"D. Pedro: a história não contada", por Paulo Rezzutti
Ano novo, vida nova? Difícil de acreditar. Mais um mero dia atrás do outro, acompanhando o comportamento autista de um povo à deriva em um país exuberante e continental. Quem diria, dois séculos atrás, que teríamos esse tamanho todo e não o aproveitaríamos: um país gigante para um desempenho de pigmeu. Pois é. Apesar do desperdício, esta dimensão avantajada nós devemos a uma austríaca e a um português.
Não creio que a gente por aqui dê o devido valor à personalidade histórica de D. Pedro I, o português em questão. Nem a quem ele foi e nem ao que ele fez. Tudo bem, "História" está longe de ser paixão nacional. Mas, com o perdão da palavra, Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon, nascido no Palácio de Queluz em 12 de outubro de 1798, como D. Pedro IV, não foi um personagem qualquer.
A passionalidade com que ele escreveu seu destino aventureiro já seria assaz interessante - fosse ele quem fosse. Ocorre que ele foi um príncipe, que deu a independência a um país, que se tornou imperador, que impôs uma filha rainha do outro lado do mar oceano, que virou o nobre da moda em Londres e Paris, que entrou em guerra com o irmão (e venceu), que se tornou rei de Portugal e que, tendo feito só tudo isso, morreu moço. Ufa. Não é pouca coisa, ehm?
Esta estória eletrizante (e desconhecida da grande maioria dos tupiniquins) é contada com intimidade por Paulo Rezzutti. Um historiador que não enfeita: escreve fácil, no bate-papo de calçada, sem rebuscar. Põe o conteúdo sobre a mesa com zelo e brilho. Bem mais despojado do que a maioria dos seus vetustos colegas historiadores, sua prosódia despretensiosa conquista o leitor curioso. Como quem diz: lê aí que a história é boa.
Ô. Se é. Melhor ainda que Rezzutti não hesita em entregar os podres de Pedro I, um sujeito que fez muita besteira - de atrocidades políticas a cafajestices pessoais. Marido infiel, governante irresponsável, filho dedicado e pai extremado. Não se espante, você que ainda não o conhecia bem; esta é, resumidamente, uma introdução à personalidade do nosso primeiro imperador. Amado e desprezado, governou o país com inconsequência e voluntarismo. Governou mal. Donde, mal e porcamente, dá para considerá-lo um tanto quanto semelhante ao que temos que aturar neste espinhoso e controvertido século 21.
OK. Mas este Pedro, se caprichou nas lambanças, inventou, ao lado da esposa, um país. Já outros...
Para contar tim-tim por tim-tim o acontecido, o autor, como é praxe no mercado, abre com um capítulo à frente no tempo, para depois recomeçar do início temporal - um recurso narrativo que parece ter virado regra (paga multa quem não fizer?). Mas foi um prologozinho bem inspirado, aliás. Porque logo em seguida ele remonta aos avós de Pedro I, atravessa a infância e juventude de seus pais João e Carlota Joaquina, e emenda relatando as traquinagens com o (meio) irmão Miguel.
O irmãozinho menor, a propósito, era tido como filho não de D. João VI, mas do Marquês de Marialva. Teria sido apenas uma das incontáveis puladas de cerca de Carlota - a quem faltava formosura, mas não faltava comichão. Pedro herdou o ardor da mãe; já a preferência dela coube a Miguel, seu filho dileto. Enquanto eles desfrutavam dos seus primeiros anos de vida no reino português, não imaginavam a relação de Caim e Abel que o futuro lhes reservaria.
Ficamos assim todos devidamente circunstanciados com o período que antecedeu a vinda de Pedro para o país. Paulo acompanha a fuga desembestada da corte para o Brasil, com toda a politicagem envolvida, e sua chegada à antiga colônia, passando antes por Salvador e desembarcando no Rio de Janeiro. Relata a vida de playboy de Pedro no Rio e as tentativas de golpe de Carlota. Conta em pormenores o contrato do primeiro casamento de D. Pedro com a princesa austríaca Leopoldina - e aproveita para uma substanciosa digressão pela política dos Habsburgo, uma dinastia de noivas espalhada pelos quatro costados.
