"Frank, a Voz", por James Kaplan

segunda-feira, dezembro 28, 2020 Sidney Puterman


A biografia de Frank Sinatra foi um carinhoso presente de mamãe. A pedido, confesso. É que sempre gostei da voz, do suíngue e da forma como Frank escandia as palavras. Sem falar no repertório, repleto de clássicos (que ele criou). O personagem, em si, já me fascinava: guri, nos anos 70 assisti numa Sessão Coruja o filme "A um passo da eternidade", em que Sinatra fazia o papel de Angelo Maggio - um soldado raso folgado e indisciplinado (o filme tem cenas que viraram cult, como o beijo na praia entre Burt Lancaster e Deborah Kerr e a briga de navalha com Ernest Borgnine). 

Pela mesma época, li em algum lugar que a película, de 1953, tinha recuperado a carreira de Sinatra - e eu não conseguia juntar coisa com coisa. Era conteúdo demais para a minha ignorância de moleque. Ué, no início dos anos 50 ele não estava começando, como é que já estava no fundo do poço? Não fez sentido. Se sua atuação na tela o tirara do ostracismo, ele já tinha sido um astro e deixara de ser? Correu quase meio século até que eu soubesse tim-tim por tim-tim como tudo se passou.

Outra coisa que eu ansiava por saber era sobre seu relacionamento com o maestro Tom Jobim, na antológica gravação do seu disco "Sinatra-Jobim". Fanzaço do compositor brasileiro (obrigado, Athayde!), um dos grandes do século XX, eu queria saber os detalhes, como se aproximaram, como foram as gravações, a sinergia musical que desenvolveram, etc. Afinal de contas, dois gigantes, juntos, unindo duas das maiores culturas musicais do planeta, era transcendente.

Bem, dessas duas curiosidades aí de cima eu matei só uma. Porque, para a minha surpresa, a alentada biografia (747 páginas) de Sinatra acaba em 1954, muito antes de "A voz" conhecer o Tom. Fiquei sem saber como foi o arranjo. Paciência. Mas, quanto ao tal filme, não restou um fiapo por fuçar. O tema praticamente domina as duzentas últimas páginas da obra. 

Por falar em dominar, quem domina mesmo é Ava Gardner. Não somente o livro, mas sobretudo Frank Sinatra. O sujeito que tinha na palma da mão milhares de mulheres em todo os Estados Unidos não tinha controle sobre a própria esposa (a segunda, vale frisar). Ava fez dele gato e sapato. 

Para você ter uma provinha da abordagem do livro de James Kaplan, e julgar por você mesmo se lhe convém - pra quem gosta de Sinatra e gosta de ler, eu recomendo -, vou zanzar aqui pelos principais tópicos, que o autor distribuiu em cinco atos e quarenta capítulos, que são de tirar o chapéu (exceto para Frank, que investiu no figurino de cabeça coberta, depois de possuído pela calvície).

Kaplan vai lá nos primórdios. Ao nascimento e aos primeiros anos do pequeno carcamano em Hoboken. Neste período sobressai o temperamento de Dolly Sinatra, que traz filho e marido sob cabresto. Martin, o pai, ex-boxeur de pouco talento, foi uma figura apagada na história do filho - ao contrário da mãe, presente (e dando ordens) mesmo quando o artista era coqueluche nacional.

A foto de Sinatra fichado, que até hoje é utilizada como pretexto para ilustrar seu histórico de violência e proximidade com a Máfia, é um blefe. Tem a ver com a queixa de uma namoradinha, quando Sinatra estava em início de carreira e cantava em um boteco de estrada. A denúncia tinha um quê de chantagem - uma alegada gravidez que não se confirmou - e a detenção por uma noite era injustificada. Mas a exibição obsessiva da tal foto ao longo das décadas serviu para alimentar a lenda de sujeito perigoso que ele sempre adorou inflar.

Verdade que no futuro ele realmente esteve próximo dos mafiosos - próximo até demais. Quase foi preso nos Estados Unidos por suspeita de ter transportado uma mala de dinheiro para Cuba, a pedido de alguns amigos mal-encarados. E uma série de outros rolos. O personagem que suspeitam tenha sido baseado em Sinatra, porém, no livro/filme "O poderoso chefão", teve enorme liberdade criativa - incluindo a famosa cena do cavalo degolado, na cama do produtor do filme.

