é muito alto de fazer isso de forma indiscriminada. Não dá pra confiar. Brasileiro é f... O político pode ser roubado, pois o seu "assessor" pode simplesmente não lhe devolver o dinheiro combinado. Como retaliação, o parlamentar pode demitir o servidor ingrato e desonesto, mas aí esse dinheiro público já estaria perdido.

E então você tem que contratar outros, correr novamente o risco, sem contar que nessa brincadeira se perdem invariavelmente semanas importantes, onde o político não conseguiu fazer sua torneirinha jorrar dinheiro (não esqueça que falamos de 90% de vinte milhões em quatro anos, ou seja, são dezoito milhões por fora que o mandato pode proporcionar só nessa rachadinha).

Portanto, nada mais seguro do que desenvolver um esquema familiar, onde parentes, primos, cunhados, sogros, todos participem do esquema, entregando seus CPFs, ganhando suas migalhinhas e devolvendo o grosso na mão do político laborioso e astuto. Isso sim é fazer "política".

Porém, como nada na vida é perfeito, e como cunhado não é parente, mesmo no âmbito familiar há aqueles recalcitrantes encrenqueiros, que não cumprem o combinado. 

É aí que a mecânica bem azeitada exige um capataz. É necessário um Fabricio Queiroz. Um gerente incisivo, e de confiança, que mantenha a família de assessores sob rédea curta, cobrando todo mês a devolução de cada um. E faz isso no próprio dia do pagamento, para não dar moleza a ninguém.

Está aí composta uma célula eficaz de produção de dinheiro. E, se você consegue eleger para cargos parlamentares a sua esposa e os seus próprios filhos, multiplicando o número de células familiares com mandato próprio, o dinheiro produzido vai se tornando cada vez mais vultoso. É um negócio e tanto.

Pena que é ilegal; mas este é um obstáculo contornável, sem grande esforço. Afinal de contas, não tem ninguém verificando isso. A não ser, é claro, que você se torne candidato a presidente.

Por enquanto, deixemos este pormenor de lado. Voltemos à logística da operação. 

Outro ponto delicado dessa fábrica de grana viva é que o dinheiro acumulado não pode ser declarado, nem investido em operações financeiras, pois em caso de perseguição política poderia ser rastreado pela Receita Federal. Então uma alternativa interessante é manter em poder o dinheiro vivo, entregue pelos assessores na mão do gerente do negócio, e convertido em imóveis.

A aquisição imobiliária é uma opção excelente, porque você pode comprar, por exemplo, um apartamento de dois milhões e declarar que ele custou apenas setecentos mil, pagos em moeda corrente. Com isso, um milhão e trezentos mil coletados dos assessores desaparecem do nada.

Já os setecentos mil oficiais são declarados na escritura, e o imóvel se torna em patrimônio efetivo, com seu valor real na vida real. O patrimônio aumentou, de fato, em dois milhões, mas, para o fisco, no papel, foi apenas um terço disso, o que é mais fácil deschavar com as autoridades, se necessário.

Mas, se você é político, tem foro, costas quentes, contatos e toda uma rede de apoio. Sossega.

É mais ou menos assim que bilhões de reais são todos os anos transferidos dos cofres públicos para mãos particulares. O povo brasileiro lida bem com isso, inclusive topa receber os 10%, se der essa sorte. 

A operação é, para narizes mais sensíveis, nauseabunda, mas aqui no Brasilzão estamos acostumados ao lixão moral. Toca o barco. E agradeçamos aos detalhes que Juliana dal Piva nos traz deste tipo de operação banal, feita por baixo dos panos (lembrando que ela só escolheu este político específico, em meio a milhares que cometeram a mesma operação, porque ele se tornou presidente da República - é fato notório que milhares de outros políticos estão com suas torneirinhas em funcionamento neste exato instante, sem ninguém aporrinhando ou passando sermão).

Para felicidade geral, não tem ninguém nem aí.

Mas o texto de Dal Piva não se resume às rachadinhas. Ela segue meticulosamente as ações, os inquéritos, os processos decorrentes do sistema de funcionários-fantasma do clã Bolsonaro. E que ganham uma outra proporção quando Bolsonaro vence a eleição em 2018.