O autor esmiúça também a sucessão de conflitos envolvendo os interesses portugueses e brasileiros. As duas principais fatias do reino nunca se entenderam, numa relação capenga em que a família real era o fiel da balança. Os portugueses, invadidos pelos franceses e defendidos pelos ingleses, toleravam mal e mal a distância da sua corte exilada. Os cariocas desfrutavam de um novo status como sede do reino, enquanto os lisboetas esperavam que a separação se provasse temporária.
A paciência entrou em contagem regressiva com a derrocada de Napoleão, quando passaram a conspirar pela volta da corte. Com Pedro I casado, a irriquieta Carlota Joaquina tramava, além do retorno à Europa, o golpe no marido, entregando o governo europeu ao filho Miguel e unindo a pátria do filho (Portugal) à pátria do avô (Espanha). Os portugueses em Lisboa ansiavam pela volta da família real e o rebaixamento do Brasil ao seu velho e conveniente (para os gajos) status colonial. A questão se apoiava em dois alicerces: sem o rei não havia reino e, sem a colônia, não havia dinheiro. A matemática simples somava a volta do rei ao retrocesso do Brasil.
A pressão era muita e a própria coroa estava em jogo - não voltar significava perdê-la. Assim, após muita resistência, e tentando inúmeras cambalhotas políticas para retardar a despedida, D. João retornou à Portugal, deixando no Brasil o varão, a nora e os netos. E, diz-se, fez às vésperas da partida um aviso ao filho: antes que um aventureiro qualquer separasse o Brasil de Portugal, que ele, Pedro, o fizesse, mantendo o país contabilizado na coluna do patrimônio familiar.
Por aí se vê que D. João VI estava longe de ser o ingênuo que o pintavam. Deu o pouco formoso rei a senha para que fosse escrita a gloriosa história da Independência. Mas não foi ele o único por detrás do braço erguido do filho, às margens do Ipiranga: além dele, sustentavam aquele braço José Bonifácio (um brasileiro que merece um livro, que, aliás, já escreveram e eu já comprei, mas ainda não li) e a princesa e futura Imperatriz do Brasil, Dona Leopoldina.
Chamei a história de gloriosa porque não haveria outro termo para definir o gesto intimorato, que alterou o futuro do continente. Estava cortado o cordão umbilical que unia o Brasil ao seu soberano europeu. Este era o movimento temido por todos aqueles que pertenciam à nobreza europeia no primeiro quarto do século XIX. O fantasma de Napoleão, o Usurpador, apavorava os nobres, receosos que um segundo capítulo da Revolução tivesse como palco a longínqua América do Sul. Uma epopeia que Rezzutti conta com riqueza de detalhes, coadjuvada a quatrocentos quilômetros do Ipiranga, pelos coautores que revelei no parágrafo anterior.
Como vou destrinchar mais detalhadamente no próximo post, dia 9, semana que vem, em celebração aos 199 anos do "Dia do Fico" e em homenagem à Imperatriz Leopoldina - que espero você também me dê a honra de ler -, o gesto de Pedro foi a conclusão de uma série controversa de circunstâncias, incluindo a pressão militar portuguesa no Brasil, a postura intransigente de Lisboa, a subserviência inicial de Pedro a ambas, a perda prematura do primogênito João Carlos, o antagonismo dos paulistas e a antevisão da esposa. Sem o cálculo desta última, aliada à sua atávica expertise como princesa imperial, o grito talvez não tivesse passado de um muxôxo.
Instigante, não? Para navegar pelas minúcias dessa aventura, recomendo fortemente a você, que tem carinho pela história do Brasil, a leitura de "D. Pedro: a história não contada". Porque o contexto político-familiar que antecedeu a proclamação, a cronologia político-passional que redundou na Independência e a participação decisiva de personagens que considerávamos periféricos são uma importante conquista para o entendimento do país.
Mas, como afiança o título, a história trazida aqui por Rezzutti é a de Pedro, assaz enriquecida pelo acréscimo de correspondência pessoal - uma história que não para por aí. Após ter sido o executor e legitimador da trama da Independência urdida por Leopoldina e Bonifácio (vale frisar ainda que à testa de um mais amplo grupo de brasileiros), o então proclamado Imperador deu sequência à sua vida de forma bem pouco ortodoxa.
