"Piratas no Brasil", por Jean Marcel Carvalho França e Sheila Hue

quarta-feira, março 25, 2020 Sidney Puterman

Imagine você se, além de todas as paradoxais agruras que tem de enfrentar - pandemias e tormentas, enchentes e falta dágua, milicianos e traficantes, omissão governamental e corrupção dos agentes públicos etc -, o Rio fosse invadido por uma frota estrangeira e a população tivesse que trocar tiros e canhonaços com oitocentos piratas pelas ruas da cidade. Que dureza, ehm? Seria tão ou mais estressante do que o clima de ansiedade que vivemos hoje. Pois foi justamente o que aconteceu com os cariocas - e, pior, por duas vezes consecutivas, há 310 anos. O Rio não era ainda uma megalópole: tinha apenas 12.000 habitantes. Mesmo assim, era uma das três principais capitais brasileiras e, àquele tempo, a mais cobiçada. Com a recente descoberta do ouro em Minas Gerais, do porto carioca embarcava para Lisboa a fatia do tesouro que correspondia à coroa, o quinto - logo apelidado de o "quinto dos infernos". Infernal ou não, a notícia polpuda correu o mundo e aguçou a cobiça dos corsários, respeitáveis profissionais da rapinagem, que, esperançosos, se lançaram ao mar em direção à futura Cidade Maravilhosa. A narrativa destas invasões e a questionável performance carioca na própria defesa é uma das três divertidas (agora, né) estórias trazidas pelos pesquisadores Jean Marcel Carvalho e Sheila Hue, em seu "Piratas no Brasil". As quais, além de ensinar muito sobre o nosso passado, trazem de bônus lições que podemos aplicar, sem medo de errar, sobre o nosso presente. Vou dar o resumo de uma delas, sem medo de spoiler - afinal, isso é História. Atente que, embora sejam os dois desembarques em solo carioca ações distintas no tempo por um hiato de treze meses, eu, como nascido na cidade, me dou o direito de vê-las ambas como as duas fatias de um sanduíche - a população no meio, junto com o ouro reluzente, e tendo por molho um vinagrete de traição, negligência e covardia. Difícil digerir até hoje. Isto posto, vamos ao serviço. A primeira invasão foi uma patacoada, que mesmo assim surtiu efeito, ante a bizarra incompetência do governador carioca em cuidar do seu próprio território (eu falei de governador incompetente? pois é, já tinha avisado que os paralelos não seriam poucos). Ainda assim, podemos dizer que a invasão de 1710, ousada e confusa, foi mais um arroubo de juventude. O líder invasor, o capitão Jean-François du Clerc, um jovem da Martinica, possessão francesa, era pouco mais que um aprendiz de pirata, à testa de um bando numeroso. Desconhecido na França e com experiência inversa à sua arrogância, foi rechaçado pela artilharia local na sua primeira tentativa de atacar o Rio. Frustrado, navegou até a Ilha Grande para replanejar a ofensiva e, na volta, optou por desembarcar suas oito centenas de homens em Guaratiba e subjugar o Rio por terra. Ainda que monitorados pelo governador Castro Morais, vulgarmente conhecido pelo epíteto O Vaca, o avanço dos invasores foi mais rápido do que se esperava e logo eles superaram a fortaleza de montanhas que cercam o Rio, atingindo as fraldas da cidade. O mero isolamento social não resolveria: em um atropelo de histeria e desorganização, os moradores reuniram seus pertences como puderam e fugiram. Ao mesmo tempo, as tropas de defesa recuaram e o o Vaca mandou sua força de combate para a Praia Vermelha, onde ele calculava que os franceses viessem dar as caras. Castro Morais previu que os atacantes viriam por Copacabana, subiriam o Morro da Chacrinha, costeariam a Urca e rumariam pelo Aterro até o centro da cidade (fora o morro, nada disso ainda existia, mas é só para facilitar você a se localizar na pretensa movimentação imaginada pelo governador). Acontece que o Vaca esqueceu de combinar o roteiro com Du Clerc e os piratas vieram do Joá por Botafogo, seguiram para o Flamengo, cruzaram a Glória e dali desembocaram no coração (indefeso) da cidade. Embora não tivessem por obstáculo as forças oficiais do governo, que estavam na Urca esperando por ninguém, a tragédia anunciada não se consumou. O ímpeto atacante foi arrefecido pelas escaramuças na retaguarda, que debilitaram os franceses, e por alguns focos organizados de resistência, como o dos cinquenta estudantes na Rua Direita (atual Primeiro de Março). Se movendo por uma cidade desconhecida e sendo golpeados aqui e acolá, sua discutível efetividade se agravou com a perda de duzentos dos seus combatentes, ao passo que seus seiscentos remanescentes vagavam dispersos em diferentes regiões do Rio. Du Clerc conduziu o contingente que liderava para um casarão robusto, mas mal posicionado, nas imediações do Calabouço. Pela má escolha, acabou cercado e ameaçado de virar churrasco: os portugueses estavam dispostos a por fogo à casa, caso os piratas não depusessem as armas. Se vendo sem alternativas, o capitão da Martinica concordou em negociar um acordo de rendição, onde lhe foi prometido retorno à França e uma temporada de espera vivendo como bon vivant no Rio. Du Clerc aceitou os termos. Não conhecia os portugueses.  