Mas, retrocedendo, James conta como, após iniciar como crooner das big bands que eram então o frisson da época, Frank deu início a uma imediatamente bem sucedida carreira solo. Seu sucesso meteórico incendiou os EUA no fim dos anos 30. A clássica histeria das meninas na plateia, enlouquecidas pelo artista bonitão, teve início com Frank Sinatra - nunca houvera nada parecido antes. Chamadas então de bobby soxers, elas ocupavam as primeiras fileiras das casas de espetáculo para gritar, chorar e desmaiar. Com a impressão que isso causava nas (boas) notícias sobre o cantor, seu empresário logo passou a premiar as mais escandalosas.

Apesar da sua movimentada vida amorosa, casou com a namorada de infância, Nancy, por sugestão dos responsáveis pela sua carreira. Afinal, eles se amavam e, em um país onde uma vida pessoal e familiar equilibrada eram uma exigência moral, isso vinha bem a calhar para quem brigava por público e celebridade em um mercado extremamente competitivo.

O problema é que o Frank bom moço só existia nas aparências, e o público não demorou a perceber isso. Mulherengo, irritadiço, arrogante, abusado e encrenqueiro, Sinatra era um fonte interminável de problemas. Nos seus devaneios, o sucesso fez dele o valentão do bairro - e mais de uma vez tratou a socos repórteres que escreviam coisas que ele não gostava. Verdade que ele não tinha mais do que esquálidos cinquenta e cinco quilos, mas tinha muitos seguranças.

Outro detalhe bem mal recebido foi a sua ausência no front: os EUA entraram na guerra no fim de 1941 e Sinatra fez de tudo para não servir (conseguiu). O patriotismo do público norte-americano, principalmente a parcela masculina dele, jamais lhe perdoou por isso. Se tornou comum as fachadas das casas de espetáculo e boates em que se apresentava serem bombardeadas com ovos e tomates.

Kaplan conta tudo com detalhes mordazes e com uma constante ironia - o que torna o livro bem mais interessante do que aqueles em que o biógrafo fica todo o tempo endeusando o biografado. Mas, se o autor não rasga seda para Sinatra, tem a mais plena consciência de que ele é um dos grandes de todos os tempos. E, melhor, sua análise das gravações de Frank é bastante sofisticada, com detalhes muito além da minha ignara compreensão - mas sem resvalar para o tecnicismo.

A transformação do cantor de sucesso em uma estrela do cinema era mais do que esperado, em uma época em que os grandes musicais eram um dos carros-chefe da indústria cinematográfica. Sinatra fazia sempre o mesmo papel, ou seja, ele mesmo, um cantor que roubava corações. Curioso é que seus papéis eram via de regra jovens simpáticos e humildes, coisas que ele, na vida real, estava longe de ser. Nenhuma delas.

Seu salto de qualidade como intérprete se deu em 1945, ao atuar ao lado de Gene Kelly em "Marujos do amor". Já visando limpar sua barra com a opinião pública, desceu dois degraus do seu pedestal de estrelinha: cumpriu horários de ensaio e seguiu corretamente as falas. Interpretando um papel que depois se repetiu algumas vezes - o de marinheiro -, Frank teve em Gene, um dos dançarinos memoráveis de Hollywood, um professor gentil e dedicado. O filme foi um blockbuster e deu um novo impulso à carreira de Sinatra. 

Mais difícil se tornou manter sob controle o seu instinto predador: Frank todo dia fechava o expediente com novas aventuras extra-conjugais. Difícil saber qual era a da vez. Atrizes, modelos, aspirantes a uma ou a outra, fãs, garçonetes, prostitutas - a cada manhã uma mulher diferente era posta para fora do quarto de Sinatra. Entre as muitas mulheres com quem se envolveu, porém, nenhuma delas o fisgou como Ava Gardner. A tal ponto que ele abandonou sua farsa de marido e pai de família exemplar e se divorciou para casar com Ava. Todo caçador um dia vira presa.

Foi quando Frank começou a descer dos, como dizem, "píncaros da glória". Depois de dois anos de sucesso embalado pelas paradas musicais e por filmes xaroposos, os escândalos amorosos, as arruaças em boates, o envolvimento com a máfia e um certo fastio do público pelo seu estilo morde-e-assopra tiraram o lustro que ainda restava em seu carisma. As gravadoras se desinteressaram por ele, os estúdios de cinema idem. Já as bobby soxers tinham outros mais jovens e mais bonitos para idolatrar - além de velho demais para o posto de ícone infanto-juvenil, Frank estava ficando careca.

A verdade é que, como diz o ditado popular, mais alto o coqueiro, maior é o tombo. Difícil alguém subir tão alto no estrelato, ir lenta e dolorosamente se desmontando, e conseguir um dia se reerguer. E, depois da queda e de ser espinafrado de alto a baixo como exemplo de decadência, absolutamente ninguém acreditava que Frank Sinatra voltaria a receber os holofotes. 