A começar que ele voltou do Grito do Ipiranga com uma nova amante, que ele faria nobre, que seria sua vizinha no palácio, a quem ele protegeria a vasta parentela, que lhe daria filhos e que ele transformaria em dama de companhia da própria mulher que ambos traíam. Pedro impôs à Imperatriz do Brasil a convivência humilhante com Domitila de Castro, a Marquesa de Santos, que passaria a dar as ordens ao "Demonão" (como Pedro se auto-apelidava nas suas cartas eróticas enviadas à marquesa) - que lhe permitia o abuso.
A traição escandalosa chocava o povo e a sociedade da época. Como se isso não bastasse, as suas decisões impetuosas nem sempre eram as melhores. Quase nunca, aliás. A pressão portuguesa pela volta de Pedro e o desfazimento do Brasil como nação independente eram pauta recorrente. O imperador se endividou com os ingleses, para custear gastos discutíveis. Sua aura derreteu. Enquanto foi ao Sul guerrear contra os platinos, Leopoldina, que ele já deixara acamada, morreu.
Dizem que ele havia lhe dado um pontapé no útero, em uma discussão doméstica, antes de partirem. Ela perdeu o filho que gestava. Mas as versões são conflitantes - e a versão da sua violência contra a amada imperatriz era bem conveniente para os que escreveram a posteriori a história do retorno de Pedro I à pátria natal.
Rezzutti nos conta como Pedro, que já havia enviado a sua primogênita Maria da Glória para reinar em Portugal, e que viu o reino ser usurpado pelo seu irmão Miguel, abdicou do trono e retornou à Europa após 23 anos no Brasil. Emotivo, se sentia e se dizia brasileiro. Aqui, porém, já não havia espaço político para quem cavou a própria cova com tantas atitudes equivocadas.
Não foi direto à Portugal, porque provavelmente seria preso no desembarque e porque ainda não tinha um Exército. Em Londres e Paris arregimentou um, após muitas costuras com os nobres portugueses exilados. Com o suporte da sócia de todas as horas, a Inglaterra, Pedro IV, o Rei Soldado (como viria a ser coroado em Lisboa, em alguns meses), partiu para retomar seu país - e, para surpresa de Miguel e das suas defesas postadas para defender a capital, Pedro desembarcou no Porto, onde fez sua resistência, onde chamou o irmão para a guerra e onde a venceu.
Seu comportamento em batalha - que, segundo Rezzutti, foi heroico - custou-lhe a perda da saúde. Tuberculoso, reinou por pouco tempo. O autor nos traz a narrativa do seu fim, dando uma dimensão impessoal à grandeza de quem foi, aos olhos de hoje (e talvez também da época), um déspota arbitrário e condenável.
Esta percepção, porém, é contrabalançada pela descrição da paixão genuína que sentia pelos filhos, próximos e distantes, legítimos ou bastardos. Nos cálculos do autor, Pedro deixou quase meia centena de "cópias", como ele os chamava ("estive com ela para fazer cópia de mim"). O cálculo é do austríaco Carl Schlichthorst, em suas memórias: quarenta e três filhos. Rezzutti ainda crê que possam ter sido mais.
Não só fértil, mas atencioso (ao seu modo). Quando a filha Maria da Glória partiu para Portugal, ele mantinha correspondência frequente com a menina, zelando e ralhando. Fez o mesmo na situação inversa, quando, da Europa, se correspondia com o filho Pedro e as demais filhas que aqui ficaram.
A contribuição de Rezzutti é mais que valiosa ao, no fim da obra, nos oferecer uma pequena biografia de cada um dos filhos e filhas mais conhecidos do Imperador. O conhecimento destas vidas semi-ignoradas traz um sabor sem igual para quem quer contextualizar a época e seus desdobramentos. Eu vou gastar aqui alguns parágrafos para rememorá-las.
Além de sabermos o desenlace da rainha Maria da Glória, nascida em 1819 e duas vezes precocemente viúva (teve 11 filhos, todos no terceiro casamento, e faleceu aos 34 anos), Rezzutti nos conta de dona Januária (nome recebido em homenagem ao Rio de Janeiro), nascida em 1822, princesa imperial do Brasil e herdeira do trono até o nascimento do primeiro filho do seu irmão Pedro II. Suspeita (injustamente?) de tramar para dar um golpe no Imperador, acabou deixando o Brasil e se estabelecendo na Europa. Morreu em Nice, em 1901, sendo, como destaca o autor, a única dos filhos de Pedro e Leopoldina a chegar ao século XX.
