"Luanda, Lisboa, Paraíso", por Djaimilia Pereira de Almeida
Djaimilia tem um texto poético como o próprio nome. Uma prosa escorreita, enumerativa, cheia de predicados. Sua história aqui, miúda, se resume a um mero punhado de personagens - o núcleo familiar dos Cartola, um cubano dono de botequim e, como recorrente referência de insignificância social, os Barbosa da Cunha, representando a elite que os explora e ignora. Ainda que com graça, o livro, manco, se apóia no calcanhar de Aquiles (trocadilho largado implícito por opção da autora).
Escreve a mulher para o marido distante: "Já imaginou eu assim toda cambuta a passear de capeline no Rossio com um mais velho que nem você?"
Contando da romaria ("surpreendida a meio, enquanto os operários saem à vez, a saída parece um despertar interminável"), ou descrevendo uma reunião animada de vizinhos, meio que um fundo de quintal, Djaimilia se sai assim:
"Acrescentavam refrões em kikongo a panxoliñas galegas, soltavam gargalhadas boçais, limpavam a boca aos braços, ensaiavam piropos cada vez mais reles".
As palavras do português de lá que não existem no português daqui são muitas, e dão sabor. A autora é produto do enlace entre África e Península Ibérica, como também nós resultamos aqui. Ela vai de desenrascanço a kazucuteira, de consoada a cavaqueira. Quando nos esmiuça uma simples refeição, dá água na boca, mesmo que quase tenhamos que adivinhar do que se trata:
"Comeram talhadas de melancia, açúcar queimado, jinguba torrada vinda de Luanda". No dia seguinte, além do pão de mistura, frango em tomate e queijo saloio, os personagens deram de cara com "um bolo de laranja às fatias, fritos de limão, refresco de café", antes de irem à janela fazerem "bolas de fumo".
O lirismo de Djaimilia diz presente em cada parágrafo. Forma construções delicadas.
"A última mala desfeita em Lisboa não fora arrumada por Justina [...]. Era a mala onde o filho guardava a mãe dentro dos olhos."
É prosa de doçura inequívoca. Uma escrita ajaezada como um elefante hindu, listrada de miçangas. Mas, se até aqui expus o que encontrei de melhor, é certo que não se vive só de elogios; este Luanda... é também um livro hirsuto, com alguns defeitos cabeludos. Me pareceu que a história peca pela ausência de dinâmica. Em constante banho maria, se dilui numa escrita de pouco lucro; uma beleza sob medida para quem não espera nada da leitura além de enfeitar o tempo ocioso.
É preciso mais? Não bastam a elegância no manejo das palavras, o almoxarife dos cenários, a sintaxe bem-posta? Para muitos, sim; não para todos. Porque neste mundo modorrento há leitores exigentes que anseiam por mais. Que iniciam a leitura com a expectativa de um conteúdo substancioso e, mais, irrestritamente inteligível. Não achá-lo-ão, porém, no texto da aclamada escritora angolana, que recém participou da nossa tradicional Flip.
Sem um destino, suas passagens se perdem em devaneios íntimos e desconsolo cotidiano. Confesso que não raro é difícil entender quem é quem, diante do que nos resta evoluir assuntando parentescos e endereços, como se participássemos de uma charada literária. E ainda pior é que grande parte do que é contado é irrelevante para a (in)compreensão da narrativa.
Não quero parecer intolerante. Mas, se escolhermos ao acaso algumas páginas e as retirarmos do livro, não haverá impacto no conteúdo, nem no entendimento. O livro passará bem sem elas, e ninguém entenderá menos o que a escritora pretendeu contar. Na verdade, provavelmente não há mais do que algumas dúzias de parágrafos que sejam determinantes para a compreensão da história. Vou além: são 59 capítulos, e a supressão integral de diversos deles não faria diferença.
Além do mais, provavelmente porque sou muito burro, terminei o livro sem entender bem o início. Sua toada me soou uma versão luso-africana da música indie. Uma melancolia suspirosa que se resume a um pai que emigrou com o filho coxo, se irmanou com um cubano com um filho leso, que recebe a visita da filha e da neta, que reconstruiu um sobrado que pegou fogo ninguém soube como.
Pronto, é isso.
Resumido o argumento, vale também menção aos formatos alternativos que Djaimilia inclui em seu romance. Entremeia os capítulos com a transcrição de cartas trocadas entre Cartola e a mulher. É um recurso - repetido uma dezena de vezes - que ajuda a entender o desenrolo das ações, mas não é suficiente para nos dar a decifrar a história. Fica entre o piegas e o ginasiano.
Ainda sobre sua estrutura, quase chegando ao meio do livro, há uma folha toda preta e em seguida vem o capítulo 22. A partir daí, a história, parece, volta no tempo. Tinha iniciado na África, fôra para Lisboa e voltava agora ao continente africano. A narrativa ameaçou ganhar rumo e propósito. Uma brisa de otimismo esvoaçou meus cabelos. Mas foi alarme falso. Tanto que uma outra folha preta precede o capítulo 53, mas, tal e qual, não fica claro que mudança traz.
Pelo menos não ficou claro para mim.
Minha contida decepção com mais este livro premiado - venceu o prestigioso "Oceanos" - é apenas um contraponto à unanimidade laudatória dos eventos literários. Eles existem aos montes e precisam premiar alguém, já que foram criados com este fito. A mídia, que lê pouco, ama a purpurina cultural. Nas redações, um release de editora é sempre bem acolhido, pois a pauta de cultura é carente de assunto e, com fome, persegue os que são mais momentosos.
Comendas assim existem em todo lugar, não só além-mar. Li há pouco num jornal local que aqui na minha região provinciana estava sendo promovida uma feira literária. Montaram uma tenda no parque onde se realiza a feira agropecuária e a chamaram "Ler para va-ler".
O nome escolhido exemplifica de bate-pronto o que eu poderia dizer. Já é suficiente.
Pois o premiado livro de Djaimilia é debruado, cada capítulo um gato angorá com fitinhas e borzeguins. Faz o inventário de todos os objetos disponíveis na memória dos personagens. Seus parágrafos são bonitos. Um livro ótimo para ler folheando, ler de trás para frente e que permite ao leitor descompromissado o conforto de escolher páginas ao acaso enquanto o tempo passa.
Para os que leram na ordem e até o fim, vê-se nas linhas finais a autora narrar o lance derradeiro do seu protagonista, que "não desviou o olhar até chegar ao cais das Colunas". Arremata ela que "Cartola olhou o Tejo de frente e deu-lhe uns minutos."
Pois eu há alguns anos fiz o mesmo, como registrado na ilustração do post. Com isso, eu e o imigrante angolano, apesar do descompasso entre leitor e personagem, passamos a dividir certa cumplicidade.
Companhia das Letras, 198 páginas
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