Nomes que se tornaram famosos no noticiário policial vão surgindo na sucessão de capítulos. Além de Queiroz e do finado Adriano da Nóbrega e sua família, a jornalista acompanha também alguns personagens periféricos da ascensão de Jair Bolsonaro ao poder, ligados aos seus rolos anteriores e aos processos decorrentes deles, como o exótico, e, por que não, caricatural Frederick Wassef.

Sem contar expoentes do nosso judiciário, como Kássio Nunes Marques, advogado piauiense guindado por Bolsonaro ao Olimpo do STF. O distinto magistrado protagoniza parágrafos decisivos na blindagem do clã. Lembrando que o leal Kássio irá ficar as próximas décadas no Supremo - inclusive o presidirá, dentro de alguns anos. Presente do Jair à nação.

Retornando ao livro, ainda que estruturado de forma coerente e configure uma memória política importante, tenho que admitir que traz poucos elementos novos. É leitura funcional, mas pouco prazerosa, por se dedicar demasiado à costura cronológica do avanço (ou não...) processual.

Particularmente, prefiro me manter preso ao modus-operandi do negócio do Jair. A propósito, mais útil nos atermos ao negócio do que ao Jair. È àquele que precisamos combater, pois é endêmico. 

Enquanto bolsonaristas combatem o Lula (e o STF) e lulopetistas combatem o Bolsonaro (e o STF), há a suspeita, não comprovada cientificamente, da existência de alguns ateus ideológicos, que combatem apenas a ideia da Corrupção. Onde vivem? como se alimentam? de onde vieram? etc.

Importa é que a prática abrange todo o território nacional. Rachadinhas são o mecanismo mais prático para desviar o dinheiro público auto-concedido pelos políticos aos seus próprios gabinetes, de onde a mufunfa é oportunamente transferida para os seus próprios bolsos.

Delito muito raramente investigado, é ainda mais esparsamente punido, para alívio da classe. Mês passado, a Justiça Federal absolveu o ex-governador e ex-senador José Agripino Maia por manter um funcionário fantasma em seu gabinete (crimes de peculato e associação criminosa). Segundo o juiz Francisco Eduardo Guimarães, da 14a Vara Federal do Rio Grande do Norte, o político foi absolvido porque o MPF não conseguiu "desconstituir" as provas apresentadas pela defesa.

Rapá, desconstituir as provas da defesa? Ê Justiça criativa...

Por fim, preferiria que a mídia direcionasse suas baterias aos 99,9% dos casos de rachadinha que seguem acontecendo todos os meses, sem que ninguém levante um dedo contra a transferência ilegal de recursos, do que eleger apenas os Bolsonaro para serem combatidos (que naturalmente merecem punição por prevaricar, juntamente com todos os outros). Sejamos democráticos.

Pior é que a solução para matar a rachadinha é tão simples quanto a própria: primeiro, fazer o rastreio dos pagamentos; segundo investigar os indícios de enriquecimento ilícito; terceiro, após a investigação, determinar a devolução do dinheiro aos cofres públicos. Em dobro.

(Só falta combinar com a juizada.)

Mas o melhor dos cenários seria o fim da cota de assessores. Político que quiser secretário, que pague do próprio salário. Rima e dificulta armações.

Sei que viajo na maionese e é só uma utopia. Aproveitei o tema do livro para deitar falação sobre uma situação que me incomoda. Dinheiro público deveria ser melhor fiscalizado. Ainda temos uma pancada de gerações pela frente, porém, antes de vermos moralizada a gestão pública no Brasil.

Gestão pública moralizada no Brasil? Acho que, enquanto lia o tal do negócio, andei bebendo...

Zahar Editora, 310 páginas  |  1a edição (2022)

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

3 comentários:

  1. Herr Puterman!!! Além do "levar vantagem em tudo" tem outra máxima que ouvi muitas vezes ainda criança quando alguém comentava algum mal feito de um político: "Se você estivesse lá, faria a mesma coisa"... Alguns valores, comportamentos e atitudes nefastas foram (me parece que irremediavelmente) incorporados ao caráter nacional

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  2. Pois é. O pessoal às vezes se esquece que político não é filho de chocadeira. É o povo brasileiro no poder. Com todos os seus defeitos.

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    1. Acho que o povo no poder vai até um determinado grau de relevância, após um certo limite quem manda mesmo são as elites... que na essência também são parte desse mesmo povo... Aliás, "cada povo tem a elite que merece"

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