"O horror da guerra", por Niall Ferguson

terça-feira, janeiro 07, 2020 Sidney Puterman

O subtítulo "uma provocativa análise da Primeira Guerra Mundial" conta mais da enciclopédica obra de Niall Ferguson do que seu título. Porque o "horror" sobre o qual o autor se debruça tem menos a ver com carnificina - que é uma exata descrição da Primeira Guerra - do que com desperdício. Uma guerra equivocada, onde as premissas erradas guiaram a tomada de decisões. Ferguson critica as razões que levaram os países à guerra e critica a análise posterior destas mesmas razões. Me interessou. É sempre oportuno um olhar renovado sobre verdades antigas. Aos olhos de hoje, a Primeira Guerra Mundial ainda nos parece primitiva. Tosca. Uma guerra de trincheiras, com homens cinzentos se esgueirando por túneis e buracos, como toupeiras de cantil. Pior. Numa visão superficial (da qual convém fugir), é para muitos uma guerra sem razão aparente, sem um agressor claro, sem algo pelo qual valesse a pena lutar. Um atentado na Sérvia a um austríaco idoso, por conta de querelas locais dos Balcãs, teria nitroglicerina suficiente para incendiar o mundo? Pois é. Sobre estas intrincadas razões, a obra-prima de Christopher Clark, "Os sonâmbulos", também resenhada aqui no blog, é leitura obrigatória. Fato é que, para nós, surpreende que não houvesse, então, um vilão ostensivo, um Hitler, um Trump ou um talibã para dar o pontapé inicial. O ensandecido criminoso austríaco (as duas guerras mundiais tiveram um austríaco por ponto de partida!), aliás, foi um produto do conflito de 1914 a 1918, como o foi a própria Segunda Guerra. Mas esta guerra mundial old fashion, envolta em imprecisões e distante no tempo, permanece instigando os estudiosos, que, por razões acadêmicas ou genealógicas, ainda buscam respostas para os imóveis e perturbadores cenários do conflito. Entre eles está o historiador Niall Ferguson, que, em memória do avô escocês, combatente na França na defesa da Entente, nos propõe uma visão questionadora. O autor destrincha o evento, subdividindo-o em dez ângulos de ataque que, a seu ver, carecem das respostas corretas - em perseguição às quais se dedica ao longo de 735 páginas. Seu trabalho, inquisitivo, é monumental. Parte da premissa da legitimidade das percepções da época e as confronta com os resultados subsequentes, enveredando por uma minuciosa investigação dos números do período. O âmago da sua análise é a dissecação da capacidade respiratória das nações para se manterem em guerra. Para isso, se valeu de estatísticas que vão do nível de emprego ao escoamento industrial, da produção bélica à reposição de tropas, da quantidade de baixas aos índices de alistamento, da resiliência da marinha mercante aos percentuais de inflação. A saúde financeira dos países envolvidos, ao longo dos quatro anos de permanência do estado de guerra, é a bacia onde ele busca respostas para as perguntas que propôs. Teria sido o conflito mesmo inevitável? Qual a razão da alta aposta alemã nesta guerra? Por que os líderes britânicos resolveram intervir no continente, no outro lado do Canal da Mancha, assim a guerra offshore eclodiu, sem dar tempo ao seu desdobramento? Vê com ceticismo a lenda propagada de que o povo se entusiasmou com o embate. Põe em cheque a afirmação de que a propaganda e a imprensa foram quem sustentaram o contencioso por tão longo prazo. São colocações que dão azo a uma série de teorias, mas que talvez não tenham respostas definitivas. Outras, porém, cujo cunho matemático não pode ser desconsiderado, exigem algum malabarismo na resposta. Tendo entrado no conflito com toda a sua força e desde o seu início, por que a enorme superioridade econômica do Império Britânico não foi suficiente para vencer a guerra sem a ajuda norte-americana? Saindo da vantagem econômica para a supremacia bélica, por que a eficiente máquina de matar alemã, atestada pelos números, não trouxe a vitória para os Impérios Centrais? Ferguson dedica centenas de cálculos e comparativos para exemplificar como a economia britânica se manteve competitiva e superavitária contra uma Alemanha altamente endividada - e assim, com uma rematada vantagem no financiamento dos seus exércitos, indaga os motivos da Inglaterra não ter sido mais eficiente que a Alemanha para matar, ferir, capturar e desestimular seus adversários. Outrossim, também apoiado em incontáveis planilhas e demonstrativos, resta fora de questão o poderio assassino dos alemães - gastavam menos dinheiro para obter a morte de um número maior de inimigos. Se era assim, porque a Alemanha não conseguiu fazer pender a balança da guerra para o seu lado? Do aspecto dos combatentes, outro dilema para o qual Niall busca uma resposta coerente: por que soldados de ambos os lados lutaram por tanto tempo, se por meses a fio o combate não demonstrava resultados aparentes? Ou, invertendo a questão, por que subitamente desistiram desta mesma guerra que antes os mobilizava? Palco do matadouro, o continente europeu tombou conflagrado durante quase meia década. As muitas teorias que antes fundamentaram a guerra não se confirmaram. A mais popular delas afirmava que com poucos meses de confronto generalizado a economia de todos os países ruiria e as nações iriam a pique. Não se deu. Também se imaginava que as batalhas gerariam avanços que estrangulariam linhas de suprimento e dariam a vitória a um ou outro lado. Os tais avanços emperraram. Ferguson segue uma linha de raciocínio pouco heróica, mas inflamada nos seus argumentos matemáticos. Culpa os políticos por sua avaliação errada e defende que a grande oscilação no quadro de baixas, que no início de 1918 fez desequilibrar os números em favor da Entente, aconteceu quase que repentinamente. Deu-se que, após quatro anos, um dos lados simplesmente desistiu de lutar. Depois de anos de luta encarniçada e números estáveis, súbito o número de alemães capturados deu um salto. O que leva o autor a apostar que o soldado alemão se desiludiu com os confusos sinais emitidos pelo seu próprio governo, que entregava na negociação política com os adversários aquilo que os inimigos não lograram conquistar no campo de batalha. Este estado de espírito iria determinar o rumo da Alemanha nos anos que se seguiram à derrota e iriam criar o caldo necessário para cozinhar as crenças de vingança germânica embaladas por Hitler e seus idealistas. Mas isto foi o depois. A guerra seguinte. O segundo capítulo. Neste primeiro, o que tivemos foram convicções frustradas de um conflito rápido, de oportunidades de imposição que pareciam inadiáveis, de uma disputa armada pela hegemonia do comércio mundial e uma série de outras convicções abstratas - que não estavam preparadas para receberem uma nota promissória de milhões de mortos e uma economia planetariamente descompensada. A partir deste evento, uma nação emergente, uma ex-colônia europeia, iria governar o mundo. No choque de impérios decadentes, o prêmio caiu no colo dos novos ricos da América - e, no solo envenenado do pós-guerra, também no bico das aves de rapina que, em breve, sugariam a Europa para o torvelinho trágico do III Reich.

Editora Planeta, 735 páginas

Obs.: No passado, como agora, o fantasma de uma nova guerra está sempre a nos rondar. Potências belicosas buscam ocupar espaços, visando ganhos políticos e econômicos. Como vimos acima, a conta chega mais alta do que o presumido. Tal e qual no assassinato do arquiduque, em 1914, a explosão do general, em 2020, pressupõe uma retaliação; que, por ora, permanece uma incógnita. Só o que sabemos - como adverte o dito jocoso - é que as consequências vêm depois.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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