Seu casamento com Ava Gardner serviu ao menos para mantê-lo na mídia - o matrimônio entre duas celebridades sexualmente compulsivas era tudo que as revistas de fofoca e os paparazzi queriam. E eles deram. Brigas públicas e privadas, reconciliações extravagantes e um sem-fim de traições de ambas as partes. Ninguém podia dizer que era um casamento monótono. 

Mas, com Ava em seu apogeu, e Frank em seu ocaso, na prática eles se tornaram o sr. e sra. Gardner. Em números, enquanto Ava fechou um contrato para um filme por US$ 1 milhão de dólares, na mesma semana ele fechou uma participação por US$ 25 mil dólares. Ter a esposa ganhando quarenta vezes mais que ele era um lembrete diário da sua nova condição de perdedor.

Por ciúmes, insegurança e depressão, não poucas vezes Sinatra pensou em se matar - até progrediu no assunto, pois cortou os pulsos duas vezes. Como um artista em declínio, passou a se contentar com opções de segunda categoria. Aparições esporádicas em programas de rádio e TV, temporadas em palcos do circuito B, dívidas crescentes e pagamentos minguantes. A facilidade com que sua esposa trocava de amante não ajudava em nada, também. Quando o caso da vez foi um toureiro espanhol, o casamento começou a degringolar.

Mais ou menos por esta época de pouco dinheiro e muitos chifres, Sinatra, leitor voraz, leu um livro escrito por um ex-militar, James Jones, que desancava o exército em um momento politicamente pouco propício. O país estava sob o impacto da Guerra Fria e os estúdios vinham se pondo à mercê do macarthismo desenfreado. Mesmo com todos estes senões, Frank decidiu que, se aquele livro um dia virasse um filme, ele tinha que estar nele. Entre os personagens, havia um personagem, um italianinho magricela, rebelde e estressado, que morria no final. Era ele. Sinatra se encontrou em Angelo Maggio.

O problema é que ninguém mais no hemisfério norte via a mesma coisa que Frank. 

Os direitos do romance foram comprados pela Columbia Pictures, que resolveu apostar nas chances do texto. Sinatra implorou, se ofereceu, aceitou fazer testes com iniciantes, se declarou pronto para fazer o papel por simbólicos mil dólares semanais (não esqueça do milhão de dólares mensais da esposa). Nem assim. Foi aí que entrou Ava Gardner, do lado bom da estória. Ela, sem que Frank soubesse (não que ele fôsse impedi-la), usou seu prestígio e glamour para que fosse dada uma chance a ele. Que lhe conseguissem ao menos um mísero teste.

Quando relutantemente aceitaram testá-lo, Frank, o cantor que não era ator, provou que ele e o personagem eram a mesma pessoa. Ainda mais por mil dólares, uma pechincha. Sinatra foi contratado, o filme foi um dos maiores sucessos da história do cinema, colecionou quase uma dezena de Oscars - e, entre eles, um Oscar de melhor ator coadjuvante para Frank Sinatra. A tal estatueta dourada, na década de 50, não era pouca coisa. A partir daí, sua carreira retornou ao patamar de cima - de onde nunca mais saiu.

Frank e Ava se separaram. Frank se tornou novamente uma estrela de primeira grandeza. Sua união com o arranjador Nelson Riddle revolucionou a música dos anos 50. Ele voltou a ser uma estrela milionária. O resto é a glória aborrecida. O livro acaba aí. Escassas setecentas páginas, apaixonantes, escritas por um sujeito com um inegável talento na arte de contar uma estória. 

A trajetória de Frank Sinatra narrada por James Kaplan traz a abordagem certa para uma biografia. Reconhecimento no atacado e desprezo no varejo. Coloca o gênio na berlinda e tira dele um cidadão em carne e osso, que nasceu com um dom ímpar e uns duzentos defeitos. Na conta de chegada, deu Frank. Venceu o dom.

Fora tudo isso, hoje eu sei, afinal, porque "From here to eternity" tirou Sinatra do fundo do poço. Essa agora eu tiquei. Falta ainda saber como foi a estória entre Francis Albert Sinatra e Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim.

Ah, em tempo: esse charmoso "Francis", que era o primeiro nome "oficial" do Frank, um suposto apelido, era uma invenção. O nome dele era Frank mesmo. Depois ele mudou. Quer saber por quê? Bem, essa eu não vou dar de lambuja, não. Fica mais uma razão para você ler a baita biografia de James Kaplan. Minha mãe me deu. Pede pra sua.

Companhia das Letras, 747 páginas

P.S.: Obrigado, mãe! adorei o livro. Te amo.



Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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