"As aventuras do bom soldado Svejk", por Jaroslav Hasek

domingo, junho 07, 2020 Sidney Puterman

Jaroslav Hasek foi farmacêutico, bancário, ator, comerciante de cachorros e fundador de partido político (cujo nome era uma pérola: Partido do Progresso Moderado Dentro dos Limites da Lei). Criativo redator da revista Mundo Animal, inventou bichos inexistentes. Lutou pelo Exército Austro-Húngaro na Primeira Guerra Mundial, quando foi preso pelos russos e resolveu se bandear para os bolcheviques. Com o fim da guerra, de volta à Praga, foi internado no hospício após uma tentativa de suicídio no gelado rio Vltava. Morreu bêbado e miserável, nos cafundós da Boêmia. Ao longo dos seus intensos 39 anos, escreveu mais de 12.000 contos, artigos e reportagens. Sua obra prima, "Osudy dobrého vojáka Svejka za svetove války" é uma sátira irresistível às forças armadas do Império Austro-Húngaro. Traduzido ao pé da letra (não por mim, é claro), seria "Destinos do bom soldado Svejk na Guerra Mundial". Tendo as cretinices por matéria-prima, Jaroslav, no Brasil, se besuntaria com as lambanças diárias das autoridades locais. Mas Hasek é defunto há quase um século e não viveu sequer para terminar sua obra-prima, que dirá vir ao século 21 nos sacanear. Seu livro, inacabado, que ele vendia em capítulos, de bar em bar, se tornou um clássico da literatura tcheca. Para deleite dos leitores, sua atribulada experiência como bêbado e soldado lastreia cada página da edição (incluindo sua bagagem como vendedor de cães, seu troca-troca de exércitos, sua temporada no hospício etc). Ele debocha das instituições, das monarquias, dos exércitos e da mais remota sombra de hierarquia. Seu protagonista e alter ego é o veterano soldado Josef Svejk, de idade imprecisa (a se crer em tudo que Svejk narra ter visto, ele lutou nas guerras púnicas e cavalgou com o rei dos hunos). Um sonso, sempre no estreito limiar entre a idiotice e a sabedoria, um híbrido de Forest Gump com Mussum. Um soldado que, apesar de não fazer absolutamente nada certo e promover uma confusão dos infernos onde quer que aparecesse, acabava sempre - ou quase - escapando incólume às próprias trapalhadas. O bom Svejk viveu seus curtos anos de glória há mais de um século, envergando a farda do Exército Austro-Húngaro. O mui garboso exército, formado para defender o império austríaco, durou meio século (de 1867 a 1918, registra a wikipedia) e sua constituição era uma autêntica legião estrangeira. Era dividido em três forças: a austríaca, de origem alemã, a húngara, de origem magyar, e o resto, onde havia de um tudo: tchecos, ucranianos, poloneses, eslovenos, croatas, sérvios, italianos, romenos, gregos e judeus. Svejk, como o autor, era tcheco. E, na sua atávica rivalidade, os tchecos vivem numa situação um tanto limítrofe: são decididamente eslavos (ou seja, inferiores) para os alemães e meio alemães (ou seja, meio babacas) para os eslavos. Deixando essa pinimba teuto-eslava à parte, o personagem inicia o livro arrumando uma quizumba num bar e sendo preso por insurreição. Tanto apronta, que o enviam ao manicômio. Nem lá o aturam. Acaba sendo expulso do pinel e se tornando auxiliar do capelão militar, um bêbado devasso, que o designa para um major trambiqueiro, que o perde no jogo para um tenente galanteador. Após trocentas peripécias, o bom Svejk é promovido à ordenança do tenente - a contragosto deste - e parte para o front. Nem tanto: para a linha detrás do front, que pode ser resumida em comida, bebida, saque e mortandade imbecil. Para nosso deleite, não há entre as dezenas de personagens do livro um único de caráter minimamente decente ou equilibrado. Sem tirar nem por, são como os nossos políticos. Cada um dos personagens traz, em porções sob medida, a vaidade, a negligência, a glutonice, a cupidez, a covardia, a soberba e a velhacaria que caracteriza aqueles que têm cargo, mandato ou patente. Não sobra quepe sobre quepe. E é entre tantas sumidades que circula o bom soldado. Svejk é fã das máximas. "Quem nasceu para ser enforcado