Paula Mariana, assim batizada em homenagem a São Paulo e Minas, nascida em 1823, foi sempre enferma, apelidada pelos irmãos de "Santinha". É a ela que Petrópolis deve sua existência. Foi atrás de um clima mais salutar, que ajudasse a recobrar a saúde da filha pequena, que D. Pedro I se interessou em comprar a Fazenda do Padre Corrêa - que, entretanto, não estava à venda. Com isso, adquiriu a Fazenda do Córrego Seco, hoje o Centro Histórico da cidade. Santinha, porém, não resistiu e faleceu aos dez anos, antes que pudesse desfrutar do clima ameno da região.
Francisca nasceu no ano seguinte, 1824, e seu nome, claro, homenageava também uma região brasileira - a Comarca do Rio São Francisco. Casou-se aos 19 anos com o terceiro filho do rei Luís Filipe da França, François, príncipe de Joinville. Entre os dotes pelo casório, Chica, como era chamada em casa, recebeu 25 léguas quadradas ao nordeste da província de Santa Catarina - que viria a ser Joinville (que, a propósito, era também o nome da hoje Avenida Ipiranga, em Petrópolis). Rezzutti enfatiza o sucesso que fez na corte francesa, tornando-se conhecida como "La Belle Françoise", e onde faleceu em 1898.
Dedica algumas páginas laudatórias a Pedro II, que é grande demais para ser resumido em um parágrafo. O segundo Imperador do Brasil morreu mais jovem que as irmãs Januária e Francisca, em 1891, e teve um funeral de chefe de Estado em Paris, na igreja de la Madeleine, velado por 80.000 soldados do exército francês, em uniforme de gala, com 300.000 parisienses acompanhando seu féretro. Como as irmãs, Pedro morreu no exílio.
Paulo nos conta também de Maria Amélia, a princesa flor, única filha do segundo casamento de Pedro I, com a princesa bávara Amélia de Leuchtenberg. Morreu de tuberculose, na flor da idade, aos 21 anos. E vai além, narrando os filhos de Pedro com a marquesa de Santos (Isabel Maria e Maria Isabel), com a cunhada (Rodrigo), incluindo o resultado do seu affair com a madame Saisset (Pedro).
Ainda que se trate de um livro vira-e-mexe fragmentado, com partes estanques, o formato não trouxe prejuízo ao prazer da leitura. Sem o menor medo de errar, é um autor que indico a todos com interesse pela intensa trajetória do biografado. O estilo de Rezzutti é bem-vindo. Parágrafos curtos e frases simples montando uma grande narrativa. Sua prosódia histórica é brejeira e envolvente - e as informações que seleciona e oferece são as necessárias para que possamos compor, não sem uma dose de malícia, o panorama da época e dos personagens retratados.
Neste ano que inicia hoje, e que antecede o bicentenário da independência, convido os amigos que pacientemente me leram até aqui a celebrarem a data, conhecendo um pouco mais o seu protagonista. A biografia de Rezzutti traz o retrato fidedigno do personagem. Suas muitas idiossincrasias evitaram que a obra se reduzisse a um tributo babão à personalidade do imperador. Ao fim, fechamos o livro com a sensação de que estivemos em contato pessoal com o biografado, tal é a habilidade do biógrafo em dispor a história, as cartas e os demais atores utilizados para compor seu painel.
E não nos enganemos com o aparente simplismo de Rezzutti. Ele faz parecer fácil o que é difícil.
Como não achar da mais alta sofisticação intelectual um autor fechar a sua biografia com uma frase pescada em uma das cartas do biografado? E, ressalve-se, encontrada em duas das suas correspondências, uma para sua amante, outra para seu principal ministro de Estado:
"Nu em pelo respondo".
Para quem livrou o Brasil de Portugal em meio à uma disenteria colossal (cuja contagem foi de extenuantes vinte e nove idas ao riacho), o traje é para lá de adequado.
Editora Leya, 431 páginas
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