Seus homens acabaram aprisionados à pão e água ou mandados para o Nordeste, onde não seriam melhor tratados. Ao oficial foi concedida uma rotina de fidalgo que pouco adiantou: ele foi assassinado pouco tempo depois, saindo da casa de uma senhora casada, como se espalhou à época - mas há quem diga que o boato circulava por ordem do governador, o verdadeiro mandante do crime. De toda maneira, nenhum dos dois (nem o morto, nem a autoridade) sabia, mas, a esta época, o renomado pirata e nobre francês René Duguay-Trouin estava à procura de um butim que lhe tirasse do sanhaço em que se encontrava, devido a uma dura série de fracassos. Em viagens corsárias onde tudo deu errado, Duguay-Troin perdera seus navios, seu patrimônio e se endividara até a raiz dos cabelos. Roubar a maior colônia portuguesa (no seu entendimento, presa fácil e gorda) sempre fora um objetivo sedutor que lhe escapara. Quase arruinado, uniu a necessidade ao sonho antigo, e montou um plano de captura do tesouro português ainda em seu porto de embarque, o Rio de Janeiro. Apesar da falta de contribuição da Marinha francesa, encalacrada, conseguiu amealhar o suficiente com uma meia-dúzia de investidores que confiavam no seu taco. Como estamos carecas de saber (bem, eu estou), eles não se arrependeram da aposta. Com uma frota de 17 embarcações, quase 6.000 homens e víveres para oito meses, rumou para a América do Sul. Segundo os autores, ao partir da França ele sabia dos percalços de Du Clerc e também da sua traiçoeira execução, o que lhe dava uma desculpa adicional e conveniente para extorquir os locais e exigir reparação. Estava também a par de que a cidade se reforçara. A derrocada de  Du Clerc ele atribuiu mais à falta de recursos do que de talento, e ele possuía a ambos; e a anunciada fortificação carioca não o intimidou, escaldado que estava em enfrentar ingleses e espanhóis. Assim, convencido do próprio poderio, cruzou o Atlântico em direção do Rio. Ao chegar à Baía de Guanabara, tradicionalmente difícil na entrada, foi favorecido por duas circunstâncias raras: primeiro, os ventos e a maré, ao invés de dificultarem seu acesso, os sugou para o interior da baía, e, melhor, em velocidade redobrada; e um espesso nevoeiro envolveu toda a sua frota em bruma, fazendo com que as defesas cariocas só vissem a armada francesa quando ela já estava a distância de um tiro de canhão. A súbita proximidade valia para os dois lados, para atirar e para ser atirado, mas só quem mandou bala foi o lado francês. Das posições fortificadas da Muy Leal e Heróica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro não saiu um único tiro. Dizem os relatos que os portugueses fugiram desembestados, tentando salvar a própria cabeça dos projéteis de chumbo que choviam sobre os fortes. Apavorados, chegaram ao ponto de queimar os próprios navios portugueses atracados, repletos de munição, que em seguida naufragaram. Diversos cronistas do período, alguns mais insuspeitos que outros, revelaram que, se as guarnições locais tivessem se mantido à frente dos fortes e dos navios, os franceses não teriam podido desembarcar. Mas quem tem (*) tem medo, já diz o ditado. Os gajos raparam fora e os franceses desembarcaram. Tomaram a cidade do Rio sem resistência. Mandaram avisar que só sairiam após o resgate - ou seja, após o governador entregar a quantia exigida para que eles devolvessem o Rio aos cariocas. O Vaca tentou alguns truques. Pequenas emboscadas e perturbações noturnas. Chegou a enviar 14 prostitutas para amolecer os franceses. Nada mais português. Os piratas recusaram a oferta e se mantiveram na mão. Após longos dois meses de sítio, dos quais os autores dão farto detalhamento, o resgate foi pago e os franceses partiram, com o tesouro pretendido e a cidade em pandarecos. Os cariocas acusaram o governador de incompetência e covardia. O governador de Minas, que viera em socorro, mas não chegara a tempo, endossou a opinião do populacho. O Vaca foi enviado para Lisboa, julgado e condenado ao degredo na Índia. Alguns anos depois, foi perdoado, teve seus vencimentos restituídos e voltou serelepe para Lisboa. Esta estória (não pense que por eu ter entregue o resumo de bandeja você já a conhece - como diz o célebre historiador Eduardo Bueno, o Peninha, se você quer mesmo saber, você vai ter que ler) e duas outras, também tão saborosas quanto, você encontra neste irresistível apanhado dos professores Jean Marcel Carvalho e Sheila Hue. Incluindo a intrépida conquista do tesouro de Fernambuck. Não sabe do que se trata? O Fernambuck em questão não é nenhum rei europeu - nada mais é do que o nosso querido Pernambuco, atacado em 1595 pelo corsário inglês James Lancaster. A aventura virou lenda na Inglaterra e foi um dos mais ricos butins da época, tempos em que roubar navios e países era uma prática comercial bem-vista. Aproveite a quarentena e saiba mais do nosso pitoresco passado lendo "Piratas no Brasil". Garanto que você vai se sentir em casa.

Globo Livros, 207 páginas

Obs.: foto tirada, antes da quarentena, no forte de Cabo Frio, que já estava lá quando os piratas franceses passaram em suas dezessete embarcações em direção ao Rio.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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