jamais morrerá afogado." Ou "o mais importante é sempre dizer mentiras no tribunal; aquele que se deixa seduzir e confessa a verdade está perdido". Outra: "Não importa o que digam, puxar saco é uma coisa que funciona bem até na guerra." Como alguns presidentes, Svejk tem uma visão pragmática da saúde pública: "Os tuberculosos devem ser enviados ao front. É melhor que tombem os enfermos ao invés dos sãos." Bom de papo, Svejk não se caracteriza pela laconicidade. Em tudo se estende, levando seus interlocutores à loucura. Como quando comenta um reles presunto: "Acontece com o presunto a mesma coisa que coisa que aconteceu com um amigo meu, que era carteiro, um tal de Kozel. Este homem tinha câncer ósseo e primeiro lhe cortaram um pedaço da perna, abaixo do tornozelo, depois abaixo do joelho, depois abaixo da coxa e, se não tivesse morrido a tempo, teriam continuado cortando tudo como se estivessem apontando um lápis." Se metia até a dar palpite na educação dos fedelhos. "Quantos mais filhos há em uma família, mais látegos se gastam', costumava dizer o velho Chovanec de Motol, que dava surras nas crianças dos vizinhos por uma quantia fixa que os pais lhe pagavam previamente." A ralé, como Svejk, os de alto galão, toda a tropa e o esfomeado Baloun, principalmente este, tinham fixação por comida. Só falam dela, só pensam nela. Ainda que as preferências gastronômicas do batalhão não contem com o meu aplauso. "Se é que nos enviarão lá para baixo, à Itália. E a comida lá? Só polenta e óleo. Quer saber de uma coisa? Ali, onde vivo, em Karsperské Hory, fazemos uns pequenos knedlíky de farinha de batata crua. Primeiro são fervidos, depois banhados em ovo e farinha de pão e então fritos no toucinho. E gosto mais quando são acompanhados de chucrute. Em comparação a eles, todos os macarrões do mundo podem ir à merda." Da minha parte, peço que mandem os macarrões para mim. De preferência os de grano duro da De Cecco, principalmente o spaghetti número doze, que anda em falta por aqui. Encomendas à parte, outro ponto sempre destacado por Svejk é a religiosidade, como bem constatamos na comovente prédica do arcebispo de Budapeste, Géza de Szatmár-Budafal, impressa em alemão e húngaro nos folhetos entregues à tropa: "Que Deus abençoe suas baionetas para que atravessem as profundezas dos ventres inimigos. Que Deus-Todo-Poderoso dirija o fogo dos canhões às cabeças dos altos-comandos inimigos. Que Deus misericordioso faça com que todos os inimigos se afoguem no sangue de suas próprias feridas" e por aí vai. A inspiradíssima prece é seguida por uma absurda blasfêmia em húngaro que não vou reproduzir aqui. Se você não é húngaro e quiser saber, vá por sua conta à página 483. Umas poucas folhas à frente, ele enaltece a honestidade militar: "O intendente Bautanzel discursava sobre as penosas condições em que se desenvolvia aquela viagem: 'Quando penso naquelas montanhas de provisões que tínhamos quando chegamos em Presov! Escondi dez mil cigarros Memfis, duas bolas de queijo emental, trezentas latas de conserva e depois, quando fomos às trincheiras de Bardejov e os russos cortaram a comunicação entre Musina e Preslov, fiz negócios fabulosos. Entreguei uma décima parte para o batalhão como se tivesse economizado e o resto vendi à intendência. Tínhamos conosco um tal major Sojka, um gozador como há poucos. Era herói e preferia ficar na intendência conosco porque lá em cima se ouviam balas silvando e projéteis explodindo. Uma vez, eu ficara com um pouco de fígado de vitela que não havia dado à tropa e, quando estava prestes a começar a refogá-lo, o intrometido meteu a mão debaixo do catre e o encontrou. Respondi aos gritos que o fígado era destinado a ser enterrado, que pela manhã um ferreiro da artilharia, que fizera um curso para veterinários, constatara que estava em mau estado. O major pegou um rapaz do trem e os dois foram às rochas preparar o fígado em uma panela. Essa foi sua perdição, porque os russos viram a fogueira e lançaram sobre ele e a panela um dezoito milímetros. Então fomos ver o que tinha acontecido e uma vez ali não conseguimos distinguir o que era fígado de vitela e o que era major; estava tudo espalhado pelas rochas." Se explodir major glutão era divertido, caçoar dos judeus era um dos hobbies de Hasek. Ele não se distrai. Em todas as vezes que um judeu ou uma judia aparecem nas quase setecentas páginas do texto, é para cumprir um papel ridículo, pérfido, grotesco, venal ou desprezível: "Uma opereta húngara protagonizada por atrizes judias gordinhas, cujo maior atrativo era que quando dançavam levantavam as pernas e se via que não usavam nem anáguas nem calcinhas, e ainda para maior prazer dos oficiais, estavam raspadas como as tártaras". Se não fossem as dançarinas, eram os comerciantes: "O judeu da taverna disse que lamentava muito não poder servir aos soldados; por fim, forçou-os a comprar uma vaca centenária, raquítica e cadavérica, que só tinha pele e osso. Pediu por ela uma quantia exorbitante, jurando que não encontrariam vaca semelhante em toda Galícia, nem em todo o império austro-húngaro". Na verdade, não importava sexo, nem idade ou profissão, quando o DNA hebreu surgia no texto: "No começo da guerra, quando estava servindo perto de Lvov, consegui enforcar um homem três minutos depois da sentença. Era judeu, claro." Mas o evidente antissemitismo não carece de fricotes, porque todas as raças e patentes são espinafradas por Jarolasv. Como um ex-soldado habituado ao front, era um entusiasta da coragem em batalha. "Em todas as batalhas, muitos se cagam. Não faz muito tempo, em Budejovice um companheiro ferido me contou que quando estavam avançando se cagou três vezes: a primeira quando saíram das trincheiras e se arrastaram até os alambrados, a segunda quando começaram a derrubá-los e a terceira quando os russos caíram em cima deles gritando 'Hurra!' Então recuaram até as trincheiras e no grupo não restou nenhum que não tivesse se cagado." Nada como o testemunho de quem esteve lá. E, se a propriedade com que Hasek teceu sua sátira era uma constante, o seu protagonista trocou de patamar ao longo da obra. Svejk inicia um absoluto palerma - mas o tonto incapaz dos primeiros capítulos se torna cada vez mais malandro, não raro manipulando todos na direção que lhe convinha, mesmo quando ele era a vítima. E, fato inconteste, seja por cima, seja por baixo, em todas as circunstâncias Svejk azucrina a tudo e a todos, expondo as incongruências das tropas, dos governos e da guerra. Muito conteúdo pode ser escrito sobre a Primeira Guerra Mundial - mas reduzi-la a uma patifaria obtusa é um legado ímpar. A irreverência demolidora de Jaroslav se tornou um patrimônio tcheco. Para pesar dos leitores, o livro acaba de súbito, com o impagável tenente Dub, que adorava dar uma carteirada, e o pernóstico cadete Biegler se insultando mutuamente. Hasek morreu. Na penúltima página, sua derradeira aparição, Svekj perorava sobre "um tal de Zákrejs, que passava a vida na cozinha dos oficiais" e ameaçava picar os recrutas para fazer da carne almôndegas com repolho. Não poderia ser uma despedida à francesa mais apropriada. Em algum lugar remoto ele certamente prossegue atormentando quem encontrar pela frente. Fato é que Jaroslav Hasek assinou um personagem imortal, de uma sabedoria corrosiva e, vez por outra, melancólico - mas de uma melancolia debochada. "O trem avançava lentamente pelos aterros recém-construídos, de maneira que todo o batalhão podia contemplar e saborear com prazer as alegrias da guerra, observar os cemitérios militares que brilhavam com suas cruzes no meio das planícies e das encostas devastadas, começar a se preparar mentalmente para o campo de glória que terminava com um quepe austríaco cheio de lama se balançando sobre uma cruz branca."

Editora Alfaguara, 682 páginas

P.S.: Zanzando por paradeiros tchecos, vira e mexe a gente esbarra com a cara bonachona de Svejk (que batiza uma rede de restaurantes). Olha ele lá em cima na tabuleta, numa viela qualquer de Cesky Krumlov.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: